quinta-feira, 27 de março de 2014

O Processo da Arte (Parte II): a causa e a razão



A teoria das quatro causas, elaborada por Aristóteles, tinha por objetivo explicar, sistematicamente, como se dava as transformações dos seres e das coisas através do espaço-tempo. Segundo a filósofa e historiadora, Marilena Chaui, essas mudanças eram apontadas pelos gregos como Movimento e entendidas da seguinte forma: 01) Toda mudança qualitativa de um corpo qualquer; 02) Toda mudança quantitativa de um corpo qualquer; 03) Toda mudança de lugar ou locomoção de um corpo qualquer; 4) Toda geração ou corrupção dos corpos, ou seja, a origem e fim das coisas e dos homens. Dessa forma, compreendia-se como movimento toda e qualquer alteração de uma realidade concreta.
     Segundo a teoria aristotélica das quatro causas, haveria no mundo a causa material, que comportaria a matéria da qual os corpos são constituídos, a causa formal, relativa à forma constitutiva dos corpos, a causa motriz ou eficiente, operação empregada no intuito de se atingir determinada forma, e a causa final, razão pela qual um matéria específica passou a ter um forma específica. Partindo dessa lógica, se explicava todas as coisas e como se relacionavam no realidade concreta, a maneira como existem e se modificam, e a razão de sua existência.
     Um fator importante na teoria de Aristóteles é que as causas eram separadas hierarquicamente, ou seja, possuíam, entre si, um grau maior ou menor de importância: a causa motriz ocuparia o lugar de menor prestígio, pois exercia uma atividade transitória, fazendo com que a causa material recebesse a causa formal, em outras palavras, a ação de fabricar, natural ou humana, sendo a causa final considerada como mais importante, pois guardava a finalidade ou motivo da existência.
     Vista dessa forma, as quatro causas seriam um sistema metafísico para explicar, de modo objetivo, os fenômenos provenientes da natureza (da física, por exemplo) e os fenômenos humanos (política, retórica, técnica e etc.), mas, na verdade, a própria tentativa de sistematização está profundamente enraizada na estrutura social grega. Quais as relações possíveis? Aparentemente nenhuma, mas vejamos: a sociedade grega era escravagista, assim como a sociedade medieval, baseando-se na servidão e diferenciando, de maneira rígida, os homens enquanto superiores e inferiores, segundo a divisão feita por Tomás de Aquino, como já vimos anteriormente, dignos da Arte Servili ou da Arte Liberti.
    As conexões entre a organização social e as concepções gregas acerca da casualidade ainda não parecem claras? Pensemos por um instante no cidadão da pólis ou num senhor feudal, a qual das quatro causas eles pertenceriam? Se os considerarmos enquanto usuários do que se produzia e entendermos os produtores enquanto a causa motriz, pois levavam a causa formal à material, seriam os cidadãos e senhores a causa final, visto que eram a razão pela qual determinados produtos existiam. Dessa maneira, vincula-se à causa final a ideia de uso e a ideia de uso, por sua vez, à noção de vontade, se compreendermos que a partir da vontade de uso é que se produz determinado objeto.
    Dentro dessa perspectiva, a teoria das quatro causas pode ser interpretada como uma explicação metafísica para a realidade e suas transformações (movimentos), mas que está intimamente ligada, de uma forma mais ou menos involuntária, com o campo das relações sociais estabelecidas. O indivíduo pensante julga que poderá explicar a realidade a partir de suas ideias, quando, na verdade, é só por intermédio da realidade sobre a qual se teoriza que as ideias elaboradas tornam-se compreensíveis.
     A partir do século XVII, com a teoria da casualidade sendo investigada por Galileu, Francis Bacon e Descartes, as quatro causas foram sintetizadas em apenas duas: a causa motriz ou eficiente e a causa final. Desde então o termo causa passou a ser empregado com sentido de ação que atualmente lhe damos.
     Para os físicos modernos a natureza agiria dentro de um sistema fechado de relações necessárias com causa e efeito, de forma mecânica, estando a causa motriz presente e a causa final ausente. No entanto, para a metafísica a causa final permaneceu, sendo apontada como a ação dos homens e de Deus (toda ação voluntariosa e liberta que vem, por vontade própria, visando um objetivo específico). Dessa maneira, diferencia-se os homens da natureza, pois o que é natural respeita à leis precisas e impessoais, definindo seu meio como reino da necessidade racional, e o que é humano assume-se pela finalidade e liberdade.
    Por representar um grande progresso teórico no que concerne à eliminação da causa final e pelo reconhecimento da pura necessidade mecânica nos processos da natureza, o pensamento moderno foi um marco do desenvolvimento humano, trazendo fim às explicações antropomórficas que impediam a evolução da ciência física. Traçados esses novos limites, pode-se constatar, por exemplo, a peculiaridade do ser humano: em seu corpo, é uma maquina funcionando dentro de um sistema impessoal que atende à casualidade eficiente; em seu espírito, receptáculo de toda vontade, assume a posição de agente livre, rumando para fins arbitrariamente escolhidos. Assim, pode subverter o seu corpo, máquina de atuação, às vontades de seu espírito livre, ou ainda, fazer com que a causa motriz de seu corpo sirva à causa final de sua vontade liberta. O corpo humano, dirá Descartes, é um “animal maquina”.
     Se para a natureza já não há relações hierárquicas de causa, para o homem essas relações se mantiveram. A carne, causa eficiente e motriz, está sub-vulgada pela vontade do espírito, causa final e Livre. O Homem torna-se um ser universal, se em liberdade, e é caracterizado pela união da natureza (corpo mecânico) e da espírito (vontade final). O ato de trabalhar é visto como a manifestação por excelência do homem livre, que subordina seu corpo para obter um resultado pretendido, o trabalho é um privilégio do Ser natural e espiritual.
      Como se deu a revalorização do trabalho, antes visto, nas quatro causas aristotélicas, como a causa inferior? Com fim relativo da escravidão, um novo modelo de homem começa a se destacar na sociedade, um modelo que não possui os valores atribuídos por sangue ou linhagem, mas por galgar lugares políticos, adquirir poder econômico e prestígio através de sua capacidade de trabalhar e poupar. Desponta no meio social o homem burguês.
      Junto com o que Karl Marx, em O Capital, chamou de Trabalhador Livre, (os liberados da servidão mas sem os meios de trabalho), os Burgueses, proprietários das condições de serviço, construíam novos valores para uma nova sociedade.
     E preciso que separemos a atividade trabalhista em duas áreas, considerando que o acumulo de capital não pode se dar sem sua fonte mantenedora, a exploração do trabalho: em primeiro lugar, o trabalho como fruto de uma vontade livre e movido por fins próprios; em segundo lugar, a atividade trabalhista enquanto relação maquina corporal / maquina fabril. O Burguês representando o primeiro grupo, o lado livre, que determina os fins, e os Trabalhadores constituindo o segundo grupo, a necessidade autômata, que contribui instrumentalmente para fins alheios.
    Como previsto, da mesma forma que na sociedade grega e medieval, os as quatro causas se relacionavam com a ideia de servidão, na sociedade moderna a ideologia vigente é uma representação da estrutura social. As causas, reduzidas à duas (motriz e final), ganham forma a partir do posicionamento burguês e da atividades dos trabalhadores livres. Outra vez, os parâmetros utilizados para se medir o real, os valores atribuídos ao que se entende por realidade, são reproduções inconscientes do social (em seu tempo e espaço) e não podem explicar o seu meio, sem buscar a significação a partir dele.
       O que dissemos, até o presente momento, sobre as tentativas do homem de explicar o sua época, pode ser dito também a respeito de suas constatações sobre o nosso foco inicial: o conceito de arte. Todas a conceituação feita nada mais é que o fruto de nossa interação com a natureza mediada pelas relações sociais, é a reprodução de um sistema cultural, elemento de significação flutuante que se altera no tempo e no espaço, indissociável da vida em sociedade, da classe que pertencemos ou do trabalho que exercemos, é um estado simbólico impresso sobre cada um de nós em nós e por nós mesmos através das coisas e dos outros. Ora, não podemos interpretar o real enquanto um dado dos sentidos ou um dado puramente idealista, mas sim enquanto um processo, um movimento constante de resignificação temporal e espacial, atrelado, de forma direta, às relações estabelecidos pelo homem com a natureza e entre os seus. O real, em outros termos, se constitui por um processo histórico ininterrupto e uma praxis, uma maneira de se portar no qual o agente, suas ações e reações são produtos inseparáveis uns dos outros.
      Vimos que, desde a Antiguidade Clássica, buscou-se definir o conceito de Arte. Dos apontamentos de Platão às indagações de Jan Mukařovský, pudemos perceber o drástico afastamento do uso original desse termo, à associação ocorrida entre Artístico e o Belo a partir das teorias estéticas, da enfase no gosto ou no cânone e a visão restrita que atualmente negligencia o caráter mercadológico da arte, dentro de uma sociedade capitalista, tentando separa-la dos processos sociais nos quais está inserida. Dessas tentativas, conseguimos extrair um princípio comum, um elemento aparente em todas as definições, a ideia de Processo (dotado, mais ou menos, de princípio, meio e fim), permeada por conceitos espacial e temporalmente dinâmicos. Esses conceitos, variáveis, segundo o que pudemos notar, são condicionados pela estrutura social vigente que, instaurando um modo de sociabilidade e se garantindo através de instituições determinadas (família, religião, educação, formas de arte e etc.), passa a especificar, de forma velada, por formações ideológicas, os padrões de significação de um época. Sabemos agora que o conceito de arte não é instanque, vem se alterando no correr das eras, sofre influência das relações sociais dos mais diversos níveis, está sujeito às noções de cânone de um meio determinado e busca explicar a sua realidade, mas que só faz sentido a partir dela.
    Dessa forma, podemos concluir que o conceito de arte, ou ainda, a arte em e por si mesma é um processo contínuo onde se cria e recria significados para que se possa produzir e reproduzir continuamente. Só é possível dizer da arte se o fizermos dentro de um contexto espaço-temporal específico e nunca de uma forma geral, pois qualquer tentativa de generalização conduziria-nos ao erro, haja vista que o próprio conceito de arte é já um reflexo da sociedade que o estabelece. O meio social e a obra de arte, reciproca e concomitantemente, são causa motriz e causa final de si. Elaboram e reelaboram seus elemento internos de forma ininterrupta, colaborando para a reestruturação uma da outra dentro de seu espaço comum.




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Lucca Tartaglia está onde Deus é servido conceder-lhe que seja, em companhia dos anseios, desejos, moscas, mosquitos e outros elementos auxiliares do bom estado das casas e dos sonhos. Gradua-se (ou Graduam-no) na Faculdade de Letras e Artes (mais uma que outra) da Universidade Federal de Viçosa. É colunista na ContemporARTES desde que se tem por isso. Desenvolve pesquisas na área de Literatura (Ocultismo em Fernando Pessoa) e LIBRAS (Língua Brasileira de Sinais).

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