terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Cinquenta tons de cinza



O cinza das horas derretendo os sonhos. O cinza da manhã riscando o céu. O cinza dos óculos embaçados. O cinza do romance na página de sempre. O cinza da cama desarrumada. O cinza da água escorrendo pelo ralo. O cinza da fumaça na chaleira. O cinza da manchete do jornal. O cinza do jeans. O cinza do retrato. O cinza da chave na fechadura. O cinza da porta aberta.

O cinza do mundo no bom-dia do porteiro.

No menino marchando pra escola. No mendigo devorando o maizena. Nas senhorinhas fazendo musculação. No rapaz pegando o táxi. Na mulher subindo o ônibus. No homem abrindo a loja. No operário tocando a britadeira. Nos aposentados jogando biriba. Nas babás passeando com os bebês. Nos guardinhas ocupando as esquinas da praça. Na praça.

O cinza do iPod. Da canção dos Beatles. Dos passageiros invadindo o metrô. Do prédio mais alto da cidade. Da cidade vista da janela. Da papelada sobre a mesa. Do monitor. Do Face. Do chocolate velho na gaveta. Dos relógios parados. Da secretária gostosa. Dos colegas contando a mesma piada. Do chefe tendo um infarto. Da sirene da ambulância. Do fim do expediente.

Da volta pra casa pela estrada de tijolos decadentes. Da prateleira colorida do supermercado. Dos trocados na carteira. Da noite que assobia fresca. Da novela favorita. Do futebolzinho zero a zero. Da tevê desligada, muda. Das luzes apagadas. Do silêncio dos travesseiros. Da saudade ancestral que não desbota. Dos sonhos.

Que o cinza das horas logo há de derreter.










Fábio Flora é autor de Segundas estórias: uma leitura sobre Joãozito Guimarães Rosa (Quartet, 2008) e escreve no Pasmatório (http://pasmatorio.blogspot.com.br).

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