quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Anos verdes: verde lodo e verde musgo


De volta a Revista Contemporartes, apresento aos leitores as vozes do silêncio. Contraditoriamente como poderíamos falar do silêncio? Ou como poderia o silêncio falar? Todo silêncio carrega consigo uma infinidade de falas e vozes. Toda palavra dita carrega um/algum interdito. Mas se falamos de linguagem estética, artística, o jogo de ditos e interditos ganha um outro viés, posto a arte operar necessariamente no universo do símbolo. Ela de muitas maneiras busca representar, ficcionalizar os dramas humanos, não só os sentimentais (amor, saudade, nostalgia) mas também aqueles provenientes da violência e da exploração do homem pelo próprio.
Desde Platão e Aristóteles, as artes correspondem a uma linguagem que usando os mesmos signos da vida diária diverge do uso hodierno dos mesmos. Na literatura, a palavra (linguagem verbal) tem na metáfora sua primazia. Como afirma Aristóteles na sua Poética, ao conceituar tragédia e epopéia: na literatura, a linguagem é enxornada, ornamentada, composta por “ritmo, melodia e canto”, é metafórica e faz uso de termos raros. Na teoria literária moderna (séc. XX), especialmente em autores de teorias textualistas, podemos encontrar afirmações como: a literatura corresponde a uma violência organizada contra o uso corriqueiro da língua (Terry Eagleton). Ou ainda, a literatura ao usar as mesmas palavras do dia a dia, mas sob nova roupagem causa no leitor uma sensação de estranhamento. De todo modo, a literatura é uma linguagem simbólica que nos ajuda a compreender o homem como um animal simbólico (Orlando Pires).
Entretanto é exatamente em situações históricas adversas (em momentos de exceção, sob regimes políticos totalitários, autoritários) quando a liberdade de expressão é reduzida ao silêncio, e mecanismos de censura tornam-se frequentes, de modo a se instalarem no sistema cognitivo criador, que natureza simbólica, o jogo de ditos e interditos ultrapassa o valor artístico próprio da arte para assumir uma peculiaridade outra, místico-militante, num duplo registro ao mesmo tempo servindo de instrumento de combatem mas resguardando os membros da resistência. Neste contexto, não raro a linguagem artística, estética e, no nosso caso específico, na linguagem estética verbal, na literatura, torna-se ainda mais simbólica, metafórica, figurada, e recursos como a fragmentação formal o uso do mito e da alegoria se tornam frequentes, seja por causa da impossibilidade de narrar diretamente a violência, a tortura, o trauma advindos desse contexto, seja pela necessidade de escapar da censura ou de outros mecanismos de controle de informação em momentos de exceção. Como afirma Vasconcelos sobre a obra de Chico Buarque, “a linguagem da fresta”.
É no domínio da arte que as vozes silenciadas, os gritos contidos, os ditos interditos tem se revelado. Nas vozes do silêncio, procuraremos a cada mês dar vez a uma voz. Afinal nossa pesquisa acadêmica detém-se no mapeamento de autores que problematizaram esteticamente a resistência ao regime de exceção de 64-84/5. Para se ter uma ideia da produção sobre o período até o momento o Grupo NARRARES (Narrativa de Resistência) levantou mais de 80 narrativas romanescas brasileiras que contemplam em seu enredo a matéria bruta da história do regime político. Mas vale chamar atenção para o fato de a maior parte desses livros não fazerem parte do cânone nacional e muitos desses livros serem desconhecidos mesmo por estudantes e professores de Letras (ou História). Salvo quando o autor é de renome (Chico Buarque, Antonio Callado) ou quando a obra já tem certa notoriedade por ter sido adaptada para a TV (novela ou seriado, principalmente), a maioria dos romances desse corpus parece/parecia esquecida. Como a maioria são livros fora de catálogo das editoras e de difícil aquisição, o trabalho de garimpagem dessas obras é feita, principalmente, através de sebos físicos e virtuais; mesmo assim, alguns ainda precisam ser encontrados.
Se todos estivessem disponíveis para download, como o romance Verdes Anos, de Luiz Fernando Emediato [www.geracaobooks.com.br/e_books/Livro_Verdes_Anos.pdf], o trabalho de garimpagem deixaria mais tempo para a pesquisa, leitura, análise, etc. O livro foi publicado em primeira edição em 1977. Como o leitor pode acompanhar no arquivo, é um romance de estrutura fragmentada. Os capítulos têm relativa autonomia e, como afirma Luiz Ruffato no prefácio de Trevas no Paraíso – Histórias de amor e de guerra nos anos de chumbo, foram publicados de forma autônoma como contos em edições diferentes, de livros para crianças a livros de literatura erótica. Eu prefiro chamá-los capítulos-conto, embora o próprio autor não adote esta nomenclatura e ainda chame algumas narrativas de novelas (como a última do livro Verdes Anos, “Não passarás o Jordão”). Em Trevas no Paraíso, todas as narrativas do livro de 1977 são republicados junto com outras narrativas do autor, até então esparsas, mas são ordenados de uma maneira diferente conforme as preferências do organizador e prefaciador Luiz Ruffato.



Em Verdes Anos, temos sete capítulos-conto, sendo cinco na primeira parte da narrativa intitulada “O Lado de Dentro” (“O Outro Lado do Paraíso”, “Cândida”, “Also Sprach Zarathustra”, “O Despertar da Primavera”, “Verdes Anos”) e duas na segunda parte , intitulada “O Lado de Fora” (“A data magna de nosso calendário cívico” e “Não passarás o Jordão”). Na primeira narrativa intitulada “O outro lado do paraíso”, acompanhamos uma narrativa própria da literatura infantil. Antônio, pai do narrador protagonista, e que “procurava o país de Evilath, onde nasce o ouro e todas as pessoas são certamente felizes”(página 17-8), um dia resolve levar a família para Brasília, que passaria daí por dia a ser a capital de Evilath. Entretanto, “o país de Evilath tornava-se, a cada dia, um país triste e sombrio” (página 40) e nós vamos acompanhando a desilusão da família de Tunico e tomada de consciência do narrador frente à matéria bruta da história.


As três narrativas seguintes já nos colocam diante do narrador adolescente e suas experiências pessoais (sexuais principalmente) entrecruzando a matéria histórica. Em “Cândida”, oferece-nos um retrato de mulher que mais serve para revelar o estado burbulento do próprio narrador desejoso da mulher, que para de fato descrevê-la. Cândida já faz um bom tempo merece um estudo comparativo com outra personagem de romance com estrutura relativamente semelhante, publicado na mesma década e sob mesmo contexto histórico. Falo de Andréa do romance A Festa, de Ivan Ângelo.
“Also Sprach Zarathustra” e “O Despertar da Primavera” dão continuidade ao trabalho de focalização de uma vivência adolescente em meio ao ambiente hostil que é por si a própria vida para o adolescente com seus hormônios em estranha fervura, com o corpo esbarrando em cantos e quinas e com a própria difícil convivência com o outro-si-mesmo no espelho, mas além disso de uma vida em choque as contigências históricas adversas e frontalmente direcionadas contra o próprio ‘heroico’ peito.
“Verdes Anos”, capítulo-conto que dá título ao livro, serve como uma transição e é o que melhor releva uma tentativa de equilíbrio narrativo diante do choque. Equilíbrio narrativo em que não podemos indicar nem a simplicidade narrativa de Evilath, nem a complexidade estrutural do último capítulo-conto “Não passarás o Jordão”. “Verdes Anos” funciona como um intermezzo, como uma porta para colocar o leitor do “lado de fora”, numa vivência de exterioridade sem introspecção, onde não existe mais Evilath, onde o presidente não poderia ser mais “um homem bom” de antes (página 49).
Lendo os contos em sequência acompanhamos a trajetória de Nando da infância à idade adulta. Inclusive, em termos de linguagem e de nível de estrutura, ordenação cognitiva. O romance começa com um texto que muito se assemelha a literatura infantil, linguagem corrida e polida, enredo ordenado, com causalidade, com pouca fragmentação interna, além da vivência num mundo mágico, mítico, utópico, e encerra com uma linguagem informal, carregada de palavrões, com flashes quase sem causalidade, num alto nível de fragmentação formal, e num contexto real, cruel, distópico. Nesta progressão, são as certezas da infância, mesmo num plano maravilhoso, que são destruídas, conforme vai se tornando mais próximo o contato do protagonista com a realidade do país naquele momento histórico.
Os dois capítulos que estão em “O Lado de Fora” (“A data magna de nosso calendário cívico” e “Não passarás o Jordão”) levam a cabo este projeto escatológico e distópico. Verdes Anos encerra com expedientes pós-modernos para a arte do romance e o encadeamento dos textos funcionam também como um bom aprendizado para história da narrativa: de uma narrativa nos moldes tradicionais para uma narrativa que fere o jeito tradicional de narrar.
Deixo o leitor mesmo constatar o que há em “O Lado de Fora” tendo em mente a seguinte anotação: a narrativa fragmentada (especialmente de “Não passarás o Jordão”) corresponde à própria forma como a história se apresenta aos olhos do narrador, os fragmentos não podem deixar de ser vistos também como a própria deterioração do ser em meio ao choque com a sociedade degradada, os intertextos precisam ser entendidos como tentativas de montar pedaços para dar algum sentido, algum entendimento à realidade, os fragmentos transcritos como elementos para montagem de um golem-frankenstein...
Tenho certeza que o leitor vai ouvir ditos, interditos, falas e vozes do silêncio.

Abilio Pacheco possui graduação em Letras pela Universidade Federal do Pará (2002) , graduação em Letras - Habilitação em Língua Espanhola pela Universidade da Amazônia (2009) , especialização em Linguistica Textual pela Universidade Federal do Pará (2003) e mestrado em Letras: Lingüística e Teoria Literária pela Universidade Federal do Pará (2005) . Atualmente é Professor Assistente da Universidade Federal do Pará. Tem experiência na área de Letras , com ênfase em Teoria Literária. Atuando principalmente nos seguintes temas: cidade, utopia, distopia, crítica social, Chico Buarque e Benjamim.


14 comentários:

Cecilia Prada disse...

Gostei muito de seu artigo, Abílio. Oportuno para lembrar bons escritores . como o Emmediato, infelizmente menos conhecidos do que as "celebridades" do momento....Gostei da revista e logo vou mandar uma colaboração.

29 de fevereiro de 2012 às 17:07
Efigênia Coutinho ( Mallemont ) disse...

Poeta Abílio,este texto "Anos verdes: verde lodo e verde musgo" , é bem propicio ao mundo atual, forte e verdadeiro, valeu ler, agradecida, e meus cumprimentos ao autor Luiz Fernando Emediato.
Efigênia Coutinho

29 de fevereiro de 2012 às 19:50
Darcy Nogueira Brito disse...

Caro Abilio!

Grata pela oportunidade de me por em contato com escritores de tão alto gabarito e que infelizmente não o encontramos nas casas de COMÉRCIO de livros.

29 de fevereiro de 2012 às 20:40
Maria Olindina disse...

Caro escritor Abílio.
Saudações literárias!
Bem,gostei do texto bem organizado,com o objetivo de enfatizar a liberdade de expressão dos diversos autores.Então, Em "Verdes Anos"", o autor coloca o leitor numa vivência sem introspecção quer dizer, sem se deter nos seus pensamentos, seus sentimentos, enquanto que na "Trajetória de Nando"(infância/adulto) a vivência é num mundo mágico e utópico e encerra com uma linguagem informal.

1 de março de 2012 às 01:11
Anônimo disse...

Belo e expressivo texto, Mestre Benilson...Algo que foge ao lugar comum, estilizado e elitizado. Sugere ao (à) leitor(a)a possibilidade de entrever situações que ocorrem em determinadas situações, como as de repressão de opiniões/ posicionamentos, sugerindo reflexão sobre valores e normas, e alimentando o desejo de busca de novas alternativas ao pensamento e às ações a estes relacionadas. OK.
Meus cumprimentos.

Eloisa Anntunes Maciel

1 de março de 2012 às 11:27
Nilza Amaral disse...

Respondo apenas com um contico eco:A velha senhora perguntou ao garoto:
Sabes de que cor eh o verde folha? E o garoto: Nao sei nao,senhora, so tenho treze anos.

1 de março de 2012 às 17:54
Rosa Peres disse...

Saudações poéticas

Caro escritor, os textos são de uma expressividade fantastica, seu trabalho é fantástico.

Rosa Peres - escritora Rondonense

2 de março de 2012 às 15:36
Luiz Fernando Emediato disse...

Obrigado, Abilio, fiquei comovido e encantado com seu texto a respeito de meu "romance", escrito no calor e na revolta dos meus vinte e poucos anos. Valeu a pena ter escrito este livro, há tantos anos, só para poder ler suas palavras, 30 anos depois. Obrigado, obrigado mesmo. E quem quiser baixar o livro pela Internet, vão lá: "Verdes Anos" é grátis. Luiz Fernando Emediato

2 de março de 2012 às 20:24
Lígia Saavedra disse...

Parabéns, Abílio! Vamos compartilhar para que mais leitores possam saber e aprender com essa maravilhosa aula de Literatura.

Um abraço

2 de março de 2012 às 22:31
Cecy Barbosa Campos disse...

Abílio,
excelente a sua crítica.À medida que lia, eu já estava preocupada pensando em como ter acesso à obra.Ao final, o autor de Verdes Anos, em seu comentário diz q é possível baixar pela internet. Vamos tentar.

3 de março de 2012 às 15:30
DHIOGO O PENSADOR disse...

Abílio,
sou seu fã, sua forma de descrever e analisar é algo único.
O seu artigo de forma envolve nos leva a um passeio pela obra.
Excelente trabalho, parabéns meu amigo, irmão e professor Abílio.
Abraço na alma... Sucesso e mais sucesso!
E que possamos seguir juntos nesta caminhada literária, promovendo o progresso da literatura e da arte de ler e escrever.

21 de março de 2012 às 14:37
Ney Ferraz Paiva disse...

Bacana, Abílio, essa pequena fresta de intensa luz. Falar do que nos afronta, amesquinha e não pode ser esquecido,e mesmo aí liberar espaços de liberdade, de crítica, de destinação outra. A partir de um ponto qualquer atingir um outro ponto, pensar em movimento permanente, tal o que você fez e não poderia deixar de fazer diante do livro do Emediato, todo um contra-discurso à acomodação e ao silenciamento.

21 de março de 2012 às 20:10
Anônimo disse...

O referido artigo expõe muito bem a obra e aproxima mais leitores ao contato com o trabalho.

24 de março de 2012 às 09:06
Maria Olindina disse...

Olá, Nilza Amaral.
Vi o seu comentário e pensei: essa questão parece se impor, essencialmente à psicologia: embora particularizada em relação ao adulto, diferenciada em seu processo evolutivo, QUEM É A CRIANÇA?

25 de março de 2012 às 03:11

Postar um comentário

Seja educado. Comentários de teor ofensivo serão deletados.