sábado, 29 de junho de 2013

Adília Lopes revisita Camões


Nos últimos dias tive uma grata surpresa, ganhei de presente uma antologia poética brasileira acerca da obra da poeta portuguesa Adília Lopes.  Desnecessário é contar aqui o encanto que tive ao ler poemas tão bem construídos estética e metafisicamente. Há diálogos mais do que profícuos entre seus poemas e pintura (Rubens, “Rosas com bolores”), moda (Christian Lacroix), outros autores e obras literárias (Mariana Alcoforado, Emily Dickinson, Sophia Andresen, Camões).

Interessa aqui hoje destacar um diálogo explícito e expresso entre Adília a Camões. Sendo assim, apresentarei inicialmente o soneto camoniano que pela poeta é revisitado:

Amor é fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar-se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;

é ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?
(CAMÕES, 1999, P. 155)

Esse poema camoniano mostra e demarca as contradições do amor, bem como uma certa sujeição daquele que ama ao objeto de adoração. Há uma acentuação de dualismos como sensível e inteligível, matéria e espírito, finito e infinito, mundo e Deus. Camões que definir o tão indefinível amor e, nessa tentativa, qualquer certeza é fadada à transitoriedade. Tendo conhecimento de tão grandioso poema, Adília Lopes o revisita, construindo uma leitura coerente com seus próprios sentimentos e com os pensamentos de seu tempo. Vejamos:
Com o fogo não se brinca
porque o fogo queima
com o fogo que arde sem se ver
ainda se deve brincar menos
do que com o fogo com fumo
porque o fogo que arde sem se ver
é um fogo que queima muito
e como queima
muito
custa mais
a apagar
do que o fogo com fumo
(LOPES, 2002, p. 20)

Adília Lopes revisita, no poema transcrito acima, o soneto camoniano. Não há uma tentativa de definição do amor “platonicamente”. O sujeito poético traz para o poema alguma desilusão amorosa que lhe afligiu em determinado momento. Pois, o fogo do amor queimou tanto, a ponto de deixar suas brasas a arderem no interior desse sujeito. Em comparação com “o fogo com fumo” que se apaga com água, o fogo do amor, do desejo apresentado no poema de Adília L. queima muito, arde e dói, teimando em apagar-se, fugindo da extinção.

Esse diálogo apresentado entre Adília Lopes e Camões é um dos traços marcantes da poesia portuguesa. Em todos os tempos, os poetas se leram, se citaram, se revisitaram e se inscreveram, fazendo da matéria poética algo vivo, pronto para (re)descobrimentos.

Referências Bibliográficas:
CAMÕES, Luis Vaz de. Lírica. Belo Horizonte: Itatiaia, 1999.

LOPES, Adília. Adília Lopes: antologia. São Paulo: Cosac & Naif, 2002.



Rodrigo Corrêa Machado é colunista da ContemporARTES desde 2009, quando a revista foi criada, juntamente com Ana Dietrich ele é também coordenador dessa revista. Ele é também doutorando em Estudos de Literatura pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mestre em Letras pela Universidade Federal de Viçosa (UFV) e licenciado em Letras por esta mesma instituição. Seus interesses perpassem a Literatura em geral e, com ênfase especial na poesia portuguesa contemporânea.

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