terça-feira, 19 de junho de 2012

Metamorfose ambulante




Aconteceu numa dessas adoráveis dinâmicas de grupo. Desses agradáveis processos de seleção de emprego. Recebi a missão – impossível – de escrever sobre mim em dez minutos. Por pouco não ouvi a célebre musiquinha do filme. Por pouco não me vi pendurado naqueles cabinhos de aço feito o Ethan Hunt. A um espirro de disparar involuntariamente o alarme. Só que eu não sou agente secreto. Nem levo o menor jeito pra Tom Cruise.

Mas missão dada é missão cumprida.

Então resolvi, sabe-se lá o motivo, não rabiscar uma linha que fosse a respeito da minha pessoa. Achei melhor revelar quem eu não era.

Comecei com um taxativo eu-não-sou-cachorro-não. Para entenderem de uma vez que eu não merecia ser desprezado nem humilhado. Depois lembrei que também não era a mosca que tinha pousado na sopa do gerente e zunzunzumbizado seu sono à noite. Portanto, não precisavam me dedetizar ou atirar o chinelo na minha direção.

Insisti na listinha de não-sous. Não sou o bom. O dono da festa e do carro vermelho. O número um dos dez mais. O mocinho que não usa espelho pra se pentear. A luz das estrelas. A cor do luar. As coisas da vida. A coisa da vida. O medo do fraco. A força da imaginação. O blefe do escritor. O maluco-beleza. O início, o fim e o meio.

Tempo quase esgotado, terminei meu breve currículo de desfaçanhas com um lapidar não-sou-amigo-do-rei. Não sou amigo do rei. E ponto final.

Entreguei o papel à moreninha de tailleur e deixei a sala igualmente aliviado e cabisbaixo, com a impressão de que não seria escolhido para o cargo.

De que deveria sair dali e comprar logo minha passagem pra Pasárgada. 








Fábio Flora é autor de Segundas estórias: uma leitura sobre Joãozito Guimarães Rosa (Quartet, 2008) e escreve no blog Pasmatório (http://pasmatorio.blogspot.com.br).





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