Abraçar o capeta
http://www.youtube.com/watch?v=bIlLq4BqGdg |
A primeira imagem dos três
minutos e meio de videoclipe já se coloca como o dedo que dá o primeiro
empurrão numa longa fileira de dominós: a cantora aparece de olhos fechados, ao
passo que uma mão arruma um polvo cenográfico sobre sua cabeça. Essa espécie de
barreira transparente entre “ficção” e “realidade” é central à narrativa aqui
proposta já que a todo o momento a direção de Joseph Cahill coloca em primeiro
plano os artifícios da linguagem audiovisual – seja através de efeitos digitais
pixelados, seja através da presença da equipe de iluminação que se transforma
em um discreto grupo de dançarinos. Nenhum ato se dá de modo falsamente espontâneo
e o valor de palavras como “consciente” e “inconsciente” é questionado.
Assim como a sinuosidade dos
tentáculos de um polvo, os movimentos de câmera em sequência soam estranhos,
assimétricos, bruscos talvez. Mas poderíamos dizer algo diferente sobre as
dúvidas que pairam sobre as nossas mentes no momento anterior às decisões que
tomamos? Essa instabilidade da imagem não seria proporcional ao nosso desejado
e diário encontro com o sono, este momento em que entregamos nosso corpo ao
encontro do inesperado e a caixa craniana se torna um palco onde sonhos e
pesadelos são encenados?
Nosso cérebro é como o labirinto
do Minotauro: sua matéria é arenosa e está prestes a se dissolver, assim como
qualquer peça sabidamente ficcional e/ou mitológica. De todo modo, porém, não é
de nosso desejo nos desfazer do lugar onírico e mais confortável em que este
nos coloca, uma espécie de fuga do real. Neste sentido, o fato da cantora
aparecer ao lado de um Minotauro e mesmo abraça-lo ao final desta sucessão de
imagens pode vir a ganhar uma outra leitura: entremos nos labirintos e façamos
a substituição da batalha contra os demônios por um abraço - abracemos o
capeta.
Esse extenso número de amarras
dos polvos também pode ser comparado metaforicamente às cordas que sustentam
uma marionete. Não à toa, em diversos momentos do clipe, luzes, tal qual lasers,
saem do corpo de Fiona Apple. No lugar de controlar seus movimentos, estas
cordas se projetam pelo espaço como um asterisco deixando suas pontas soltas
para que o espectador as una de algum modo ou creia em uma espécie de
aleatoriedade “surreal” quanto à captura e edição de imagens.
Estas retas são as mesmas que
protagonizam o relógio presente no videoclipe e também em outro tic-tac nem tão
distante, no curta-metragem “O cão andaluz”, de Luis Buñuel e Salvador Dalí, de
1928. Estes ponteiros são os que aparecem de modo literal através do título do
filme de Stephen Daldry, “As horas”, de 2002. Como não se lembrar da sequência
em que a personagem de Julianne Moore, Laura Brown, vê seu quarto ser inundado
por dúvidas?
A estrutura mecânica que
possibilita o funcionamento de um relógio à semelhante àquela que torna
possível uma caixinha de música. “Every single night” tem sua estrutura
melódica baseada nestas composições feitas para pequenos objetos. Através de seu canto somado à profusão de
imagens de seu videoclipe, mais fechaduras do que chaves, nos colocamos ao seu
lado e bailamos em torno de nosso próprio eixo. Em círculos, iludimos nossos
cérebros e dizemos que “está tudo bem”.
Raphael Fonseca é crítico e historiador da arte. Doutorando em História e Crítica da Arte pela UERJ. Bacharel em História da Arte pela UERJ, com mestrado na mesma área pela UNICAMP. Professor de Artes Visuais no Colégio Pedro II (RJ). Curador de mostras e festivais de cinema como “Commedia all’italiana” (Caixa Cultural de Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo, 2011) e "Cinema pós-iugoslavo" (Caixa Cultural de São Paulo, 2012). Membro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas (ANPAP) e da Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA).
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