quinta-feira, 23 de maio de 2013

O amor, sobre o amor, por amor



Às vezes sábios são os poetas, por nos dizerem ou esclarecerem coisas que tem uma face noturna, soturna, incerta. Como disse Florbela Espanca, “Ser poeta é ser mais alto, é ser maior/ Do que os homens! Morder como quem beija!”. E ecoa na mente essa última parte, “morder como quem beija”. Sem cair em uma tentativa de análise gratuita e desnecessária, fica em mim o desejo de saber-me mordido como por um beijo que marca, fixa, impregna na mente e na alma. Talvez eu conheça esse beijo...


Mais uma vez, Florbela se faz necessária aqui nessa explanação, pois, para ela, ser poeta “E é amar-te, assim, perdidamente.../ É seres alma, e sangue, e vida em mim/E dize-lo cantando a toda a gente!”. Perpassa ao poetar, como ao amor, o sentimento visceral de entrega de si, de perda de controle, de desejar, de amar perdidamente. Essa digressão toda vem a calhar com o objetivo desse meu texto de hoje que é falar de amor, amor calmo, seguro, tranquilo, mas amor que também ensandece, desloca, desfoca e mata um pouco a cada instante. Como um bom capricorniano, tenho medo de amar.

Quem vai me (nos) conduzir a esse caminho de respostas à incerteza é Ruy Belo com o seu “Acontecimento”:

Aí estás tu à esquina das palavras de sempre
amor inventado numa indústria de lábios
que mordem o tempo sempre cá
E o coração acontece-nos
como uma dádiva de folhas nupciais
nos nossos ombros de outono
Caiam agora pálpebras que cerrem
o sacrifício que em nossos gestos há
de sermos diários por fora
Caiam agora que o amor chegou

Em Ruy Belo também há uma mordida, mas dessa vez quem morde são os lábios e mordem o tempo. Mordem o tempo para pará-lo? Eternizá-lo? Seduzi-lo? Encantá-lo? Agora que o amor chegou, as pálpebras devem cair, não cerrar. Cair indica uma violência maior, mais dramatizada, contraposta à “dádiva de folhas nupciais” que acomete o coração. A queda das pálpebras indica a chegada do amor e com isso, está findo “O sacrifício que em nossos gestos há”. Ruy Belo romântico, eu romântico, o mundo romântico e utópico. Isso tudo não deixa de ser uma utopia fadada ao fracasso, por acreditar-se que esse amor capaz de parar o tempo é fugaz, falaz. Acontece pouco, talvez nunca, e, muitas vezes, o perdemos por covardia ou coragem.

Para fechar esse pequeno caminhar reflexivo sobre o amor, evoco um poema para mim que é de uma beleza angustiante, “Meditação do Duque de Gandia sobre a morte de Isabel de Portugal”:

Nunca mais
a tua face será pura limpa e viva,
nem teu andar como onda fugitiva
se poderá nos passos do tempo tecer.
E nunca mais darei ao tempo a minha vida.

Nunca mais servirei senhor que possa morrer.
A luz da tarde mostra-me os destroços
do teu ser. Em breve a podridão
beberá os teus olhos e os teus ossos
tomando a tua mão na sua mão.

Nunca mais amarei quem não possa viver
sempre,
porque eu amei como se fossem eternos
a glória, a luz e o brilho do teu ser,
amei-te em verdade e transparência
e nem sequer me resta a tua ausência,
és um rosto de nojo e negação
e eu fecho os olhos para não te ver.

Nunca mais servirei senhor que possa morrer.
(Sophia Andresen)

Poema esse que começa com uma constatação melancólica: “Nunca mais/ A tua face será pura limpa e viva”. Há uma perda do objeto amado, perda de ideais, de sonhos. A recorrência do “Nunca mais” é tão enfática que nos leva a duvidar do que vem após. Na verdade, cantar a perda de um amor é jamais esquecê-lo e esse nunca mais transforma-se, muitas vezes, num sempre, pra sempre, mesmo que na memória daquele que fica.

E o amor que o Duque de Gandia diz sentir é o mais belo que possa haver, por ser aquele em que cada brilho e transparência da amada foram vividos como eternos. Mas com a morte, esse amor fez-se outro evocando nojo e negação, obrigando aquele que amou a fechar os olhos para não ver. Que fique, pois, na memória as lembranças, os momentos eternizados, o brilho, a luz e a transparência, antes que o amor se alimente em destroços e podridão. Há no fim, uma constatação de finitude “Nunca mais servirei senhor que possa morrer” que, através do espelho, refulge em outro, uma vez que a própria condição humana do amador lhe impedirá de não amar aos vivos, sendo que a certeza maior da vida é que um dia a morte chegará.

Onde fica o amor nisso tudo? Para mim o amor não fica, ele vai numa ânsia de autodestruição, revelando a todos nós aquilo que mais tememos: a nossa própria humanidade.



Rodrigo Corrêa Machado é colunista da ContemporARTES desde 2009, quando a revista foi criada, juntamente com Ana Dietrich ele é também coordenador dessa revista. Ele é também doutorando em Estudos de Literatura pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mestre em Letras pela Universidade Federal de Viçosa (UFV) e licenciado em Letras por esta mesma instituição. Seus interesses perpassem a Literatura em geral e, com ênfase especial na poesia portuguesa contemporânea.

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