O valor das coisas e da memória em “Horas de Verão”
O valor das coisas e da memória em “Horas de Verão”
“Pois memória eprofundidade são o mesmo, ou antes, a profundidade não pode ser alcançada pelo homem a não ser através da recordação”.
Hannah Arendt
Se algumas lembranças são valiosas para alguns, o filme do diretor francês Oliver Assayas, Horas de Verão (L’Heure d’Étè, França), é marcante e faz justiça à discussão dos valores nele tratados. O filme toca em algo caro para os indivíduos e para as sociedades: a "memória" e o valor dado às coisas. A película faz parte de um projeto promovido pelo Musée D'Orsay para celebrar seus vinte anos de existência mas, em vez de fazer um trabalho para justificar a inclusão da instituição na história, Assayas preferiu discutir com naturalidade o peso e a importância do legado deixado pela família. Algumas questões são levantadas, tais como: Qual é o valor dascoisas para cada um? O que define nossas origens e com quem e/ou com o que nos identificamos? Nossas memórias nos referenciam e referenciamos as coisas denossas memórias? Há ambiguidade dentro de nós?
O enredo gira em torno de uma família que, assim como tantas outras, tem seus membros dispersados devido aos novos rumos tomados em suas vidas. A matriarca, Hélène Berthier (Edith Scob), mora em uma linda casa de campo, próxima a Paris, onde há belas e raras obras de arte, telas e objetos assinados por artistas que se tornaram ícones da arte moderna francesa, como Odilon Redon, Edgar Degas e Louis Majorelle. O proprietário anterior da casa era Paul Berthier, um renomado pintor da viragem do século XIX para o XX, há muito falecido e tio de Hélène. Para os filhos, a relação da mãe com o “Monseiur Berthier” era de caráter duvidoso e muito se suspeitava de um romance proibido. A lembrança do tio de Hèléne paira como um fantasma sobre a família. Contudo, certamente ela lhe devotou uma vida de cuidados em relação à sua memória: durante anos se dedicara a preservar seu legado: telas, cadernos de desenhos e anotações, a coleção de objetos de arte de outros artistas. O que perturba a detentora de tal espólio é o “peso” da herança que deixará a seus filhos e netos após sua morte.
Odilon Redon, Painel decorativo floral, c.1902, Rijksmuseum Twenthe, Enschede, Holanda
Num dia quente e ensolarado de verão, a matriarca, para comemorar seu 75°aniversário, recebe seus três filhos, Fréderic (Charles Berling), Jerémie (Jerèmie Renier) e Adriènne (Juliette Binoche) e seus netos para um dia de confraternização em casa, com um belo e descontraído almoço. Ao fim do dia, todos se vão e a mãe se vê só na velha casa cheia de memórias.
Cena do filme "Horas de Verão": a família da matriarca Hèlene Berthier (Édith Scob) reunida numa tarde de verão
Em uma conversa com o filho mais velho, Fréderic – o único dos três filhos que ainda reside na França – a mãe desabafa sobre o temor de ver todos aqueles objetos carregados de memórias afetivas e de um significado de relevância artística seperderem após seu fim e lhe comunica das disposições da sucessão. Não tarda muito para que Hélène venha a falecer.
Hélène se foi e a casa, território do passado, fica. Como preservar lembranças hereditárias? Como conciliá-las com o novo? É o que Assays questiona neste conto, uma reflexão sobre a passagem do tempo. A história retrata a decisão dos três irmãos, que tentam entrar em um consenso sobre o que ser feito da herança e o que convém ou não para cada um. Fréderic é o primogênito, economista que leciona em uma universidade de Paris, e muito apegado ao passado. Deseja ser fiel ao desejo da mãe de manter a casa e seus objetos, preservando a memória de Paul Berthier e da família, defendendo a ideia de que seus filhos e sobrinhos poderão, no futuro, usufruir daquele lugar. Adriènne, afilha do meio, é designer de uma empresa japonesa de objetos de design minimalista - o que a faz entrar em choque com relação à funcionalidade dos objetos e o valor estético e artístico cultivado pela mãe - vive em Nova Iorque e está noiva de um norte-americano. É a favor da venda de sua parte na herança, porque não tem expectativas de retornar ao país de origem com frequência para aproveitar a casa. Jerémie, o irmão caçula, vive com a mulher e os filhos na China - onde estão os bons negócios -, trabalha para uma multinacional. Coloca-se, mesmo que um tanto constrangido, a favor da vendado imóvel e do acervo, uma vez que não mora mais na França e que retornaria poucas vezes à Europa, não tirando tanto proveito da casa quanto do dinheiro. Assim como Adriènne, ele considera mais prudente vender os pertences da família, resolvendo a questão.
Cena do filme "Horas de Verão": Hèlene (Édith Scob) só, em sua "casa-museu" repleta de memórias após os filhos e netos irem embora
Depois de meses para solucionar a celeuma entre os herdeiros, é decididovender a casa e os objetos que nela “habitam”. Mas como fazer isto? Frédericanseia fazer a partilha dos bens de forma que não pudesse afrontar a memória damãe. Adriènne é a favor de vender para o Metropolitan Museum of New York oscadernos de desenhos do tio-avô. O museu norte-americano havia manifestadointeresse em comprar alguns fólios dos cadernos de Paul Berthier, mas não oconjunto das obras - esta relíquia da família, a pedidos da velha matriarca,não deveria ter seus itens jamais separados. Os filhos escolhem os objetos quetem mais significado para si e os levam como “suvenires”, como uma lembrança deuma bela viagem e de um verão que jamais voltará. Os itens de maior valorestético da coleção de arte, como vasos de Majorelle, uma escrivaninha emestilo art nouveau, uma escultura de Edgar Degas e um painel decorativo deOdilon Redon são adquiridos pelo Musée D’Orsay.
Escrivaninha com motivos de orquídeas de moguino projetada e manufaturada pelo disigner Louis Majorelle, c.1902-1903, Musée d'Orsay, Paris
O próprio filme provoca sensações e lembranças particulares em cada espectador. Assays destaca a relatividade dos sentidos e dos valores. O que, para a família, está carregado de relevância e simbologia, para o museu ou para as pessoas que o visitam, pode ser apenas um objeto ordinário, com uma relevância estética, porém apenas uma escrivaninha ou um vaso. Porém, inseridos na casa de onde vieram, eram muito mais do que isso. A antiga governanta dac asa, Eloíse (Isabelle Sadoyan) também leva para si uma “lembrancinha”. Pega um vaso muito significativo, onde costumava colocar flores, sem saber que o mesmo é valiosíssimo, fazendo parte de um par com alta assinatura artística. Quando representantes do Musée D’Orsay vão à casa dos Bérthier para escolher os objetos a serem incorporados aoacervo, notam que falta o par do conjunto de vasos de Majorelle, um exemplar do disign art nouveau francês. O outro vaso acaba em exposição no museu.
Aliás, a questão da arte também é debatida, tanto com relação ao vaso de Eloíse, o vaso enquanto objeto que terá sua função eternizada por ela em sua casa, em oposição ao vaso sem funcionalidade prática, mas como objeto de fruição estética, emexposição no museu de arte, assim como outros móveis da residência que, igualmente, vão parar no museu. Uma bela cena é quando Frédéric e a esposa “visitam” seus antigos móveis no museu. Discute-se como algo que é tão prosaico adquire relevância por ter sido feito por tal artista e, ao mesmo tempo, pode ser apenas um objeto que remete a uma saudade ou uma lembrança, para quem não tem conhecimento exato de quem o fez. Em outra cena, diante de uma peça quebrada de Degas, que se encontrava guardada há anos no fundo de um armário, alguém sentencia que já não é mais possível recuperá-la. Mais tarde, quando amesma obra for vista na sala de restauração do D’Orsay, quase completamente restaurada, ficará a lição de que nem tudo é definitivo na vida.
Edgar Degas, Dançarina olhando a sua sola do pé direito, bronze, modelado entre 1896-1911, Musée D'Orsay, Paris
Outro destaque é o trabalho do diretor de fotografia Eric Gautier, inestimável neste passeio pelas galerias de memórias da família Bérthier. É como se fosse o guia turístico pela museologia da família. Em planos de média e longa duração, ele passa pelos corredores da casa de campo, registra móveis, pinturas, cerâmicas, filhos, netos, cunhadas. O cineasta está tão interessado nas pessoas quanto nos objetos, que parecem ter vida própria. Além disso, o filme aborda a questão da dualidade pessoal de cada um dos personagens. O velho se contrasta com o novo a todo momento. Frédéric, que é economista, é ironicamente a favorde manter a casa e os objetos, está preso àquele passado, àquelas memórias sendo, neste sentido, conservador. Ao mesmo tempo, fuma maconha e toma cerveja com o filho no meio da tarde, segundo sua própria filha. Adrienne, a "artista" e supostamente a “rebelde” da família, que mora em Nova Iorque, recolhe para si apenas alguns poucos utensílios da casa e é pouco apegada à memória familiar evocada pela casa e pela mãe. Já é mais nova-iorquina do que francesa. Em uma cena do almoço de família, ela para se auto-designar “moderna” aponta para os pés que calçam um tênis “all-star converse”, produto que simboliza o sentido de consumo e de pretensa modernidade e irreverência da “América”. Ela se coloca a favor de vender até os cadernos de desenhos do tio-avô, que não deveriam ser desmembrados. Nesse sentido, Adriènne se mostra desapegada à tradição, não é zelosa quanto ao significado daquilo. Assim, os personagens se contradizem, se degladiam com suas ambivalências. A película conta com muita delicadeza esses conflitos e não deixa para o público a interpretação de muitas metáforas e “entrelinhas”.
Cena do filme "Horas de Verão": Hèlene (Édith Scob) e a filha Adrienne (Juliette Binoche) - choque de gerações e visões de mundo, a tradição em confronto com o novo
O final arrebata e mostra, com uma bonita sutileza, o contraste do novo e doantigo, e como as pessoas e seus valores hoje em dia se renovam com uma rapidez avassaladora, deixando com que recordações passem de maneira fustigante pelamente. Talvez isso seja bom, talvez seja ruim. O fato é que as lembranças sempre estão lá, com o valor que cada um atribui a elas. Algumas lembranças ficam cristalizadas em um lugar privilegiado da memória, outras se tornam reminiscências, outras tantas desaparecem para que novas lembranças registrem novas vivências, novas histórias. É importante dizer que memória é uma resultante de seleções, escolhemos quais memórias desejamos preservar, assim como selecionamos o que é oportuno esquecer.
Cena do filme "Horas de Verão": Renier, Juliette e Berling como os irmãos às voltas com a linha tênue que distingue a herança do ônus -um problema deles, e de toda a Europa
Construindo a trama em pequenos detalhes, numa atmosfera inspirada tanto no escritor russo Anton Tchekov, como no cineasta francês Eric Rohmer, Assays explora, sobretudo,o estado do mundo globalizado, com a família separada em países distantes e sem vínculos profundos (uma das questões de nossa "modernidade líquida", segundo Zygmunt Baumann). O diretor traça o retrato da morte da velha e emblemáticaFrança, histórica, soberana e memorável, diante da fugacidade do mundo daglobalização, de grandes fluxos de informação, de consumo desenfreado e de lembranças efêmeras. Se à primeira vista Horas de Verão parece um filme pequeno, suas reflexões sobre aperda, legado e a família são capazes de comover o espectador profundamente, mostrando que obras-primas são como os melhores perfumes que estão nos menores frascos.
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Reflexões sobre a Memória e os objetos em Horas de Verão
Nesta segunda parte das reflexões sobre o filme Horas de Verão, de Olivier Assays, vamos tratar, mais detidamente e com embasamentoteórico, de conceitos que parecem ter grande relevância que norteiam a trama: a memória do passado - como meio de reforçar a identidade dos indivíduos -, ascoisas que referenciam a memória - tendo os objetos como elementos que são subjetivados e significados para referenciar a memória - e o que caracteriza osobjetos, o que os subjetiva ou objetiva, o que lhes confere valor emocional e/ou estético, como se fetichizam.
Segundo o historiador Jacques Le Goff, em sua obra História e Memória, a Memória, no sentido primeiro da expressão, é a presença dopassado. A memória é uma construção psíquica e intelectual que acarreta de fatouma representação seletiva do passado, que nunca é somente aquela do indivíduo,mas de um indivíduo inserido num contexto familiar, social, nacional.“A memória como propriedade de conservar certas informações, remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa comopassadas.” (LE GOFF, 2003, p.419).
A memória que é cara à História é a coletiva, que se refere às lembranças preservadas de certos eventos que importam a um conjunto de pessoas, a uma sociedade, a uma civilização, pode ser preservada por meio de um sistema oral, como é comum emsociedades africanas ou do oriente, ou pela escrita, como se tornou uma tradição no ocidente. As memórias familiares costumam ser perpetuadas oralmente, de geração a geração, mas podem tomar concretude em objetos mais diversos, utensílios, álbuns de fotografia, diários, cartas, postais etc. Muitas memórias individuais, familiares ou de pequenos grupos, dependendo do contexto, podem servir como referência para uma memória social, porém seus sentidos ou significâncias podem variar. A memória, com suas faculdades, tem o poder de reforçar as identidades e construir outras tantas por meio de imagens e de significantes fixados na consciência e no inconsciente dos indivíduos,eterniza fatos e narrativas, constitui referências por meio de situações, pessoas, coisas e lugares. No filme de Assays, a memória familiar dospersonagens é concentrada na casa da falecida matriarca e todos os objetos que lá “vivificam” e, mais do que isto, evocam o passado vinculado à trajetória artística de Paul Berthier, tio de Hèléne.
Objetos comuns são investidos da função de “lugares de memória”
Conforme o sentido atribuído pela antropologia, o lugar se caracteriza por garantir simultaneamente identidade, relações e história em comum aos membros de um determinado grupo; provê e impõe um conjunto de referências que, ao desaparecer, é de difícil substituição. Esta é a ideia, parcialmente materializada, de que os habitantes têm de suas relações com o seu território, com suas coisas, suas famílias e com os outros. A questão da memória ou memórias referenciadas por lugares e objetos (lugares de memória) é discutida na obra Memóriae Sociedade: lembranças de velhos, da psicóloga social Ecléa Bosi. Para a autora, “Mais que um sentimento estético ou de utilidade, os objetos nos dão um assentamento à nossa posição no mundo, à nossa identidade. Mais que a da ordem e da beleza, falam à nossa alma em sua doce língua natal”. E continua o pensamento, “A ordem desse espaço povoado nos une e nos separada sociedade: é um elo familiar com sociedades do passado, pode nos defender da atual revivendo-nos outra. Quanto mais voltados ao uso cotidiano, mais expressivos são os objetos: os metais se arredondam, se ovalam, os cabos demadeira brilham pelo contato com as mãos, tudo perde as arestas e seabranda.” A esses objetos, prossegue Bosi, a semióloga Violette Morin chama de objetos biográficos, pois envelhecem junto com seu dono. “Cada um desses objetos representa uma experiência vivida. Penetrar na casa em que estão é conhecer as aventuras afetivas de seus moradores." (BOSI, 1994, p. 441).
Como podemos verificar em Horas de Verão, a "museologia" da casa reflete vidas que por lá passaram, o homem é a carcaça do tempo e os objetos são imbuídos de uma certa capacidade de rejuvenescência das memórias. A autora segue a reflexão sobre os objetos protocolares, aqueles que a moda valoriza, que não se enraízam nos interiores, não perecem ao tempo com seu dono, tem data de validade. Em oposição aos lugares antropológicos, onde se cria o que é organicamente social, o antropólogo Marc Augé, em sua obra O Sentido dos Outros, nos chama a atenção para aqueles lugares produtos do fenômeno da globalização, que pasteuriza as aparênciasassim como as identidades, a exemplo de comércios padronizados, precisamente decorados e mobiliados – como aeroportos, shoppings-centers, lojas de departamento e escritórios - onde o indivíduo não se reconhece, não seidentifica e nem se estabelece, os não-lugares. Estes não-lugares tem uma aparência agradável, porém são impessoais, sem uma história própria emarcante, sem um habitante a que imprime sua personalidade e alma. Ecléa Bosi conclui acerca da relação subjetiva do lugar e dos objetos com os indivíduos, da maneira como isso referencia a memória: “Temos com a casa e com a paisagem que a rodeia a comunicação silenciosa que marcanossas relações mais profundas. As coisas nos falam, sim, e por que exigir palavras de uma comunhão tão perfeita?” (BOSI, 1994, p.442).
Quanto à relação do simbólico dos objetos e seus vínculos com o cotidiano de grupos sociais, Flávio Leonel Abreu da Silveira e Manuel Ferreira de Lima, autores de “Por uma antropologia do objeto documental: entre a alma das coisas e coisificação do objeto”, afirmam que um objeto sempre remete a alguém ou algum lugar, o objeto fala sempre de um lugar, porque está ligado à experiência dos sujeitos. O objeto, ou a coisa mesmo, que circula enquanto algo praticado e ritualizado no corpo do social, mediante os atos queo fazem percorrer os complexos (des)caminhos da vida em sociedade, está repleto de sentidos e nexos compartilhados por aqueles que lhe atribuem valores e simbolismos, sendo que os mesmos emergem da própria experiência intersubjetiva das pessoas em interação entre si, e delas com o mundo. O objeto encerra sempre uma dimensão ético-estética, remetendo ao gesto humano de criar, confeccionar e operar com os mais variados objetos em lugares específicos,“É nesse sentidoque é possível falar numa memória que impregna e restitui 'a alma nas coisas', referida a uma paisagem (inter)subjetiva onde o objeto (re)situa o sujeito no mundo vivido mediante o trabalho da memória, ou ainda é da força e dinâmica da memória coletiva que o objeto, enquanto expressão da materialidade da cultura de um grupo social, remete à elasticidade da memória como forma de fortalecer os vínculos com o lugar, considerando as tensões próprias do esquecimento”. (SILVEIRA, 2005, p.3).
Para o antropólogo Alfred Gell, os objetos são encarados como pessoas, exatamente por essa capacidade de interrelacionar sujeitos, em interações pautadas em papéis de agência e paciência. Tais qualidades são dinâmicas e relacionais, variando de acordo com o ponto de vista adotado e com o tempo. Elas não são estanques e prédeterminadas ou inatas; elas se fazem no contexto da interação, sendo constantemente construídas.
Por fim, vamos falar sobre o que caracteriza ou distingue os objetos no âmbito das artes. No filme, um simples vaso tem suas funções e valores bem diversos, dependendo do contexto. Para a Eloíse, a fiel companheira de Hèléne, o objeto sempre serviu de recipiente para colocar flores e ela sequer imagina que a peça é singular não pela sua funcionalidade, mas por seus atributos estéticos e históricos, por receber uma assinatura de um artista que a distingue. Assim, o museu, instituição legitimadora, transforma aquele objeto de caráter ativo, utilizado cotidianamente para fins prosaicos, em um item de contemplação.
Vitrina expográfica com esculturas de Edgar Degas (A Pequena Bailarina de Catorze Anos, bronze, 1880-1881), Musée d’Orsay, Paris – foto: Beatriz Brasil, 2008
Um objeto é tomado como obra de arte quando tem importância na história da arte, devido a sua singularidade, ao seu contexto histórico, à técnica pela qual foi concebido e à assinatura artística, pode ou não ter uma funcionalidade prática, mas deve ser dotado de um sentido de fruição estética. Ele deve contribuir para a formação e desenvolvimento de uma cultura artística, tendo como referência um juízo que reconhece a qualidade artística da obra e dela reconhece, ao mesmo tempo, sua historicidade. Estes objetos “especiais” são privados de utilidade prática quando musealizados, seus valores são atribuídos por "mitos" ou tradições e são portadores de significados que dão consistência à memória coletiva, daqueles que institucionalizam o que é de relevância para a Arte.
Louis Majorelle, Lâmpada de mesa de Nênufar, c. 1902-1904, Musée D'Orsay, Paris
Para além da projeção afetiva, o objeto de caráter artístico recebe uma atribuição de distinção dos objetos ordinários, é de certa forma mistificado, éinvestido de uma “aura”, não passível de reprodutibilidade, no sentido benjaminiano, por um grupo qualificado de especialistas que julgam sua relevância e valor histórico e estético, conforme afirma o sociólogo Pierre Bourdieu: “O produtor do valor da obra de arte não é o artista, mas ocampo de produção enquanto universo de crença que produz o valor da obra de arte como fetiche ao produzir a crença no poder criador do artista. Sendo dado que a obra de arte só existe enquanto objeto simbólico dotado de valor se é conhecida e reconhecida, ou seja, socialmente instituída como obra de arte por espectadores dotados da disposição e da competência estratégicas necessárias para conhecer e reconhecer como tal, a ciência das obras tem por objeto não apenas a produção material da obra, mas também a produção do valor da obra ou,o que dá no mesmo, da crença no valor da obra”. (BOURDIEU, 1996, p.259).
Para Gell, uma teoria antropológica da arte se caracteriza não por uma análise dos objetos de arte em si mesmos, ou das instituições que afirmam ser tais objetos obras de arte, mas sim por uma investigação das relações sociais desenvolvidas/estabelecidas em torno das interações entre os sujeitos em função dos objetos; que relações os objetos de arte medeiam?
Galeria principal do Musée D'Orsay, em destaque: Hippolyte Moulin, Escavador de Pompéia, bronze, 1863; Alexandre Falguière, Vencedor de rinha de galos, bronze, 1864; e o Grande relógio da ala central
Para concluir, Horas de Verão nos remete em vários momentos à obra romanesca de Proust, “Em busca do Tempo Perdido”, que tem como temas centrais a memória, o valor atribuído às coisas e, em grande parte do romance, debruça-se sobre a natureza da arte. Quando a avó do narrador de “La Recherche” morre, a sua agonia é retratada como um lento desfazer; em particular, as suas memórias parecem ir-se evaporando dela, até já nada restar.
Retrato do romancista francês Marcel Proust e o detalhe da tradução inglesa de sua obra romanesca, "La Recherche du temps perdu" ao fundo. À frente, detalhe da escultura "O Beijo", de Auguste Rodin, mármore pentélico, executado por Ganier, Rigaud e Mathet. Na obra de Proust, obras de arte são constantemente citadas, e para o autor a contemplação da arte suscita percepções que suscitam "lugares de memória", tais percepções projetam a outras memórias, que possibilitam a "busca do tempo perdido". Como afirma Proust, “a verdadeira viagem não consiste em ver novas paisagens, mas sim, em ter novos olhos e olhares sob a mesma coisa”
No último volume, O Tempo Reencontrado, o autor utiliza uma analepse, e faz com que o narrador recue no tempo das suas memórias, em episódios desencadeados por recordações de cheiros, sons, paisagens ou mesmo sensações tácteis. Proust avança com uma teoria da arte em que todos somos potenciais artistas, se por arte entendemos transformar as experiências de vida do dia adia em algo revelador de maturidade e entendimento. E ainda, atira-se à tentativa ininterrupta de preencher um tempo vivido com o máximo de presença de pensamento, ou seja, de atualização, pois acreditava que todos nós não temos tempo para viver os verdadeiros dramas para os quais estamos destinados. Nesse sentido, a memória é o esforço para recuperar a experiência do passado contra um mundo que a reduz à pontualidade, procura refrescar e salvar o passado para servir ao presente e ao futuro, assim lhes doando referências, e é esta a mensagem mais profunda contida no filme.
In Ars Veritas
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Horas de Verão (L’Heure d’Été) Direção e Roteiro: Olivier Assays. Direção de Fotografia: Eric Gautier. Interpretes: Edith Scob, Charles Berling, Juliette Binoche, Jerèmie Renier, Isabelle Sadoyan e outros. França, 2008. 1 DVD (102 min). Horas de Verão (L’Heure d’Été). Direção e Roteiro: Olivier Assays. Direção de Fotografia: Eric Gautier. Interpretes: Edith Scob, Charles Berling, Juliette Binoche, Jerèmie Renier, Isabelle Sadoyan e outros. França, 2008. 1 DVD (102 min).
Trailler do filme Horas de Verão
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Mariana Zenaro é graduada e licenciada em História pelo Centro Universitário Fundação Santo André e bacharel em Comunicação Social, com ênfase em Jornalismo, pela Universidade Metodista de São Paulo. Tem Pós-Graduação, MBA em Bens Culturais: Cultura, Economia e Gestão, pela Fundação Getúlio Vargas. Frequentou os cursos livres de História da Arte na Escola do Museu de Arte de São Paulo (MASP) por dois anos e meio. Trabalhou em Museus, Arquivos e Instituições Culturais. Foi voluntária no Centro de Documentação e Biblioteca do Museu de Arte Moderna de São Paulo. Dá cursos e palestras sobre história da arte em fundações, centros culturais e no Centro de Capacitação para professores da rede pública municipal de São Caetano do Sul (CECAPE- SCS). Atualmente trabalha na divisão de pesquisa e produção da Difusão Cultural da Fundação Pró-Memória de São Caetano do Sul.
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