segunda-feira, 7 de outubro de 2013

A FOTOGRAFIA A SERVIÇO DA POLÍTICA


 Desde seus primórdios, a fotografia esteve muitas vezes a serviço da politica. Nesta edição, vamos analisar o caso específico do uso das imagens nos EUA durante a Segunda Guerra Mundial, episódio que tem matizes de gênero e de indução da opinião pública. 

A iconografia norte-americana nunca valorizou a figura do operário. Valorizou muito mais, ao longo da sua história, as figuras do pioneiro, do cowboy, do patriota ou do empresário. No entanto, durante um curto período, entre 1941 e 1945,  a imagem da mulher operária em particular, foi oficialmente promovida ao pódio dos heróis da nação.

É bastante conhecido o cartaz norte-americano "We can do it", de 1943, em que a ilustração de uma operária plena de força e resolução, mas ainda assim graciosa, parece garantir que as mulheres fariam a sua parte na frente doméstica enquanto os homens eram recrutados e encaminhados para as batalhas da Segunda Guerra mundial.

O cartaz, encomendado por uma empresa privada que participava no esforço de guerra, não foi um ato isolado no país. Embora feito por iniciativa particular, enquadrou-se num amplo esforço de comunicação que tinha como epicentro o governo federal. Em Dezembro de 1941, o ataque japonês a Pearl Harbour, porto sede da frota americana do Oceano Pacífico, precipitou a entrada, que se previa há algum tempo, dos Estados Unidos da América na guerra. 


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Em Junho do ano seguinte foi criado o Office of War Information, uma agência governamental que tinha como missão não só definir e coordenar a informação sobre o conflito, como delinear uma política comunicativa que favorecesse o esforço de guerra e o patriotismo. Ao contrário dos sistemas de propaganda nazi e soviético, o funcionamento do OWI não passava por um controle rígido e total dos meios de comunicação. 

Apesar da sua criação motivada e condicionada pela recente guerra, o OWI não nasceu subitamente do nada. Para além da natural contribuição dos serviços de comunicação das forças armadas, preexistentes ao conflito, esta agência viu ser incorporados nela um conjunto de profissionais e serviços provenientes de entidades criadas pelo governo Roosevelt no âmbito do seu New Deal, o programa de recuperação econômica que visava retirar o país da Grande Depressão.

Entre eles, encontrava-se o serviço de informação da Farm Security Agency, uma muito bem oleada máquina de produção de imagens que, durante anos, produzira registros fotográficos da situação dramática vivida no espaço rural americano, visando garantir o apoio público a ambiciosos (e dispendiosos) projetos agrícolas do governo federal.

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Esta experiência acumulada veio a ser vital para a forma bastante ágil e profissional como o OWI definiu o padrão de qualidade e o ideário estético da sua vertente fotográfica. Mas isso não significou que tenha havido uma uniformidade total entre os projetos fotográficos de antes e durante a guerra. Entre ambos há claras diferenças de natureza e de forma.

As imagens do programa da FSA, dirigido por Roy Stryker, enfrentaram as contingência de um jogo político pleno e democrático. Sendo decorrentes do New Deal de Roosevelt, tinham que lidar com a forte oposição conservadora face aos planos intervencionistas do presidente americano. Uma oposição para a qual gastar dinheiro dos contribuintes em planos de auxílio era desperdício, e gastá-lo em campanhas de propaganda era considerado simplesmente um ultraje.

A ação do Office of War Information dá-se num quadro bastante distinto. A declaração de guerra criara um estado de exceção, um momento de alguma suspensão da crítica pública ao governo, e não apenas de tolerância, mas mesmo de vivo apoio relativamente a programas declaradamente propagandísticos. Os fotógrafos do OWI tiveram uma liberdade muito superior no seu trabalho, recorrendo a todas as "armas" que lhes fossem úteis. 

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As imagens de mulheres operárias, de autores como Lewis Hine, por exemplo, foram feitas sob um ponto de vista de denúncia da exploração do trabalho e da pobreza. A necessidade dessa nova perspectiva advém das condições específicas do período. O recrutamento de homens jovens para o combate, associado ao súbito aumento de encomendas militares, deixou a indústria americana com uma grande necessidade de mão-de-obra. 
    

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A sua intervenção nas imagens é bastante mais visível. Puderam orquestrar livremente os seus modelos, escolhê-los, por vezes, criar situações, encenar ações e usar iluminação artificial sempre que lhes conviesse. Para além desta liberdade operacional, radicalmente distinta, também a natureza simbólica das imagens foi diferenciada. Numa América em guerra, a última coisa que interessava eram fotografias de gente desanimada e impotente, necessitada de ajuda.

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Sendo função do OWI promover o patriotismo e a moral dos americanos nos tempos difíceis da guerra, as imagens que criou seguiam um sentido diametralmente oposto. A América que se queria veicular era um país constituído por gente forte, determinada, resoluta, capaz de suplantar os mais duros obstáculos. E é aí que as séries de imagens de operárias colaborando com o esforço de guerra se inserem.


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Nem o recrutamento de todas as mulheres que a grande depressão empurrara para o desemprego, ou para setores com a pior remuneração como serviços de limpeza e lavanderias ou mesmo o serviço doméstico, seria suficiente para preencher o vazio então existente. A solução passaria por cativar e recrutar um novo contingente para o trabalho fabril: as mulheres de classe média e média alta.


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Ao contrário do que por vezes aparece descrito, a participação de mulheres em trabalhos fabris não foi uma novidade trazida pelas duas guerras mundiais. Concretamente no caso americano, o operariado feminino existia desde o advento desse tipo de produção e era constituído majoritariamente por membros de comunidades étnicas minoritárias e por imigrantes. O que as guerras mundiais trouxeram de novo foi um foco positivo sobre uma situação que, por norma, desagradava à sociedade americana. 

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O OWI traçaria para esse fim uma estratégia vencedora. Longe de documentar o caráter duro da vida nas fábricas, procurou retratar o novo operariado fabril feminino com glamour. As jovens mulheres que fotografou, e que encaminhou para a comunicação social, em nada se assemelhavam às vítimas da natureza e da depressão que a FSA fizera questão de registrar. Geralmente bonitas, bem vestidas, compostas, maquiadas, em que raras vezes o vestuário aparecia maculado pelo trabalho, transbordavam de feminilidade e graça.

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Fotografadas com ar sério e determinado, eram exemplos de contribuição patriótica, eram as heroínas da frente doméstica. Também elas combatiam os alemães e os japoneses, construindo as armas que os derrotariam. Retratadas com sofisticação, a cores, muitas vezes com iluminação artificial, as operárias do OWI estavam próximas das figuras da moda e das estrelas de cinema. Eram idealizações, uma espécie de pin-ups ingênuas.

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Emblemáticas desta linha de comunicação, são as imagens realizados por dois fotógrafos contratados pelo Office of War Information, Howard R. Hollem e Alfred T. Palmer, que definiriam o modelo logo no ano inicial da agência. A campanha de incentivo ao trabalho feminino nas fábricas teve um evidente sucesso, e o seu impacto na cultura popular e corporativa foi enorme. As operárias entraram no imaginário público através das fotografias e cartazes do OWI, mas não só. 

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Capas de revistas, cartazes de empresas privadas e até êxitos musicais como "Rosie the Riveter", elevaram as jovens trabalhadoras americanas a um estatuto de enorme prestígio.  As razões deste sucesso são várias e intrincadas. Ao imperativo patriótico de ajudar o país num momento difícil, argumento retoricamente supremo, somavam-se outros interesses mais privados. Por um lado, a nova situação convinha profundamente às grandes corporações industriais. 

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As novas contratações femininas ganhavam substancialmente menos que os seus equivalentes masculinos (o salário duma operária chegava a ser, por vezes, apenas um terço daquele que era ganho por um homem em funções iguais) e isso fazia-se sentir nos seus resultados econômicos, sem quaisquer reflexos negativos no prestígio das empresas. Por outro lado, mesmo com toda a desigualdade salarial, as jovens americanas tinham por essa via um acesso, muitas vezes pela primeira vez, à independência econômica.

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Depois de mais de uma década numa terrível depressão econômica que custava a desaparecer, havia um súbito vislumbre de prosperidade, apesar do país se encontrar envolvido numa dura guerra. Mas este apreço americano pelas suas operárias, e esta inusitada confluência de interesses, tinham uma validade muito determinada.
 
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Acabada a guerra, desmantelado o Office of War Information, e com o retorno dos soldados, as icônicas heroínas da frente doméstica foram majoritariamente descartadas, de forma rápida e sem que fossem tidas em conta as suas aspirações.




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Para elas estariam reservados papéis mais tradicionais e secundários. Esperava-se apenas que fossem as donas-de-casa exemplares que encheriam as revistas dos anos cinquenta, e as mães do chamado Baby Boom, o período de elevada natalidade que duraria até o início dos anos sessenta.







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Legendas:

F1-Howard Miller: We can do it, cartaz da Westinghouse Company, 1942
F2-Dorothea Lange: Mãe migrante, California/EUA, 1936
F3-Lewis Hine: operária portuguesa, Fall River Massachusetts/EUA, 1916
F4-Irma Lee McElroy, Corpus Christi, Texas,1942
F5-Lucile Mazurek, Milwaukee-Wisconsin, Fevereiro de 1943
F6-Mary Josephine Farley, Corpus Christi, Texas, 1941
F7-Mary Louise Stepan, Fort Worth, Texas,1941
F8-Operadora de torno, Fort Worth, Texas, Outubro de 1942
F9-Oyida Peaks, Corpus Christi, Texas, Agosto de 1942
F10-Rebitadora,Fort Worth Texas 1941
F11-Acabamentos num bombardeiro B17, outubro de1942
F12-Duas operárias durante a montagem do caça P51, Outubro de 1942
F13-Montagem de bombardeiros B25, Inglewood, California, Outubro de 1942
F14-Montagem de bombardeiros B 25 Inglewood, California,1942
F15-Operadora de máquina rebitadora, Long Beach, California, 1942
F16-Operaria durante montagem de motor de avião, California, Junho de 1942
F17-Trabalhando em um bombardeiro, Nashville/Tennessee, Fevereiro de 1943
F18-Operárias na montagem de um bombardeiro, Long Beach, California, outubro de 1942
F19-Pintando a insígnia da Força aérea em bombardeiro, Nashville/Tennessee, fevereiro de 1943
F20- (abaixo) Na pausa do almoço, Long Beach, California, 1942
As imagens de F4 a F20, são da Office of War Information, autoria dos fotógrafos:  Howard R. Hollem e Alfred T. Palmer.
Fonte: Obvius.


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Izabel Liviski, é professora e fotógrafa, doutora em Sociologia pela UFPR. Escreve a Coluna INcontros desde 2009, e é também co-editora da Revista ContemporArtes.





1 comentários:

Francisco Cezar de Luca Pucci disse...

O processo de mudança cultural com o uso da arte é inteligente. Maldosas são as finalidades que são visadas. No fundo, importante o testemunho que seu artigo dá sobre a importância da arte na construção cultural. Parabéns.

7 de outubro de 2013 às 15:17

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