"A MERCADORIA HUMANA" POR PEDRO MEDEIROS
Aproveitando
o gancho da novela das nove, que está tratando do tráfico internacional de
mulheres, a coluna desta semana mostra o ensaio fotográfico de Pedro Medeiros,
fotógrafo português, intitulado justamente mercadoria humana. São
imagens impactantes e de grande denúncia social.
Cerca de 2,4 milhões de pessoas, em
todo o mundo, sabem o que é ser vítima de tráfico sexual ou laboral, um negócio
humilhante que rende milhões a quem o pratica. Para denunciar esta realidade, o
fotógrafo Pedro Medeiros criou fotografias que nos acordam para uma
verdade inconveniente: há pessoas que são tratadas como se fossem objetos
descartáveis. São fotografias incômodas, que nos convidam a refletir sobre o
verdadeiro valor da vida humana nos dias de hoje, sobre o papel que a ética e a
moralidade devem assumir.
Estirada
numa prateleira de armazém, uma mulher seminua, com pele cor de amêndoa e olhos
de ébano brilhantes, luta por se destacar entre os restantes bens consumíveis
que aí se amontoam. Mas, tal como a natureza morta que a rodeia, o seu também
está sem o fôlego da vida, igual a todos os outros produtos comerciáveis que
todos os dias compramos a troco de um punhado de notas ou moedas. Apesar de
estarmos perante um ser humano, o seu olhar vazio dá conta da sua existência
descartável, bem ao jeito de quem está habituado a ser vítima do “compra,
usa e joga fora” que fazemos rotineiramente com qualquer outro objeto.
Na
imagem abaixo um cenário estéril e frio com um homem aconchegado em cima do
prato de uma balança, como se fosse uma criança frágil procurando proteger-se
do exterior que o ameaça. O seu peso é escrutinado, tal como antigamente se
faziam aos escravos, para avaliar o quanto se pagará pelo produto, pela
força de trabalho que ele contém. No entanto, e mais do que isso, parece que se
nos mostra a “nova escravatura” dos tempos modernos, em que se traficam pessoas
para fins laborais, para uma vida de semi-escravatura em qualquer campo
agrícola, fábrica ou estaleiro de construção.
Anualmente,
o tráfico de pessoas gera cerca de 32 milhões de dólares, isto a nível mundial.
E no preciso momento em que o leitor lê estas palavras, estima-se que existam
2,4 milhões de pessoas que já foram vítimas de tráfico sexual ou laboral, sendo
que 80 por cento delas destinaram-se a alimentar as redes internacionais de
prostituição. Os trabalhos forçados e a semi-escravatura, em setores como os
serviços domésticos, a construção civil, as indústrias têxtil e alimentar, a
agricultura ou a pesca, preenchem 17 por cento do total.
Os
dados são da agência da ONU para as Drogas e Crimes, a qual admite que estamos
perante um cenário “degradante e humilhante” que assola quase todos os países
do globo – seja como ponto de origem, trânsito ou destino. As mulheres acabam
por ser as mais afetadas, perfazendo dois terços das pessoas vítimas de
tráfico.
Em
diversos relatórios internacionais, Portugal surge como um país de destino para
o tráfico sexual, sendo que grande parte dele provém do Brasil. Mas no que se
refere ao tráfico laboral, já surge como país de destino e origem. Com o
agravamento da crise econômica e financeira estes fenômenos tendem a
agravar-se.
Para
combater este flagelo, os projetos de sensibilização assumem-se como
ferramentas imprescindíveis, como o que foi desenvolvido pelo fotógrafo Pedro
Medeiros a convite da associação Saúde em Português. Assim surgiu a
instalação fotográfica Mercadoria Humana, composta por imagens que
colocam o dedo na ferida e que pretendem “contribuir para o apoio às vítimas, a
detecção de casos de tráfico humano, a denúncia de opressores e para uma maior
informação e conscientização sobre o tráfico de seres humanos”, sintetiza o
fotógrafo. Essencialmente, a idéia passa por gerar “um processo de
responsabilização pública junto do maior número possível de cidadãos”, pois
estamos perante um problema que não pode continuar a ser ignorado por aqueles
que sabem que ele existe.
Perante
a enorme “responsabilidade” de representar fotograficamente um “flagelo humano
universal”, a tarefa que o fotógrafo tomou em mãos não pôde ser abordada de
forma leviana. Para começar, teve que recorrer a atores para produzir as
imagens. ”Tive, desde início, a absoluta consciência de que não queria
fotografar as vítimas, pois trata-se de uma questão ética de proteção da sua
identidade, de defesa da perseguição e tortura a que são sujeitas”. O passo
seguinte consistiu na “construção de um imaginário fotográfico, de caráter
performativo, que pudesse traduzir o esmagamento psicológico, a privação de
identidade, a violência e opressão exercida sobre as vítimas de tráfico humano".
O
resultado foi uma série de imagens que vão ao cerne da questão: essencialmente,
todos os que são submetidos ao tráfico laboral e sexual são objetificados,
rebaixados a meras peças de mercadoria e despidos de toda e qualquer condição
humana. E tudo acontece debaixo da complacência dos honrados cidadãos.
A
instalação esteve presente, ao longo de 2011, nas ruas e locais públicos da
cidade de Coimbra, em formato mupi, cartaz ou flyer, numa
“apropriação da linguagem utilizada nos meios publicitários da sociedade de
consumo”. O objetivo era chegar ao maior número de pessoas e fazê-las
interrogar-se e pensar, ao mesmo tempo em que procurou incentivar a denúncia de
casos – daí que não tenha sido por acaso a inclusão, nas imagens que estavam
espalhadas pela cidade, do número de telefone das entidades que dão apoio às
vítimas.
“Existe
um vazio, nas imagens do projeto Mercadoria Humana, que reproduz a
frieza da nossa impotência”, salienta o antropólogo Ricardo Salgado, num texto
de apresentação que escreveu para a obra. “Esta impotência multiplica-se
facilmente através do descartar de responsabilidades, apesar de ser natural que
nos consideremos como inconscientes de algo visto como ausente, por outras
palavras, visto como um tabu supremo”. Todavia, esta série de fotografias, que
esteve à vista de qualquer cidadão e que está agora acessível no website da
Comissão Européia tem precisamente o objetivo de levar cada pessoa a refletir
sobre a realidade que é retratada, instigando-a a criticar e denunciar,
colocando assim a semente para que se tomem ações futuras contra essa mesma
realidade.
Apesar
de também desenvolver trabalhos em outros âmbitos, Pedro Medeiros não nega que
os seus projetos seguem um fio condutor, o de “instrumento de intervenção
humana e social”. Todavia, considera importante que se interligue o trabalho
que se faz com o contexto em que se está inserido, “já que somos nós criaturas
do tempo, do espaço e das circunstâncias em que vivemos.”
Tal
como explica, “a procura de uma linguagem fotográfica, ou a criação de um
discurso, sendo uma viagem solitária, constrói-se em permanente experimentação,
partilha e comunicação com outras áreas, no tempo e na sociedade da qual
fazemos parte”. Uma visão mais abrangente, portanto, capaz de captar e
denunciar os problemas de um mundo cada vez mais interconectado,
interdependente e globalizado, mas em que os seres humanos ainda são tratados
como simples mercadoria.
Fonte: Obvius.
Izabel Liviski é fotógrafa e doutoranda em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná.
Pesquisadora de história da arte, estudos de gênero e artes visuais. Escreve a coluna INCONTROS
quinzenalmente na ContemporArtes.
1 comentários:
Como sempre gosto muito do seu trabalho, estarei utilizando deste artigo numa oficina que estarei realizando com pedagagos sobre Fotografia, Cinema e Educação, neste próximo dia 14/11... parabens
13 de novembro de 2012 às 23:13Postar um comentário
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