Repouso
Três imagens: sapatos, facas e cruzes. Seu ladeamento é uma
proposição expográfica dada pela curadoria ou teria Andy Warhol concebido esta
série de objetos fotográficos com a finalidade de mostra-los em conjunto? Essa
é a pergunta que me ficou após percorrer os olhos pelas suas trezentas
fotografias em Polaroid expostas no Museu da Imagem e do Som de São Paulo.
Recebidos na entrada por uma grande reprodução de seu famoso autorretrato
acompanhado pelo nosso futuro garantido, uma caveira, adentramos uma espécie de
arena expositiva. Nela, grupos de polaroides emolduradas sobre cada parede.
Cada linha (ou fileira) de imagens possui um recorte específico: celebridades
num andar, pequenas narrativas domésticas em outro, objetos banais mais abaixo.
A produção fotográfica de Warhol, portanto, é dividida como os gêneros da
tradição clássica: obras históricas, paisagem e natureza-morta, cada um tem um
espaço diferenciado.
Voltando ao trio de imagens que me feriram. Dez sapatos
preenchem uma composição em um inventário de ângulos. Poderíamos chama-los de “calçados
femininos”, vista a pesquisa do artista sobre os muros que separam o masculino do
feminino? Uma constância: saltos dos mais diversos tamanhos. Aquilo que
amortece é também o que fere a estrutura óssea do corpo humano. O objeto que
poderia ser tachado por banal e impessoal ganha uma segunda camada quando se
repara que sobre ele há uma palavra inscrita – Halston, em letras capitais. Uma
grife, um estilista, um amigo de Warhol; a imagem é, então, monumento e
publicidade.
Do lado oposto desta fotografia, cruzes e a ausência da
pesquisa pela tridimensionalidade aparente. Não há variação, apenas certeza:
doze vezes a morte, preto sobre o branco. Sem surpresas, um estudo sobre o
óbvio e uma pesquisa formal sobre uma das imagens mais recorrentes da história
da arte. O cemitério se transforma em grade.
Entre estas duas imagens, uma terceira somada a uma questão: qual
das polaroides que Warhol produziu sobre estas facas que se encontrava exposta?
Tento recorrer à memória, mas não as alcanço com exatidão. Nem mesmo a Internet,
suas buscas e seu excesso de informações me dão a garantia da imagem exposta.
Fico na dúvida entre duas fotografias. Na primeira, uma fileira de facas posa
para a fotografia e temos a organização serial comum à poética do artista. Na
outra, um “retrato de casal” com um ser mais mortal que o outro. A lentidão pontiaguda
do salto alto faz um contraponto com a velocidade de dano proporcionado por
esta extremidade de metal.
O esforço pela lembrança de uma imagem agonia, mas é sintomático. O que é possível lembrar após esta avalanche de pequenas imagens de 9x11 centímetros? Diremos, talvez, que fitamos por mais tempo as personalidades que Warhol registra: Schwarzenegger, Lisa Minelli, Debbie Harry, sua própria imagem... e os pseudoanônimos? E os integrantes do seu círculo social que nos chegaram devido ao seu clique e que não reverberaram no cinema, na música pop e nas artes visuais como criadores? Possuem nome e sobrenome escritos na placa de um museu, mas talvez apenas Warhol fosse capaz de recitar a biografia de cada um. Eles são tão fantasmas quanto os fotografados distantes da lente nas primeiras experiências do século XIX ou como aqueles encontrados nos álbuns de família cujos nomes escapam à lembrança de nossas mães.
As polaroides de Andy Warhol são como estes calçados com salto alto: elevam o status das imagens registradas, as alavancando como arte emoldurada tal qual um altar faz com um objeto sagrado. Todos estes nomes, porém, serão esfaqueados pela malícia do tempo e da História. A queda do salto é certeira e só restará o repouso - tão silencioso como uma fotografia.
(a exposição "Superfície Polaroides (1969-1986)" está em cartaz no Museu da Imagem e do Som de São Paulo até 24 de junho)
Raphael Fonseca é crítico e historiador da arte. Bacharel em História da Arte pela UERJ, com mestrado na mesma área pela UNICAMP. Professor de Artes Visuais no Colégio Pedro II (RJ). Curador de mostras e festivais de cinema como “Commedia all’italiana” (Caixa Cultural de Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo, 2011) e "Cinema pós-iugoslavo" (Caixa Cultural de São Paulo, 2012). Membro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas (ANPAP).
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