quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

O Processo da Arte (Parte I): lá e de volta outra vez





        O conceito de Arte vem sendo discutido desde a Antiguidade Clássica. Derivado do vocábulo latino ars, que mantinha o sentido originário da palavra grega Techne, o termo foi empregado, de forma geral, para designar um conjunto de regras destinadas à conduzir as atividades humanas dentro de um campo específico de atuação. Dessa forma, apresentaria-se como arte tanto a poesia quanto a medicina, politica, agricultura, guerra e etc.   
       Ainda que teorizar sobre a atividade artística nunca tenha sido a sua preocupação central, está em Platão as primeiras tentativas de se abordar o tema. Na obra República, o socrático levanta algumas considerações sobre a arte, diferenciando-a da natureza, em sua essência, e apontando-a como parte integrante das atividades humanas ordenadas. 
        No mesmo sentido, Aristóteles diferencia as criações provenientes da natureza, formadas por forças
Ajax e Cassandra (440-430 a.C.)
naturais, das que são geradas por intermédio da arte. As obras advindas do empenho artístico, ou seja, moldadas pela vontade e técnica dos homens, não poderiam ser tomadas por criações, mas sim por produções, frutos de um processo destinado à feitura prevista de um objeto. Há, nos estudos aristotélicos, uma preocupação maior com o conceito de arte. 
         Divergindo das ideias de Platão, para quem a atividade artística e cientifica fazia parte de uma mesma unidade significativa, Aristóteles separou a ciência, campo do necessário (tudo aquilo que não pode ser de outra forma), da Arte, campo do possível (o que pode assumir formas diversas quanto à sua produção) e estabeleceu que todas as artes estariam relacionadas com o “produzir”, assim como, qualquer tipo de atividade ligada à processos de produção seria uma forma de arte. A matemática e a lógica, por exemplo, fariam parte da ciências teóricas (teoréticas), pois seu objeto é puramente cognitivo, opondo-se às ciências práticas e às artes (poiéticas), cujos princípios se pautam no processo produtivo e material.
       Plotino, filósofo neo-platônico, século III, objetivando conservar o valor contemplativo da ciência, distingue as artes adotando como critério sua relação com a natureza. Seguindo esse raciocínio, separa as artes em três tipos: as análogas, que têm a finalidade de produzir; as de auxílio à natureza, como a medicina, e as práticas, que visam o homem, afim de melhorá-lo ou piorá-lo, como a retórica, poética, música e etc.
       A autoridade conferida ao pensamento pós-socrático, de Platão e, posteriormente, de Aristóteles, definiria o noção ocidental de natureza e filosofia da arte por mais de 2000 anos, até a Idade Média. 
       Em meados do século XIII, Tomás de Aquino, filósofo e teólogo italiano, postulou acerca da Arte Liberali, destinada ao exercício da razão, e da Arte Servili, direcionada aos trabalhos corporais, que seriam, de certo modo, servis. 
      Na Itália, durante o século XVI, fins da Renascença, o pintor e arquiteto italiano, Giorgio Vasari, considerado o primeiro historiador da arte, delineou o conceito de Renascita dell'arte e della cultura classica, atacando o período artístico precedente (Idade Média), visto que o entendia como uma interrupção entre a Antiguidade Clássica e o Renascimento. O termo Gótico, usado para designar as artes bárbaras em geral, apareceria pela primeira vez no livro de Vasari, Vite (Le vite de' più eccellenti pittori, scultori e architettori), como tradição artística que renderia uma arte “monstruosa”.As ideias ligadas ao fazer artístico não sofreriam grandes alterações até o princípio da era moderna. 
         Com a sintetização das características tradicionais do conceito de Arte a partir da distinção entre Arte Mecânica e Arte Estética, Kant apontou como mecânicas as atividades que, reconhecendo um objeto como possível, realizam os procedimentos necessários para sua feitura, e como estéticas as que se desenvolvem tendo por finalidade o prazer, sendo estas consideradas aprazíveis ou belas artes. Para o filósofo, as belas artes possuiriam um fim nelas e por elas mesmas, proporcionando um tipo de prazer desinteressado e visando a fruição. 
        Schelling, teórico adapto do pensamento pós-kantiano, subverteu a tradicional relação posta entre a natureza e a arte, fazendo da segunda a regra da primeira e não mais o contrário. Sobre essa perspectiva, a arte seria a consumação necessária e perfeita do belo, superando a natureza que só alcançaria tal estado de forma casual e incompleta.
        Durante o período regido pelas ideais românticos, a definição de arte como criação, afastada do conceito aristotélico de produto, ganha duas forças de frente: na primeira, as obras de arte são oriundas de uma originalidade absoluta e não fazem referência à realidade natural; na segunda, sendo parte da originalidade absoluta, a arte corresponde à uma manifestação da ação criadora de Deus. 
       Hagel, em Lições de Estética, afirma que o artista, sendo canalizador da atividade absoluta, seleciona no mundo exterior as melhores formas e as adapta ao seu conteúdo. Assim, a arte aparece como uma emanação da ideia absoluta, ao lado da religião e da filosofia, e o artista, enquanto responsável por criar a representação sensível do sublime, está sujeito à emanação divina.
       A noção de estética surgiu no século XVIII como ciência da arte e do belo. Introduzido por Alexander Baumgarten, autor do livro Aesthetica e primeiro a ministrar um curso sobre o assunto, o conceito seguia o princípio grego de aisthésis, aquilo que é perceptível, que pode ser sentido em um plano real e nomeava, na Alemanha, a doutrina do conhecimento sensível. 
      Na antiguidade, Arte e Belo, como concepções, estavam separadas por características muito claras que as distinguiam e as tornavam independentes entre si. No entanto, nos estudos modernos e contemporâneos, essas duas propriedades estão relacionadas e implicam-se de forma contínua, motivadas pela associação que ganhou força a partir do século XVIII, quando o conceito de belo se aproximou da noção de objeto estético, impulsionado pela ideia de “gosto” ou do cânone. Antes dessa aproximação, o belo não era parte inerente dos objetos produzíveis e, por isso, as noções não se relacionavam de forma direta.
      O prestígio ligado à palavra arte, assim como a inserção dos preceitos “estéticos”, se firmou a partir do século XVIII, distanciando o significado do termo de seu sentido primeiro (Techne). Somente os procedimentos ordenados, normatizados e organizados para determinada atividade humana passam a ser entendidos como técnicas. Todos as etapas reguladores de um determinado campo, de ampla maneira, seriam entendidas dessa forma. O que originalmente foi chamado de arte por Platão, enquanto conjunto de parâmetros necessário para certa atividade produtiva, por tanto, não atende mais ao mesmo sentido. 
      Com a chegada de uma teoria da percepção, em especial durante o século XIX, a estética se tornou uma nova maneira específica de se descrever a reação aos fenômenos artísticos. Adotando o cânone ou o “gosto” como principal critério, no que se refere ao juízo dos objetos sensíveis, a estética distancia, cada vez mais, a arte do seu sentido primitivo.
      Da mesma forma que o “consumidor” é fruto da economia burguesa e atende como figura abstrata correspondente à abstrata “produção mercantil”, surgiu na teoria cultural a “reação estética”. A atividade artística seria então classificada por intermédio de seu potencial estético, ou seja, seu poder de causar: a percepção da beleza, em um primeiro momento, depois a pura fruição de uma obra, em e por si mesma, ausente de interferências externas, e suas propriedades estéticas, ligadas à sua feitura e linguagem representativa (pintura, música, literatura e etc.).
      O exímio teórico e crítico literário checo do século XX, Jan Mukařovský, adotanto um posicionamento contrário à estética burguesa, defende que a arte não possui qualquer elemento que a torne um tipo especial de objeto, mas que comporta em si a função estética de forma dominante. Assim como acontece com outros objetos, a obra artística oferece prazer, mas o contato aprazível não deve ser confundido com a noção de belo, mesmo que o senso de beleza esteja presente na função estética, essa noção é variável histórica e socialmente, e vai se alterar, de maneira mais ou menos intensa, quando em tempos e espaços diferentes. Mukařovský aponta que a estética é uma co-determinante da reação humana à realidade e não um epifenômeno de outras funções: a “arte” é reconhecida como um campo separado categoricamente e a “estética” como fenômeno passível de ser isolado; ambas definidas através de um retorno à variação relativa e múltipla da prática cultural.
     Os conceitos de arte e estética reservam em si uma carga ideológica muitas vezes ignorada. O que tratamos por arte transformou-se em uma espécie de produto que se afasta da concepção burguesa de mercadoria. Difere-se, fantasiosamente, tudo o que é considerado como arte da ideia de “produção”, não podendo um objeto ser considerado artístico, caso se vincule, de alguma forma, ao mercado. 
     Dessa constatação surge a discernimento entre os tipos relacionados de produto e se aponta a “arte” em contra-senso da “não-arte”, a“cultura” em detrimento da “cultura de massa” e a “alta literatura” em contraste com a nomeada “baixa literatura”. 
     Essa visão restritiva negligencia e coloca como periférica a contínua mutação das obras de arte em produtos de consumo, visto que fazem parte da sociedade capitalista e não se separam dos processos sociais nos quais estão inseridas. As obras, assim como as reflexões geradas sobre elas, não podem se abstrair, por intervenção de uma teoria estética, dos fenômenos que as envolvem e transformam. 

La Danseuse jaune (1912)
de Mérodack-Jeanneau 
    Estando onde estamos, é preciso rever as constatações, que até então foram expostas, a respeito da arte e de suas implicações. Suponhamos que houvesse uma forma de extrair, dentre os diversos conceitos de “Arte”, desde Platão até a Era Moderna, um aspecto de significado comum, uma ideia que transpassasse todas as tentativas de conceitualização do que seja, ou não, Arte. Imaginemos, ainda, que se trata do princípio comum de “Processo” (seja ele de representação, produção ou criação), uma constante formada por etapas com, mais ou menos, princípio, meio e fim. É preciso também considerar que, como vimos anteriormente, os conceitos que permeiam essa ideia de processo são atribuídos e carregados de ideologias, ou seja, padrões determinantes, de uma teoria estética, que classificam uma obra como “boa” e “verdadeira”, são socialmente atribuídos, tendo por base a noção de gosto ou cânone.
     Então arte seria tudo aquilo, em uma época específica, que se entende por arte? Haveria, dentre o conjunto total das artes e seus conceitos relacionados, o que se poderia chamar de “não-arte” ou “baixa-literatura” ou, ainda, “cultura de massa” enquanto aplicações menores? 

     Para responder à pergunta precisamos entender como se dá essa relação Sociedade/Ideologia/Arte, que vem sendo construída desde o pensamento aristotélico, percorrendo a história da arte e chegando até os nossos dias. Todas as tentativas de se definir o que era, ou não, arte, passaram, de certa forma, pelas colocações de Aristóteles, sendo favoráveis ou contrárias à posição do pensador grego.

Continua...

  • O Processo da Arte (Parte II): a causa e a razão - 13 de março de 2014



Lucca Tartaglia está onde Deus é servido conceder-lhe que seja, em companhia dos anseios, desejos, moscas, mosquitos e outros elementos auxiliares do bom estado das casas e dos sonhos. Gradua-se (ou Graduam-no) na Faculdade de Letras e Artes (mais uma que outra) da Universidade Federal de Viçosa. É colunista na ContemporARTES desde que se tem por isso. Desenvolve pesquisas na área de Literatura (Ocultismo em Fernando Pessoa) e LIBRAS (Língua Brasileira de Sinais).

0 comentários:

Postar um comentário

Seja educado. Comentários de teor ofensivo serão deletados.