quinta-feira, 8 de novembro de 2012

"A MERCADORIA HUMANA" POR PEDRO MEDEIROS

    





Aproveitando o gancho da novela das nove, que está tratando do tráfico internacional de mulheres, a coluna desta semana mostra o ensaio fotográfico de Pedro Medeiros, fotógrafo português, intitulado justamente mercadoria humana. São imagens impactantes e de grande denúncia social. 

Cerca de 2,4 milhões de pessoas, em todo o mundo, sabem o que é ser vítima de tráfico sexual ou laboral, um negócio humilhante que rende milhões a quem o pratica. Para denunciar esta realidade, o fotógrafo Pedro Medeiros criou  fotografias que nos acordam para uma verdade inconveniente: há pessoas que são tratadas como se fossem objetos descartáveis. São fotografias incômodas, que nos convidam a refletir sobre o verdadeiro valor da vida humana nos dias de hoje, sobre o papel que a ética e a moralidade devem assumir.

Estirada numa prateleira de armazém, uma mulher seminua, com pele cor de amêndoa e olhos de ébano brilhantes, luta por se destacar entre os restantes bens consumíveis que aí se amontoam. Mas, tal como a natureza morta que a rodeia, o seu também está sem o fôlego da vida, igual a todos os outros produtos comerciáveis que todos os dias compramos a troco de um punhado de notas ou moedas. Apesar de estarmos perante um ser humano, o seu olhar vazio dá conta da sua existência descartável, bem ao jeito de quem está habituado a ser vítima do “compra, usa e joga fora” que fazemos rotineiramente com qualquer outro objeto.

 


Na imagem abaixo um cenário estéril e frio com um homem aconchegado em cima do prato de uma balança, como se fosse uma criança frágil procurando proteger-se do exterior que o ameaça. O seu peso é escrutinado, tal como antigamente se faziam aos escravos, para avaliar o quanto se pagará pelo produto, pela força de trabalho que ele contém. No entanto, e mais do que isso, parece que se nos mostra a “nova escravatura” dos tempos modernos, em que se traficam pessoas para fins laborais, para uma vida de semi-escravatura em qualquer campo agrícola, fábrica ou estaleiro de construção.

 


Anualmente, o tráfico de pessoas gera cerca de 32 milhões de dólares, isto a nível mundial. E no preciso momento em que o leitor lê estas palavras, estima-se que existam 2,4 milhões de pessoas que já foram vítimas de tráfico sexual ou laboral, sendo que 80 por cento delas destinaram-se a alimentar as redes internacionais de prostituição. Os trabalhos forçados e a semi-escravatura, em setores como os serviços domésticos, a construção civil, as indústrias têxtil e alimentar, a agricultura ou a pesca, preenchem 17 por cento do total.

Os dados são da agência da ONU para as Drogas e Crimes, a qual admite que estamos perante um cenário “degradante e humilhante” que assola quase todos os países do globo – seja como ponto de origem, trânsito ou destino. As mulheres acabam por ser as mais afetadas, perfazendo dois terços das pessoas vítimas de tráfico.

 


Em diversos relatórios internacionais, Portugal surge como um país de destino para o tráfico sexual, sendo que grande parte dele provém do Brasil. Mas no que se refere ao tráfico laboral, já surge como país de destino e origem. Com o agravamento da crise econômica e financeira estes fenômenos tendem a agravar-se.

Para combater este flagelo, os projetos de sensibilização assumem-se como ferramentas imprescindíveis, como o que foi desenvolvido pelo fotógrafo Pedro Medeiros a convite da associação Saúde em Português. Assim surgiu a instalação fotográfica Mercadoria Humana, composta por imagens que colocam o dedo na ferida e que pretendem “contribuir para o apoio às vítimas, a detecção de casos de tráfico humano, a denúncia de opressores e para uma maior informação e conscientização sobre o tráfico de seres humanos”, sintetiza o fotógrafo. Essencialmente, a idéia passa por gerar “um processo de responsabilização pública junto do maior número possível de cidadãos”, pois estamos perante um problema que não pode continuar a ser ignorado por aqueles que sabem que ele existe.

 


Perante a enorme “responsabilidade” de representar fotograficamente um “flagelo humano universal”, a tarefa que o fotógrafo tomou em mãos não pôde ser abordada de forma leviana. Para começar, teve que recorrer a atores para produzir as imagens. ”Tive, desde início, a absoluta consciência de que não queria fotografar as vítimas, pois trata-se de uma questão ética de proteção da sua identidade, de defesa da perseguição e tortura a que são sujeitas”. O passo seguinte consistiu na “construção de um imaginário fotográfico, de caráter performativo, que pudesse traduzir o esmagamento psicológico, a privação de identidade, a violência e opressão exercida sobre as vítimas de tráfico humano".




O resultado foi uma série de imagens que vão ao cerne da questão: essencialmente, todos os que são submetidos ao tráfico laboral e sexual são objetificados, rebaixados a meras peças de mercadoria e despidos de toda e qualquer condição humana. E tudo acontece debaixo da complacência dos honrados cidadãos.

A instalação esteve presente, ao longo de 2011, nas ruas e locais públicos da cidade de Coimbra, em formato mupi, cartaz ou flyer, numa “apropriação da linguagem utilizada nos meios publicitários da sociedade de consumo”. O objetivo era chegar ao maior número de pessoas e fazê-las interrogar-se e pensar, ao mesmo tempo em que procurou incentivar a denúncia de casos – daí que não tenha sido por acaso a inclusão, nas imagens que estavam espalhadas pela cidade, do número de telefone das entidades que dão apoio às vítimas.

                                                     
 

“Existe um vazio, nas imagens do projeto Mercadoria Humana, que reproduz a frieza da nossa impotência”, salienta o antropólogo Ricardo Salgado, num texto de apresentação que escreveu para a obra. “Esta impotência multiplica-se facilmente através do descartar de responsabilidades, apesar de ser natural que nos consideremos como inconscientes de algo visto como ausente, por outras palavras, visto como um tabu supremo”. Todavia, esta série de fotografias, que esteve à vista de qualquer cidadão e que está agora acessível no website da Comissão Européia tem precisamente o objetivo de levar cada pessoa a refletir sobre a  realidade que é retratada, instigando-a a criticar e denunciar, colocando assim a semente para que se tomem ações futuras contra essa mesma realidade.




Apesar de também desenvolver trabalhos em outros âmbitos, Pedro Medeiros não nega que os seus projetos seguem um fio condutor, o de “instrumento de intervenção humana e social”. Todavia, considera importante que se interligue o trabalho que se faz com o contexto em que se está inserido, “já que somos nós criaturas do tempo, do espaço e das circunstâncias em que vivemos.”

Tal como explica, “a procura de uma linguagem fotográfica, ou a criação de um discurso, sendo uma viagem solitária, constrói-se em permanente experimentação, partilha e comunicação com outras áreas, no tempo e na sociedade da qual fazemos parte”. Uma visão mais abrangente, portanto, capaz de captar e denunciar os problemas de um mundo cada vez mais interconectado, interdependente e globalizado, mas em que os seres humanos ainda são tratados como simples mercadoria.



Fonte: Obvius.




Izabel Liviski é fotógrafa e doutoranda em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná.
Pesquisadora de história da arte, estudos de gênero e artes visuais. Escreve a coluna INCONTROS
quinzenalmente na ContemporArtes.




1 comentários:

discutindo educação e história disse...

Como sempre gosto muito do seu trabalho, estarei utilizando deste artigo numa oficina que estarei realizando com pedagagos sobre Fotografia, Cinema e Educação, neste próximo dia 14/11... parabens

13 de novembro de 2012 às 23:13

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