Anos verdes: verde lodo e verde musgo
De volta a Revista Contemporartes, apresento aos leitores as vozes
do silêncio. Contraditoriamente como poderíamos falar do
silêncio? Ou como poderia o silêncio falar? Todo silêncio carrega
consigo uma infinidade de falas e vozes. Toda palavra dita carrega
um/algum interdito. Mas se falamos de linguagem estética, artística,
o jogo de ditos e interditos ganha um outro viés, posto a arte
operar necessariamente no universo do símbolo. Ela de muitas
maneiras busca representar, ficcionalizar os dramas humanos, não só
os sentimentais (amor, saudade, nostalgia) mas também aqueles
provenientes da violência e da exploração do homem pelo próprio.
Desde Platão e Aristóteles, as artes correspondem a uma linguagem
que usando os mesmos signos da vida diária diverge do uso hodierno
dos mesmos. Na literatura, a palavra (linguagem verbal) tem na
metáfora sua primazia. Como afirma Aristóteles na sua Poética,
ao conceituar tragédia e epopéia: na literatura, a linguagem é
enxornada, ornamentada, composta por “ritmo, melodia e canto”, é
metafórica e faz uso de termos raros. Na teoria literária moderna
(séc. XX), especialmente em autores de teorias textualistas, podemos
encontrar afirmações como: a literatura corresponde a uma violência
organizada contra o uso corriqueiro da língua (Terry Eagleton). Ou
ainda, a literatura ao usar as mesmas palavras do dia a dia, mas sob
nova roupagem causa no leitor uma sensação de estranhamento. De
todo modo, a literatura é uma linguagem simbólica que nos ajuda a
compreender o homem como um animal simbólico (Orlando Pires).
Entretanto é exatamente em situações históricas adversas (em
momentos de exceção, sob regimes políticos totalitários,
autoritários) quando a liberdade de expressão é reduzida ao
silêncio, e mecanismos de censura tornam-se frequentes, de modo a se
instalarem no sistema cognitivo criador, que natureza simbólica, o
jogo de ditos e interditos ultrapassa o valor artístico próprio da
arte para assumir uma peculiaridade outra, místico-militante, num
duplo registro ao mesmo tempo servindo de instrumento de combatem mas
resguardando os membros da resistência. Neste contexto, não raro a
linguagem artística, estética e, no nosso caso específico, na
linguagem estética verbal, na literatura, torna-se ainda mais
simbólica, metafórica, figurada, e recursos como a fragmentação
formal o uso do mito e da alegoria se tornam frequentes, seja por
causa da impossibilidade de narrar diretamente a violência, a
tortura, o trauma advindos desse contexto, seja pela necessidade de
escapar da censura ou de outros mecanismos de controle de informação
em momentos de exceção. Como afirma Vasconcelos sobre a obra de
Chico Buarque, “a linguagem da fresta”.
É no domínio da arte que as vozes silenciadas, os gritos contidos,
os ditos interditos tem se revelado. Nas vozes do silêncio,
procuraremos a cada mês dar vez a uma voz. Afinal nossa pesquisa
acadêmica detém-se no mapeamento de autores que problematizaram
esteticamente a resistência ao regime de exceção de 64-84/5. Para
se ter uma ideia da produção sobre o período até o momento o
Grupo NARRARES (Narrativa de Resistência) levantou mais de 80
narrativas romanescas brasileiras que contemplam em seu enredo a
matéria bruta da história do regime político. Mas vale chamar
atenção para o fato de a maior parte desses
livros não fazerem parte do cânone nacional e muitos desses livros
serem desconhecidos mesmo por estudantes e professores de Letras (ou
História). Salvo quando o autor é de renome (Chico Buarque, Antonio
Callado) ou quando a obra já tem certa notoriedade por ter sido
adaptada para a TV (novela ou seriado, principalmente), a maioria dos
romances desse corpus parece/parecia esquecida. Como a maioria são
livros fora de catálogo das editoras e de difícil aquisição, o
trabalho de garimpagem dessas obras é feita, principalmente, através
de sebos físicos e virtuais; mesmo assim, alguns ainda precisam ser
encontrados.
Se todos estivessem disponíveis para download, como o romance Verdes
Anos, de Luiz Fernando Emediato
[www.geracaobooks.com.br/e_books/Livro_Verdes_Anos.pdf], o trabalho
de garimpagem deixaria mais tempo para a pesquisa, leitura, análise,
etc. O livro foi publicado em primeira edição em 1977. Como o
leitor pode acompanhar no arquivo, é um romance de estrutura
fragmentada. Os capítulos têm relativa autonomia e, como afirma
Luiz Ruffato no prefácio de Trevas no Paraíso – Histórias de
amor e de guerra nos anos de chumbo, foram publicados de forma
autônoma como contos em edições diferentes, de livros para
crianças a livros de literatura erótica. Eu prefiro chamá-los
capítulos-conto, embora o próprio autor não adote esta
nomenclatura e ainda chame algumas narrativas de novelas (como a
última do livro Verdes Anos, “Não passarás o Jordão”).
Em Trevas no Paraíso, todas as narrativas do livro de 1977
são republicados junto com outras narrativas do autor, até então
esparsas, mas são ordenados de uma maneira diferente conforme as
preferências do organizador e prefaciador Luiz Ruffato.
Em Verdes Anos, temos sete capítulos-conto, sendo cinco na primeira parte da narrativa intitulada “O Lado de Dentro” (“O Outro Lado do Paraíso”, “Cândida”, “Also Sprach Zarathustra”, “O Despertar da Primavera”, “Verdes Anos”) e duas na segunda parte , intitulada “O Lado de Fora” (“A data magna de nosso calendário cívico” e “Não passarás o Jordão”). Na primeira narrativa intitulada “O outro lado do paraíso”, acompanhamos uma narrativa própria da literatura infantil. Antônio, pai do narrador protagonista, e que “procurava o país de Evilath, onde nasce o ouro e todas as pessoas são certamente felizes”(página 17-8), um dia resolve levar a família para Brasília, que passaria daí por dia a ser a capital de Evilath. Entretanto, “o país de Evilath tornava-se, a cada dia, um país triste e sombrio” (página 40) e nós vamos acompanhando a desilusão da família de Tunico e tomada de consciência do narrador frente à matéria bruta da história.
As três narrativas seguintes já nos colocam diante do narrador
adolescente e suas experiências pessoais (sexuais principalmente)
entrecruzando a matéria histórica. Em “Cândida”, oferece-nos
um retrato de mulher que mais serve para revelar o estado burbulento
do próprio narrador desejoso da mulher, que para de fato
descrevê-la. Cândida já faz um bom tempo merece um estudo
comparativo com outra personagem de romance com estrutura
relativamente semelhante, publicado na mesma década e sob mesmo
contexto histórico. Falo de Andréa do romance A Festa, de
Ivan Ângelo.
“Also Sprach Zarathustra” e “O Despertar da Primavera” dão
continuidade ao trabalho de focalização de uma vivência
adolescente em meio ao ambiente hostil que é por si a própria vida
para o adolescente com seus hormônios em estranha fervura, com o
corpo esbarrando em cantos e quinas e com a própria difícil
convivência com o outro-si-mesmo no espelho, mas além disso de uma
vida em choque as contigências históricas adversas e frontalmente
direcionadas contra o próprio ‘heroico’ peito.
“Verdes Anos”, capítulo-conto que dá título ao livro, serve
como uma transição e é o que melhor releva uma tentativa de
equilíbrio narrativo diante do choque. Equilíbrio narrativo em que
não podemos indicar nem a simplicidade narrativa de Evilath, nem a
complexidade estrutural do último capítulo-conto “Não passarás
o Jordão”. “Verdes Anos” funciona como um intermezzo, como uma
porta para colocar o leitor do “lado de fora”, numa vivência de
exterioridade sem introspecção, onde não existe mais Evilath, onde
o presidente não poderia ser mais “um homem bom” de antes
(página 49).
Lendo os contos em sequência acompanhamos a trajetória de Nando da
infância à idade adulta. Inclusive, em termos de linguagem e de
nível de estrutura, ordenação cognitiva. O romance começa com um
texto que muito se assemelha a literatura infantil, linguagem corrida
e polida, enredo ordenado, com causalidade, com pouca fragmentação
interna, além da vivência num mundo mágico, mítico, utópico, e
encerra com uma linguagem informal, carregada de palavrões, com
flashes quase sem causalidade, num alto nível de fragmentação
formal, e num contexto real, cruel, distópico. Nesta progressão,
são as certezas da infância, mesmo num plano maravilhoso, que são
destruídas, conforme vai se tornando mais próximo o contato do
protagonista com a realidade do país naquele momento histórico.
Os dois capítulos que estão em “O Lado de Fora” (“A data
magna de nosso calendário cívico” e “Não passarás o Jordão”)
levam a cabo este projeto escatológico e distópico. Verdes Anos
encerra com expedientes pós-modernos para a arte do romance e o
encadeamento dos textos funcionam também como um bom aprendizado
para história da narrativa: de uma narrativa nos moldes tradicionais
para uma narrativa que fere o jeito tradicional de narrar.
Deixo o leitor mesmo constatar o que há em “O Lado de Fora”
tendo em mente a seguinte anotação: a narrativa fragmentada
(especialmente de “Não passarás o Jordão”) corresponde à
própria forma como a história se apresenta aos olhos do narrador,
os fragmentos não podem deixar de ser vistos também como a própria
deterioração do ser em meio ao choque com a sociedade degradada, os
intertextos precisam ser entendidos como tentativas de montar pedaços
para dar algum sentido, algum entendimento à realidade, os
fragmentos transcritos como elementos para montagem de um
golem-frankenstein...
Tenho certeza que o leitor vai ouvir ditos, interditos, falas e vozes
do silêncio.
Abilio Pacheco possui graduação em Letras pela Universidade Federal do Pará (2002) , graduação em Letras - Habilitação em Língua Espanhola pela Universidade da Amazônia (2009) , especialização em Linguistica Textual pela Universidade Federal do Pará (2003) e mestrado em Letras: Lingüística e Teoria Literária pela Universidade Federal do Pará (2005) . Atualmente é Professor Assistente da Universidade Federal do Pará. Tem experiência na área de Letras , com ênfase em Teoria Literária. Atuando principalmente nos seguintes temas: cidade, utopia, distopia, crítica social, Chico Buarque e Benjamim.
14 comentários:
Gostei muito de seu artigo, Abílio. Oportuno para lembrar bons escritores . como o Emmediato, infelizmente menos conhecidos do que as "celebridades" do momento....Gostei da revista e logo vou mandar uma colaboração.
29 de fevereiro de 2012 às 17:07Poeta Abílio,este texto "Anos verdes: verde lodo e verde musgo" , é bem propicio ao mundo atual, forte e verdadeiro, valeu ler, agradecida, e meus cumprimentos ao autor Luiz Fernando Emediato.
29 de fevereiro de 2012 às 19:50Efigênia Coutinho
Caro Abilio!
29 de fevereiro de 2012 às 20:40Grata pela oportunidade de me por em contato com escritores de tão alto gabarito e que infelizmente não o encontramos nas casas de COMÉRCIO de livros.
Caro escritor Abílio.
1 de março de 2012 às 01:11Saudações literárias!
Bem,gostei do texto bem organizado,com o objetivo de enfatizar a liberdade de expressão dos diversos autores.Então, Em "Verdes Anos"", o autor coloca o leitor numa vivência sem introspecção quer dizer, sem se deter nos seus pensamentos, seus sentimentos, enquanto que na "Trajetória de Nando"(infância/adulto) a vivência é num mundo mágico e utópico e encerra com uma linguagem informal.
Belo e expressivo texto, Mestre Benilson...Algo que foge ao lugar comum, estilizado e elitizado. Sugere ao (à) leitor(a)a possibilidade de entrever situações que ocorrem em determinadas situações, como as de repressão de opiniões/ posicionamentos, sugerindo reflexão sobre valores e normas, e alimentando o desejo de busca de novas alternativas ao pensamento e às ações a estes relacionadas. OK.
1 de março de 2012 às 11:27Meus cumprimentos.
Eloisa Anntunes Maciel
Respondo apenas com um contico eco:A velha senhora perguntou ao garoto:
1 de março de 2012 às 17:54Sabes de que cor eh o verde folha? E o garoto: Nao sei nao,senhora, so tenho treze anos.
Saudações poéticas
2 de março de 2012 às 15:36Caro escritor, os textos são de uma expressividade fantastica, seu trabalho é fantástico.
Rosa Peres - escritora Rondonense
Obrigado, Abilio, fiquei comovido e encantado com seu texto a respeito de meu "romance", escrito no calor e na revolta dos meus vinte e poucos anos. Valeu a pena ter escrito este livro, há tantos anos, só para poder ler suas palavras, 30 anos depois. Obrigado, obrigado mesmo. E quem quiser baixar o livro pela Internet, vão lá: "Verdes Anos" é grátis. Luiz Fernando Emediato
2 de março de 2012 às 20:24Parabéns, Abílio! Vamos compartilhar para que mais leitores possam saber e aprender com essa maravilhosa aula de Literatura.
2 de março de 2012 às 22:31Um abraço
Abílio,
3 de março de 2012 às 15:30excelente a sua crítica.À medida que lia, eu já estava preocupada pensando em como ter acesso à obra.Ao final, o autor de Verdes Anos, em seu comentário diz q é possível baixar pela internet. Vamos tentar.
Abílio,
21 de março de 2012 às 14:37sou seu fã, sua forma de descrever e analisar é algo único.
O seu artigo de forma envolve nos leva a um passeio pela obra.
Excelente trabalho, parabéns meu amigo, irmão e professor Abílio.
Abraço na alma... Sucesso e mais sucesso!
E que possamos seguir juntos nesta caminhada literária, promovendo o progresso da literatura e da arte de ler e escrever.
Bacana, Abílio, essa pequena fresta de intensa luz. Falar do que nos afronta, amesquinha e não pode ser esquecido,e mesmo aí liberar espaços de liberdade, de crítica, de destinação outra. A partir de um ponto qualquer atingir um outro ponto, pensar em movimento permanente, tal o que você fez e não poderia deixar de fazer diante do livro do Emediato, todo um contra-discurso à acomodação e ao silenciamento.
21 de março de 2012 às 20:10O referido artigo expõe muito bem a obra e aproxima mais leitores ao contato com o trabalho.
24 de março de 2012 às 09:06Olá, Nilza Amaral.
25 de março de 2012 às 03:11Vi o seu comentário e pensei: essa questão parece se impor, essencialmente à psicologia: embora particularizada em relação ao adulto, diferenciada em seu processo evolutivo, QUEM É A CRIANÇA?
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