Refletindo sobre uma gravura de Honoré Daumier
Uma movimentação intensa de linhas. Diversas direções, diversas espessuras, diversos preenchimentos. A litogravura de Daumier, de 1852, mais parece um desenho a lápis-de-cor preto, tamanho a destreza com que as mãos do francês trabalham sobre o espaço do papel. Nenhum contorno das figuras é eternizado; estas possuem uma tensão, parecem estar a se desfazer – se assemelham a uma animação em movimento 2-D. O espaço do Salão representado é todo rascunhado. As molduras ao fundo são meras molduras, cujas pinturas evaporam devido à justaposição de planos das figuras que estão à frente.
Os rostos têm um quê de caricatural – o estranho nariz do homem que se desataca na composição, quase ao centro, é bom exemplo disso. Os corpos parecem se desintegrar próximos aos seus quadris; o espaço do papel acaba e Daumier preenche alguns espaços-limite da composição com o vazio. Todos se deparam com quadros. Diferentes reações são apresentadas: olhares blasés, um olhar animado, um olhar de espanto e um homem de costas a contemplar – qual seria sua reação? Estando ele contra o observador, me coloco em seu lugar e projeto minha própria expressão facial em seu rosto.
O artista trata de esconder outro dado da imagem: a pintura que as quatro figuras principais observam. Inclusive poderíamos nos perguntar se de fato eles observam a parte frontal da moldura nos mostrada por trás, devido à sua dissonância de direcionamento de olhares. Estaria esta moldura apenas simbolizando o objeto-chave dos Salões, o objeto artístico? O próprio título da gravura guia nossa leitura – “Posam de connaisseurs”, ou seja: eles não o são, apenas se fazem de. Daí não seria espantoso levantarmos a hipótese de que na verdade nenhum quadro poderá estar sendo observado por estes possíveis nouveuax riches, emergentes burgueses.
De qualquer forma, as frases inseridas abaixo da composição fazem parte da obra. Ajudam a construir nossa leitura e ajudam a erguer o sentido proposto por Daumier. Discussão levantada desde o Renascimento, sutilmente apontada já por Giorgio Vasari (num paragone entre Michelangelo e Tiziano) e Giovanni Pietro Bellori, mas que teve como um de seus maiores debates a discussão da Academia de Pintura da França, entre Rubensnistas e Poussinistas. Argumentações essas que no século XIX voltam à tona, entre Delacroix e Ingres, colore e disegno. Romântico e acadêmico. Anticlássico e clássico.
Daumier propunha com obras como esta, veiculadas em populares jornais da época, críticas em torno do campo da arte e da cultura, geralmente ridicularizando artistas e comportamentos dos frequentadores dos recém-instaurados Salões. Com seus traços rápidos e sua acidez crítica, a postura de Daumier condizia com a postura crítica sugerida por Charles Baudelaire em sua crítica ao Salão de 1859: breve, mas complexa e, ao mesmo tempo, não podendo ser diferente por dizer respeito a "... esse gênero de mercadoria tão fastidioso a que se dá o nome de Salão...".
Raphael Fonseca é crítico e historiador da arte. Bacharel em História da Arte pela UERJ, com mestrado na mesma área pela UNICAMP. Professor de Artes Visuais no Colégio Pedro II (RJ). Curador de mostras e festivais de cinema como “Commedia all’italiana” (realizada na Caixa Cultural de Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo, 2011), o Festival Brasileiro de Cinema Universitário, a Mostra do Filme Livre e o Primeiro Plano – Festival de Cinema de Juiz de Fora. Membro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas (ANPAP). Realizador de curtas-metragens como "Boiúna" (2004), "A respiração" (2006) e "Preguiça" (2009).
0 comentários:
Postar um comentário
Seja educado. Comentários de teor ofensivo serão deletados.