Criar: ler, interpretar e transcender
Você não está me entendendo! Quando digo tal coisa quero na verdade exprimir a sensação X sobre um fato Y. Isso é tão claro! Mas se quiser eu desenho. Bem, não sou tão boa em desenho, terei que pensar em outra alternativa. Que tal uma apresentação performática? Um vídeo, ou talvez uma canção que possa tocar-lhe a consciência de modo a tornar-me compreensível? Bem que você poderia ter um pouco de capacidade imaginativa, habilidade hermenêutica e aprender a distinguir entre a leitura literal e a interpretativa.
Não tente me enquadrar em suas categorias simplificadoras, em sua lógica formal ou em suas estruturas analíticas pré-formatadas. Nem sou sólida, para permitir que possa me erigir, nem líquida, para que possa submergir. Se pudesse definir meu estado atual, diria que sou gasosa. Em alguns momentos me apresento de forma a tomar conta do espaço por meio de uma aparência concreta, como um gás venenoso, de cheiro indesejável e de tom fúnebre, capaz de afastar qualquer ente que se move. Em outros, uma sutil substância, doce e envolvente, imperceptível a olho nu, que despe e encanta as criaturas que tentam esconder-se por trás de suas vestes brancas. Para logo após, desmaterializá-las e levá-las ao sublime estado da criatividade incontrolável e ao desejo insaciável de colocar para fora tudo o que pensam constituir suas máscaras identitárias.
E se não me faço entender, é por que não é meu papel executar tal tarefa, mas você, caro recipiente, que deve se mover e criar estratégias para fazer-me caber dentro de ti, de sua pequenez desprezível, de sua grandeza genial, de seu analfabetismo na arte de decifrar enigmas ou de sua habilidade em traduzir os códigos que se escondem nos manuais da existência zumbi.
A mim, cabe apenas devorar-lhe e incomodar-lhe, a ponto de gerar em você, o desejo de possuir um pouco do estado no qual você é capaz de me consumir. Na quantidade recomendada pela medicina tradicional, para que eu não seja nem tóxica ao seu organismo, nem mera medida homeopática que não lhe possa trazer um pouco da contaminação que cura.
Longe de ser mera comunicóloga, sou expressionista, sujeita que apenas quer derramar um pouco do que transborda em seu ser mítico. Coube-me desde o início de meu treinamento, manejar o indizível, conhecer as poções que dão forma as emoções, regozijar com os cânticos do silêncio, me entreter com o vazio das palavras soltas nos corredores dessa curta jornada. Num processo perigoso e atrevido, levar as ideias ao máximo da radicalidade (im)possível, manejar as paixões com as regras da gestão burocrática e subverter a fé, de modo a exercitar a incredulidade intensamente e levá-la ao seu mais alto nível, escondida sobre o hábito sagrado da ordem na qual decidi entregar toda a minha líbido, para a glória e misérias, daquel@s que regozijam com o expediente deletério que alimenta suas pulsões de morte.
E é claro que as coisas moventes e falantes não vão entender o papel criador que lhes cabe. Pois, ansiosas e descontroladas, apenas querem guardar para si, o que não podem digerir, e que em pouco tempo se torna coisa putrefada. Apenas quando se derem conta, se é que o podem fazer, do triste diagnóstico, no qual só a ação pode curar o câncer que as corrói, poderão ler o que lhes é apresentado, interpretar o que jamais será dito e transcender a miséria que tem dominado as "mentes pensantes" necrosadas que habitam o "mundo das ideias".
Tatyane Estrela é graduanda no Bacharelado em Ciências e Humanidades e no Bacharelado e Licenciatura em Filosofia na Universidade Federal do ABC. Integrante do grupo de pesquisa ABC das Diversidades. Bolsista de iniciação científica do CNPQ, no qual desenvolve pesquisa com o seguinte tema: Formação e atuação de entidades de representação LGBT no grande ABC: Impactos na formulação de políticas públicas.
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