quinta-feira, 25 de julho de 2013

Tudo é sempre diverso, Pedro.


Das cartas enviadas ao Senhor Pedro Veiga,
no Jardim Camburi (ES), pelo Senhor Antônio Seabra.



Santa Rita do Porto, MG, (?/?/?)
Tudo é sempre diverso, Pedro.


Não atente para as Impressões do Ricardo, as nossas perpétuas mentiras, as nossas hipocrisias, toda a estrutura do fingimento própria de uma raça que não conhece a nudez, que é uma raça vestida, está posta sobre a Literatura. O que diferencia as corporificações do espírito de uma época, a poesia como substancia abstrata tornando-se concreta, se preferir um trato mais vistoso, não é apenas a forma, mas também a matéria: a expressão através da palavra não se equipara ao som ou à cor, o trabalho não é comparável, são ofícios diferentes.
Antônio Seabra / Eros e Psique
A sua primeira pergunta, desarrumada, mas compreensível, diz respeito à minha vocação de Ser no mundo o que tenho sido. Sim, sou o Seabra enquanto tenho por mim ser o Seabra, como um homem que, escrevendo, é um escritor. Dizer da ficção como meia verdade e da mentira como completa ficção seria aproximar-se do que você gostaria de ouvir, mas a invenção é já uma coisa inventada e não posso atende-la como meia-coisa.
Quanto ao segundo desarranjo, uma questão de pares, Clarisse é tudo que a vida não é. Estou suplantando nessa vagueza a resposta de um enigma caduco, pois o que ela foi é apenas o que fiz dela, a imagem mentirosa e serena que pude constatar no contorno breve das suas armadas. Qualquer mais é um passar da conta. Calar é o que tenho por dito.
Por fim, sobre o meu pessimismo, o meu imenso rolar por entre as bordas, o meu desassossego, já lhe digo que é bem grande, é fonte de energia e preparo cotidiano, mas não me convulsa o tropeço. Salto a terceira derrocada e deixo-a sem resposta. Não é da sua conta e nem da minha, o Gago que se arrume. Entenda. Eu não me importo. O que vocês chamam de Literatura é uma compensação, um antidoto natural gestado pela ideia da morte, o medo da crença na extinção irrevogável e absoluta. Uma concepção consoladora, mesmo quando fere, em meta-qualquer-coisa. E, veja bem, é no soslaio da mesma volta que se dirigem todos os sistemas religiosos, filosóficos e científicos. Você, meu amigo Pedro, crítico contumaz das religiões, adepto fervoroso da nova filosofia, seguidor indomável do factual e do cientifico, não vê, com esses teus olhinhos de vidro fosco, o quanto besta e suja são as tuas próprias botas.

O segredo da busca é que sempre se busca e mesmo esta carta é já – inteira – uma mentira.


Do amigo,
Antônio Seabra




Poemas em Anéxo



I

Acordo perplexo
e olho nas mãos
as mãos que tenho.

Escorre-me dos olhos
o que o mundo transige
no exasperada vontade do mundo.

Quando me levantar,
se me levantar,
o quarto se abrirá em dois
e em dois a janela e o quadro
e serão dois os anseios
e duas verdades.

Sinto-me sem sentimentos e
sinto que já não sinto como sentia.
Estou aquém e além de tudo.

Quando passar as coisas do mundo,
se é que as coisas do mundo passam,
eu voltarei para a cama
desgarrado e doente.
Possuído pela miséria
do pensamento cotidiano.

Um pensamento mais doente
do que o pensamento do pensamento.



II

Nasci quase na volta do dia. Eram três para meia noite.
Se o relógio acelerou ou tardou no passo,
nasci já um dia depois do dia do meu nascimento.
Eram três para meia noite,
Convenção da convenção,
e vim ao mundo de esquina
na beira de um "quase" que é "quase" outra coisa.

Estou sempre adiantado ou adiado,

Estou sempre a três minutos de mim,

Sou astrologicamente bipolar

no fazer incerto das minhas pontarias,

sou quase o que fui no quase o que sou
e não sei ao certo se é certo saber.



Finjo. 






Lucca Tartaglia é o tudo onde Deus é servido conceder-lhe que seja, em companhia dos anseios, desejos, moscas, mosquitos e outros elementos auxiliares do bom estado das casas e dos sonos. Gradua-se (ou Graduam-no) na Faculdade de Letras e Artes (mais uma que outra) da Universidade Federal de Viçosa. É colunista na ContemporARTES desde que se tem por isso. Desenvolve pesquisas na área de Literatura (Ocultismo em Fernando Pessoa – Ele Mesmo) e LIBRAS (Língua Brasileira de Sinais).




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