Sobre viver e saber
Entre as racionalidades empiristas e racionalistas das luzes modernas e a esquizofrenia cognitiva da contemporaneidade. É aí que estou, na jornada em busca do saber, do conhecer, do experimentar. Perguntas se
acumulam numa velocidade extrema e se entrelaçam numa complexidade caótica. Neste emaranhado de conceitos e teses sucumbo e perco as noções mais básicas de realidade e o mínimo sentido que possa me orientar. Quem sou eu? onde estou? Qual é o meu tempo?
Poupe-me neófita. Cale-se, sinta a proximidade com o mais longínquo, a abertura dos portais de todos os tempos, a espacialidade em sua plasticidade infinita e a imaterialidade de seu novo ser. É chegado o momento para que compreendas que tudo o que a humanidade mais buscou durante séculos, seja pelos saberes mágicos ou pelo conhecimento canônico foi alcançado, para a desgraça e miséria da humanidade. Não há mais volta. De tanto buscarem saber sobre o que não lhes é dado, sereis entregues a confusão, a loucura, ao descaminho. Mas agora, sem mestras(es) e livros sagrados, sem profecias e possibilidades novas. A infinita e perene condição de possuir um cabedal de conhecimento inumerável e a incapacidade de retê-lo e com ele fazer a alquimia da vida. Terás o que sempre quis, a mais ampla e completa liberdade, mas em troca perderás o domínio sobre si e sobre tudo o que há neste mundo.
Assusto-me com as vozes da eternidade que latejam sobre minha dolorida mente. Lembro-me da minha infância. De como era bom estar por ali, protegida e cuidada pelos olhares adultos. De como o mundo e a vida eram tão simples, bastava chorar e fazer chantagem com a mamãe e meus desejos eram atendidos. Mas já sentia falta da liberdade. Como se já tivesse algo em nossas almas que pulsasse, nos fazendo pedir voz e espaço, atenção, respeito, direito a participar e deliberar. Entre uma queda de dente e uma consulta ao pediatra, tinha uma vida administrada, embora não tivesse consciência de como operavam todas aquelas coisas.
Vieram os anos juvenis, de repente, já não era mais dona de meu corpo. Da pequena estrelinha, me tornava uma figura alta e magra, que já não passava mais de pé no banheiro de casa. Para olhar no espelho já tinha que me abaixar. Já não era eu, queria minha infância de volta. Os adjetivos diminutivos foram embora e agora era apenas chamada de rebelde sem causa. Uma contradição em termos, que respondia prontamente ser absurda, uma vez que só podem haver rebeldes com causas.
Sedenta por tentar entender o que acontecia, o que já se foi e poder prever o que viria, adentrava o meu mundinho particular, meu quarto era a salvação de todo o perigo exterior, e o local onde podia acender meus incensos indianos, ler meus livros de astrologia e preparar meus estudos bíblicos semanais. A biblioteca era meu cantinho secreto, no qual aos meus 14 anos tinham acesso ao lícito e impudico, onde as heresias poderiam ser cometidas secretamente, em meio a fileiras intermináveis de livros. A apostasia e o ateísmo vieram para fazer desabar as bases de tudo o que eu acreditava ser o saber mais puro e verdadeiro até então.
Anos confusos, românticos, inseguros. Nada era certo, quase tudo, sonhos possíveis de serem imaginados e imoralmente chocantes se fossem falados. Mas eu não queria regras. Até ali só tinha me levado ao erro. Agora eu queria experimentar, desmontar, destruir, indefinidamente, sem rumos.
A expulsão, o exílio, estava feito o cenário ideal para colocar em prática, no laboratório da vida, minhas novas crenças desconcertantes. Só não sabia até então, que já não teria possibilidade de jogar o rascunho no lixo e reescrever de novo aquelas histórias. E as marcas da vida, as consequências de minhas escolhas passam a ser minha preocupação central. Ora, nada que os manuais sobre a vida administrada não pudessem dar conta, e deram por algum tempo. Dando uma sensação de segurança perigosa, do tipo que nos leva a estagnar e abandonar os velhos sonhos juvenis.
Mas a roda do destino não cessa, e mais um "mundo" me faz despencar e com todas as "novas" premissas de vida. Remédios não faltam, de vela branca ao anjo da guarda ao mais novo livro de 7 passos para a felicidade eterna. Trocava meus ídolos, mas continuava uma ingênua idólatra, agora com um toque de amargor, fruto das experiências e vivências que a escola da vida te ensina compulsoriamente, mesmo sem você se matricular em um dos cursos. E a nota? ha ha ha , nunca saberá, pois a cada vez que olhares para trás se tornarás como a esposa de Ló, uma estátua de sal, incapaz de retornar ao que se passou e vê-lo de forma a reconhecer o que se foi.
Insistente e desobediente, acabo por ter que repassar por algumas vezes algumas lições, até que possa ser lançada ao próximo nível, com mais duras e deliciosas experiências e o sepultamento de tudo que já se foi. Já mulher feita, dou-me conta de que trago nessa viagem uma coleção de retratos, dos quais não lembro bem o nome. Perfumes, de flores que já foram extintas. Roupagens sociais, que já não cabem mais no espírito que me movimenta. Mais uma tormenta, o saber e o esquecimento, dois anjos que andam de mãos dadas e irão me acompanhar até que meus despojos sejam entregues aos vermes.
Caminho mais calma, serena, guardo a espada que usei em tantas lutas. Em alguns momentos de risco, tiro apressadamente e começo a dar golpes contra o ar, insanamente, desnecessariamente e sem nenhum resultado além do desgaste físico e emocional. Chega agora, a consciência do desgaste. Do tempo que escorre entre minhas mãos e na vagas lembranças lutas incríveis, percas irrecuperáveis e o silêncio imobilizador a me dizer que a cautela e a perspicácia podem ser as maiores armas de uma guerreira do conhecimento.
Olho pela janela, já entregam as flores, vivem os amores, tratam os horrores e eu aqui, a olhar no espelho, e ver as marcas que a vida deixou, a derramar lágrimas de felicidade, por ver concretizadas algumas de minha ambições inconfessáveis.
Numa súbita síntese, começo a enxergar por um momento, como pude construir muito mais do que algum dia pensei e de como sou puxada para ir para frente, por uma uma força desconhecida. No encanto do viver para o saber, saber para viver, aprendo que se houver força, desejo, pulsão, o tempo há de te levar, cedo ou tarde a muitos dos lugares que quisestes e depois te trazer de volta à casinha com flores na janela, onde a simplicidade da vida cotidiana pode ser a mais complexa demonstração da capacidade de realização humana, quando busca-se o saber.
Tatyane Estrela é graduanda no Bacharelado em Ciências e Humanidades e no Bacharelado e Licenciatura em Filosofia na Universidade Federal do ABC. Integrante do grupo de pesquisa ABC das Diversidades. Bolsista de iniciação científica do CNPQ, no qual desenvolve pesquisa com o seguinte tema: Formação e atuação de entidades de representação LGBT no grande ABC: Impactos na formulação de políticas públicas.
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