Tudo é sempre diverso, Pedro.
Das cartas enviadas ao Senhor Pedro Veiga,
no Jardim Camburi (ES), pelo Senhor Antônio Seabra.
no Jardim Camburi (ES), pelo Senhor Antônio Seabra.
Santa Rita do Porto, MG, (?/?/?)
A sua primeira
pergunta, desarrumada, mas compreensível, diz respeito à minha
vocação de Ser no mundo o que tenho sido. Sim, sou o Seabra
enquanto tenho por mim ser o Seabra, como um homem que, escrevendo, é
um escritor. Dizer da ficção como meia verdade e da mentira como
completa ficção seria aproximar-se do que você gostaria de ouvir,
mas a invenção é já uma coisa inventada e não posso atende-la
como meia-coisa.
Do amigo,
Tudo é sempre
diverso,
Pedro.
Não atente para as
Impressões do Ricardo, as nossas perpétuas mentiras, as
nossas hipocrisias, toda a estrutura do fingimento própria de uma
raça que não conhece a nudez, que é uma raça vestida, está posta
sobre a Literatura. O que diferencia as corporificações do espírito
de uma época, a poesia como substancia abstrata tornando-se
concreta, se preferir um trato mais vistoso, não é apenas a forma,
mas também a matéria: a expressão através da palavra não se
equipara ao som ou à cor, o trabalho não é comparável, são
ofícios diferentes.
Antônio Seabra / Eros e Psique |
Quanto ao segundo
desarranjo, uma questão de pares, Clarisse é tudo que a vida não
é. Estou suplantando nessa vagueza a resposta de um enigma caduco,
pois o que ela foi é apenas o que fiz dela, a imagem mentirosa e
serena que pude constatar no contorno breve das suas armadas.
Qualquer mais é um passar da conta. Calar é o que tenho por dito.
Por fim, sobre o
meu pessimismo, o meu imenso rolar por entre as bordas, o meu
desassossego, já lhe digo que é bem grande, é fonte de energia e
preparo cotidiano, mas não me convulsa o tropeço. Salto a terceira
derrocada e deixo-a sem resposta. Não é da sua conta e nem da
minha, o Gago que se arrume. Entenda. Eu não me importo. O que vocês
chamam de Literatura é uma compensação, um antidoto natural
gestado pela ideia da morte, o medo da crença na extinção
irrevogável e absoluta. Uma concepção consoladora, mesmo quando
fere, em meta-qualquer-coisa. E, veja bem, é no soslaio da mesma
volta que se dirigem todos os sistemas religiosos, filosóficos e
científicos. Você, meu amigo Pedro, crítico contumaz das
religiões, adepto fervoroso da nova filosofia, seguidor indomável
do factual e do cientifico, não vê, com esses teus olhinhos de
vidro fosco, o quanto besta e suja são as tuas próprias botas.
O segredo da busca é que sempre se busca e mesmo esta
carta é já – inteira – uma mentira.
Do amigo,
Antônio
Seabra
Poemas em Anéxo
I
Acordo
perplexo
e
olho nas mãos
as
mãos que tenho.
Escorre-me
dos olhos
o
que o mundo transige
no
exasperada vontade do mundo.
Quando
me levantar,
se
me levantar,
o
quarto se abrirá em dois
e
em dois a janela e o quadro
e
serão dois os anseios
e
duas verdades.
Sinto-me
sem sentimentos e
sinto
que já não sinto como sentia.
Estou
aquém e além de tudo.
Quando
passar as coisas do mundo,
se
é que as coisas do mundo passam,
eu
voltarei para a cama
desgarrado
e doente.
Possuído
pela miséria
do
pensamento cotidiano.
Um
pensamento mais doente
do
que o pensamento do pensamento.
II
Nasci
quase na volta do dia. Eram três para meia noite.
Se
o relógio acelerou ou tardou no passo,
nasci
já um dia depois do dia do meu nascimento.
Eram
três para meia noite,
Convenção da convenção,
e vim ao mundo de esquina
e vim ao mundo de esquina
na
beira de um "quase" que é "quase" outra coisa.
Estou
sempre adiantado ou adiado,
Estou
sempre a três minutos de mim,
Sou
astrologicamente bipolar
no
fazer incerto das minhas pontarias,
sou
quase o que fui no quase o que sou
e não sei ao certo se é certo saber.
e não sei ao certo se é certo saber.
Finjo.
Lucca
Tartaglia é
o tudo onde Deus é servido conceder-lhe que seja, em companhia
dos anseios, desejos, moscas, mosquitos e outros elementos auxiliares
do bom estado das casas e dos sonos. Gradua-se (ou Graduam-no) na
Faculdade de Letras e Artes (mais uma que outra) da Universidade
Federal de Viçosa. É colunista na ContemporARTES desde que se tem
por isso. Desenvolve pesquisas na área de Literatura (Ocultismo em
Fernando Pessoa – Ele Mesmo) e LIBRAS (Língua Brasileira de
Sinais).
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