Adília Lopes revisita Camões
Nos
últimos dias tive uma grata surpresa, ganhei de presente uma antologia poética
brasileira acerca da obra da poeta portuguesa Adília Lopes. Desnecessário é contar aqui o encanto que
tive ao ler poemas tão bem construídos estética e metafisicamente. Há diálogos
mais do que profícuos entre seus poemas e pintura (Rubens, “Rosas com bolores”),
moda (Christian Lacroix), outros autores e obras literárias (Mariana
Alcoforado, Emily Dickinson, Sophia Andresen, Camões).
Interessa
aqui hoje destacar um diálogo explícito e expresso entre Adília a Camões. Sendo
assim, apresentarei inicialmente o soneto camoniano que pela poeta é
revisitado:
Amor é fogo que
arde sem se ver,
é ferida que
dói, e não se sente;
é um
contentamento descontente,
é dor que
desatina sem doer.
É um não querer
mais que bem querer;
é um andar
solitário entre a gente;
é nunca
contentar-se de contente;
é um cuidar que
ganha em se perder.
É querer estar preso
por vontade;
é servir a quem
vence, o vencedor;
é ter com quem
nos mata, lealdade.
Mas como causar
pode seu favor
nos corações
humanos amizade,
se tão contrário
a si é o mesmo Amor?
(CAMÕES, 1999,
P. 155)
Esse
poema camoniano mostra e demarca as contradições do amor, bem como uma certa
sujeição daquele que ama ao objeto de adoração. Há uma acentuação de dualismos
como sensível e inteligível, matéria e espírito, finito e infinito, mundo e
Deus. Camões que definir o tão indefinível amor e, nessa tentativa, qualquer
certeza é fadada à transitoriedade. Tendo conhecimento de tão grandioso poema,
Adília Lopes o revisita, construindo uma leitura coerente com seus próprios sentimentos
e com os pensamentos de seu tempo. Vejamos:
Com o fogo não
se brinca
porque o fogo
queima
com o fogo que
arde sem se ver
ainda se deve
brincar menos
do que com o
fogo com fumo
porque o fogo
que arde sem se ver
é um fogo que
queima muito
e como queima
muito
custa mais
a apagar
do que o fogo
com fumo
(LOPES, 2002, p.
20)
Adília
Lopes revisita, no poema transcrito acima, o soneto camoniano. Não há uma
tentativa de definição do amor “platonicamente”. O sujeito poético traz para o
poema alguma desilusão amorosa que lhe afligiu em determinado momento. Pois, o
fogo do amor queimou tanto, a ponto de deixar suas brasas a arderem no interior
desse sujeito. Em comparação com “o fogo com fumo” que se apaga com água, o
fogo do amor, do desejo apresentado no poema de Adília L. queima muito, arde e
dói, teimando em apagar-se, fugindo da extinção.
Esse
diálogo apresentado entre Adília Lopes e Camões é um dos traços marcantes da
poesia portuguesa. Em todos os tempos, os poetas se leram, se citaram, se revisitaram
e se inscreveram, fazendo da matéria poética algo vivo, pronto para
(re)descobrimentos.
Referências
Bibliográficas:
CAMÕES, Luis Vaz de. Lírica. Belo Horizonte: Itatiaia, 1999.
LOPES, Adília. Adília Lopes: antologia. São Paulo:
Cosac & Naif, 2002.
Rodrigo Corrêa Machado é colunista da ContemporARTES desde 2009, quando a revista foi criada, juntamente com Ana Dietrich ele é também coordenador dessa revista. Ele é também doutorando em Estudos de Literatura pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mestre em Letras pela Universidade Federal de Viçosa (UFV) e licenciado em Letras por esta mesma instituição. Seus interesses perpassem a Literatura em geral e, com ênfase especial na poesia portuguesa contemporânea.
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