quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Do outro lado do mundo...


Nesta primeira coluna a respeito do meu olhar pessoal sobre o Japão e os japoneses, nada mais apropriado do que apresentar alguns pontos que serão recorrentes nas próximas colunas. Ab initio, nestes meus quase quatro anos de docência na Universidade de Osaka e vivência(s) na região de Kansai - transitando entre Osaka, Quioto e Kobe, principalmente -, averiguei, na prática cotidiana, que ser um “estrangeiro” (外国人= Gaikokujin) é, e sempre será, a principal condição que diferencia os japoneses (日本人 = Nihonjin) de você, considerado o “eterno outro”. Não adianta ter proficiência na língua nipônica (longe de ser o meu caso), casar com um(a) nativo(a), adquirir cidadania japonesa, tornar-se expert em mangás e animes, praticar artes marciais, ser otaku ou se travestir de cosplay... Você sempre será o 'outro' nessa equação. Um cálculo que tanto pode levá-lo a resultados positivos, quanto negativos ou, ainda, a “lugar nenhum”. Caro leitor, minha tentativa aqui não será a de transitar pelo “lugar nenhum” nipônico, mas de equacionar minhas percepções sobre o difuso universo nipônico, a partir de minha tríplice visão - ora de historiador, ora de professor, ora de “lost in translation” - sobre o arquipélago nipônico e o seu povo, a partir de narrativas e imagens, levantando hipóteses e retificando distorções.

Uma explicação plausível para a “impossibilidade” de se “tornar japonês” pode ser encontrada em três fatores: na religião nativa, na língua e no sangue, sendo esse último o mais essencial indicador do “ser japonês”, na visão de muitos deles próprios. Aspectos culturais são importantes para definir o “eu” japonês e dele se aproximar, no entanto a consanguinidade é o fator fundamental. Mesmo afirmando isso, contudo, a questão permanece bem complexa. Um exemplo prático da importância do fator sangue entre os japoneses: perguntei aos meus vinte e dois alunos do segundo ano do curso de Cultura Brasileira, sobre quem, caso não tivesse filhos, adotaria uma criança japonesa. Para minha surpresa, apenas um aluno, timidamente, levantou a mão e disse: “Talvez...”. Os outros, seis garotas e quinze rapazes, foram enfáticos: “Não, pois essa criança não teria o meu sangue, apesar de compartilharmos a mesma língua, cultura, religião, etc.” Confirmando, inquestionavelmente. a importância dos laços de parentesco na manutenção do ethos nipônico. E reafirmando, portanto, a impossibilidade de “ser” japonês a não ser pelo nascimento.



Outra coisa digna de nota: nunca ouvi por aqui um japonês, seja ele jovem ou idoso, comentar: “Você/Ele é mais japonês do que eu”, como é comum para a cordialidade que muitos brasileiros adotam ao se referir ao 'outro': “Você/Ele é mais brasileiro do que eu”. Frase que ao ser dirigida a alguns dos meus alunos japoneses intercambistas no Brasil,  passou a significar muito mais do que um elogio, mas sim, uma memoria afetiva do nosso “pais tropical”. A cordialidade japonesa, para com os gaikokujin, se manifesta sob outra abordagem:  “Você (‘estrangeiro’) maneja como um japonês o hashi”, “Você faz (algo) como um legítimo japonês”. OU seja, a aproximação e compreensão do Japão e seu povo, por parte de um estrangeiro, deve sempre ocorrer no espaço nitidamente delimitado entre “nós” – japoneses – e “os outros” – forasteiros.

Uma análise acurada dessa delimitação, vista pelo olhar nipônico, mostra que a diferenciação entre “nós” e “os outros” faz parte do próprio caráter do povo do Sol Nascente. Ao reafirmar, principalmente, depois da II Guerra, a sua japonesidade (日本人論=Nihonjiron) o povo nipônico se coloca perante o “outro” de forma dialética (para usar um termo bem ocidental) onde o óbvio (o que pensamos compreender) e o obtuso (o que pensamos não compreender) se complementam. Pela própria proposta desta coluna e pela complexidade do tema, nem tentarei analisar aqui a situação dos nikkeis, que aqui vivem, estudando ou trabalhando.

Para finalizar, um aviso aos leitores: sobre as imagens de minha autoria que intercalam os parágrafos nesta e nas próximas postagens, parafraseio Roland Barthes, em sua epígrafe da seminal obra Império dos signos:  
“O texto não 'comenta' as imagens. As imagens não 'ilustram' o texto: cada uma foi para mim somente a origem de uma espécie de vacilação visual, análoga, talvez, aquela perda de sentido que o Zen chama de satori; texto e imagem em seus entrelaçamentos, querem garantir a circulação, a troca destes significantes: o corpo, o rosto, a escrita, e neles ler o recuo dos signos”.
また今度!! Até a próxima!




Leituras recomendadas:
Roland Barthes. O Império dos signos. São Paulo, Martins Fontes, 2007.
Harumi Befu. Hegemony of Homogeneity. Melbourne, Trans-Pacific Press, 2001.

Kenzaburo Oe. Japan, the ambiguous and myself. Tokyo, Kodansha International, 1995.



Rogerio Akiti Dezem é professor visitante de língua portuguesa e cultura brasileira da Universidade de Osaka, no Japão. Mestre em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), é autor de Matizes do Amarelo - A gênese dos discursos sobre os orientais no Brasil (Humanitas, 2005) entre outros livros.

6 comentários:

Unknown disse...

Caríssimo rogério, com muita honra, em nome da equipe Contemporartes, lhe desejo boa vinda a esse time de artistas, escritores e estudiosos da Humanidades. Gostei do "primeiro ato", gostoso, tropical, bem no mesmo estilo do Rogério que conheci, que deve estar com a brasilidade aflorada nessa diferença. abraços Ana Dietrich

27 de novembro de 2013 às 16:09
Silvio Bonilha disse...

Grande Roger, inclui o site num link no www.oldroger.silviobonilha.com.br. Caso tenha alguma restrição de Copyright me informe e removerei.
Abraços

27 de novembro de 2013 às 20:16
mariochico disse...

Com o Rogério é assim: de Osasco pra Osaka, de Osaka para o Oriente inteiro. Seu olhar, ao qual "nada que é humano lhe estranha" - agora mais afiado ainda pelas lentes fotográficas -, seu olhar leva-o a viajar da História para a Antropologia e Etnologia. Um humanista, sem tirar nem pôr.

27 de novembro de 2013 às 20:22
Anônimo disse...

Querido Rogério, que texto mais pleno de significado e gostoso de ler... Obrigada. Beijo carinhoso, Gila

27 de novembro de 2013 às 20:23
Anônimo disse...

Que legal Roger. Qual será a frequencia dos artigos? Quero ler todos e incorporá-los na minha tentativa de compreensão do pais do Sol Nascente, que vem por meio de meus queridos amigos, moradores, forasteiros, estrangeiros, sejaláoque define vocês por aí. Muito bom rapaz!!!!!saudades, adri

27 de novembro de 2013 às 21:43
Anônimo disse...

Texto claro, em sua abordagem; sensível, em sua verdade. Professor Roger, meu afilhado mais-que-querido, obrigada por partilhar as suas percepções e os seus saberes. Adorei e vou ficar esperando o próximo.

28 de novembro de 2013 às 00:19

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