O Processo da Arte (Parte II): a causa e a razão
A teoria das quatro causas, elaborada por Aristóteles, tinha por objetivo explicar, sistematicamente, como se dava as transformações dos seres e das coisas através do espaço-tempo. Segundo a
filósofa e historiadora, Marilena Chaui, essas mudanças eram apontadas pelos gregos como Movimento e entendidas da seguinte forma:
01) Toda mudança qualitativa de um corpo qualquer; 02) Toda mudança
quantitativa de um corpo qualquer; 03) Toda mudança de lugar ou
locomoção de um corpo qualquer; 4) Toda geração ou corrupção
dos corpos, ou seja, a origem e fim das coisas e dos homens. Dessa
forma, compreendia-se como movimento toda e qualquer alteração de
uma realidade concreta.
Segundo a teoria aristotélica das quatro causas, haveria no mundo a
causa material, que comportaria a matéria da qual os corpos
são constituídos, a causa formal, relativa à forma
constitutiva dos corpos, a causa motriz ou
eficiente, operação empregada
no intuito de se atingir determinada forma, e a causa
final, razão pela qual um
matéria específica passou a ter um forma específica. Partindo
dessa lógica, se explicava todas as coisas e como se relacionavam no
realidade concreta, a maneira como existem e se modificam, e a razão
de sua existência.
Um fator importante na teoria de
Aristóteles é que as causas eram separadas hierarquicamente, ou
seja, possuíam, entre si, um grau maior ou menor de importância: a
causa motriz ocuparia
o lugar de menor prestígio, pois exercia uma atividade transitória,
fazendo com que a causa material
recebesse a causa formal,
em outras palavras, a ação de fabricar, natural ou humana, sendo a
causa final considerada como
mais importante, pois guardava a finalidade ou motivo da existência.
Vista dessa forma, as quatro causas
seriam um sistema metafísico para explicar, de modo objetivo, os
fenômenos provenientes da natureza (da física, por exemplo) e os
fenômenos humanos (política, retórica, técnica e etc.), mas, na
verdade, a própria tentativa de sistematização está profundamente
enraizada na estrutura social grega. Quais as relações possíveis?
Aparentemente nenhuma, mas vejamos: a sociedade grega era
escravagista, assim como a sociedade medieval, baseando-se na
servidão e diferenciando, de maneira rígida, os homens enquanto
superiores e inferiores, segundo a divisão feita por Tomás de
Aquino, como já vimos anteriormente, dignos da Arte
Servili ou da Arte
Liberti.
As conexões entre a
organização social e as concepções gregas acerca da casualidade
ainda não parecem claras? Pensemos por um instante no cidadão da
pólis ou num senhor feudal, a qual das quatro causas eles
pertenceriam? Se os considerarmos enquanto usuários do que se
produzia e entendermos os produtores enquanto a causa
motriz, pois levavam a causa
formal à material,
seriam os cidadãos e senhores a causa final,
visto que eram a razão pela qual determinados produtos existiam.
Dessa maneira, vincula-se à causa final
a ideia de uso e a ideia de uso, por sua vez, à noção de vontade,
se compreendermos que a partir da vontade de uso é que se produz
determinado objeto.
Dentro dessa perspectiva, a teoria das quatro causas pode ser
interpretada como uma explicação metafísica para a realidade e
suas transformações (movimentos), mas que está intimamente ligada,
de uma forma mais ou menos involuntária, com o campo das relações
sociais estabelecidas. O indivíduo pensante julga que poderá
explicar a realidade a partir de suas ideias, quando, na verdade, é
só por intermédio da realidade sobre a qual se teoriza que as
ideias elaboradas tornam-se compreensíveis.
A partir do século XVII, com a
teoria da casualidade sendo investigada por Galileu, Francis Bacon e
Descartes, as quatro causas foram sintetizadas em apenas duas: a
causa motriz
ou eficiente e a causa
final. Desde então o termo
causa passou a ser
empregado com sentido de ação que atualmente lhe damos.
Para os físicos modernos a
natureza agiria dentro de um sistema fechado de relações
necessárias com causa e efeito, de forma mecânica, estando a causa
motriz presente e a
causa final ausente.
No entanto, para a metafísica a causa final permaneceu,
sendo apontada como a ação dos homens e de Deus (toda ação
voluntariosa e liberta que vem, por vontade própria, visando um
objetivo específico). Dessa maneira, diferencia-se os homens da
natureza, pois o que é natural respeita à leis precisas e
impessoais, definindo seu meio como reino da necessidade racional, e
o que é humano assume-se pela finalidade e liberdade.
Por representar um grande progresso
teórico no que concerne à eliminação da causa final e
pelo reconhecimento da pura necessidade mecânica nos processos da
natureza, o pensamento moderno foi um marco do desenvolvimento
humano, trazendo fim às explicações antropomórficas que impediam
a evolução da ciência física. Traçados esses novos limites,
pode-se constatar, por exemplo, a peculiaridade do ser humano: em seu
corpo, é uma maquina funcionando dentro de um sistema impessoal que
atende à casualidade eficiente; em seu espírito, receptáculo de
toda vontade, assume a posição de agente livre, rumando para fins
arbitrariamente escolhidos. Assim, pode subverter o seu corpo,
máquina de atuação, às vontades de seu espírito livre, ou ainda,
fazer com que a causa motriz
de seu corpo sirva à causa final
de sua vontade liberta. O corpo humano, dirá Descartes, é um
“animal maquina”.
Se para a natureza já não há
relações hierárquicas de causa, para o homem essas relações se
mantiveram. A carne, causa
eficiente e motriz,
está sub-vulgada pela vontade do espírito, causa final e
Livre. O Homem
torna-se um ser universal, se em liberdade, e é caracterizado pela
união da natureza (corpo mecânico) e da espírito (vontade final).
O ato de trabalhar é visto como a manifestação por excelência do
homem livre, que subordina seu corpo para obter um resultado
pretendido, o trabalho é um privilégio do Ser natural e espiritual.
Como se deu a revalorização do trabalho, antes visto, nas quatro
causas aristotélicas, como a causa inferior? Com fim relativo da
escravidão, um novo modelo de homem começa a se destacar na
sociedade, um modelo que não possui os valores atribuídos por
sangue ou linhagem, mas por galgar lugares políticos, adquirir poder
econômico e prestígio através de sua capacidade de trabalhar e
poupar. Desponta no meio social o homem burguês.
Junto com o que Karl Marx, em O
Capital, chamou de Trabalhador
Livre, (os liberados da servidão
mas sem os meios de trabalho), os Burgueses, proprietários das
condições de serviço, construíam novos valores para uma nova
sociedade.
E preciso que separemos a atividade trabalhista em duas áreas,
considerando que o acumulo de capital não pode se dar sem sua fonte
mantenedora, a exploração do trabalho: em primeiro lugar, o
trabalho como fruto de uma vontade livre e movido por fins próprios;
em segundo lugar, a atividade trabalhista enquanto relação maquina
corporal / maquina fabril. O Burguês representando o primeiro grupo,
o lado livre, que determina os fins, e os Trabalhadores constituindo
o segundo grupo, a necessidade autômata, que contribui
instrumentalmente para fins alheios.
Como previsto, da mesma forma que
na sociedade grega e medieval, os as quatro causas se relacionavam
com a ideia de servidão, na sociedade moderna a ideologia vigente é
uma representação da estrutura social. As causas, reduzidas à duas
(motriz e final),
ganham forma a partir do posicionamento burguês e da atividades dos
trabalhadores livres. Outra vez, os parâmetros utilizados para se
medir o real, os valores atribuídos ao que se entende por realidade,
são reproduções inconscientes do social (em seu tempo e espaço) e
não podem explicar o seu meio, sem buscar a significação a partir
dele.
O que dissemos, até o presente
momento, sobre as tentativas do homem de explicar o sua época, pode
ser dito também a respeito de suas constatações sobre o nosso foco
inicial: o conceito de arte. Todas a conceituação feita nada mais é
que o fruto de nossa interação com a natureza mediada pelas
relações sociais, é a reprodução de um sistema cultural,
elemento de significação flutuante que se altera no tempo e no
espaço, indissociável da vida em sociedade, da classe que
pertencemos ou do trabalho que exercemos, é um estado simbólico
impresso sobre cada um de nós em nós e por nós mesmos através das
coisas e dos outros. Ora, não podemos interpretar o real enquanto um
dado dos sentidos ou um dado puramente idealista, mas sim enquanto um
processo, um movimento constante de resignificação temporal e
espacial, atrelado, de forma direta, às relações estabelecidos
pelo homem com a natureza e entre os seus. O real, em outros termos,
se constitui por um processo histórico ininterrupto e uma praxis,
uma maneira de se portar no qual o agente, suas ações e reações
são produtos inseparáveis uns dos outros.
Vimos que, desde a Antiguidade
Clássica, buscou-se definir o conceito de Arte. Dos apontamentos de
Platão às indagações de Jan
Mukařovský,
pudemos perceber o drástico afastamento do uso original desse termo,
à associação ocorrida entre Artístico e o Belo a partir das
teorias estéticas, da enfase no gosto ou no cânone e a visão
restrita que atualmente negligencia o caráter mercadológico da arte,
dentro de uma sociedade capitalista, tentando separa-la dos processos
sociais nos quais está inserida. Dessas tentativas, conseguimos
extrair um
princípio comum,
um elemento aparente em todas as definições, a ideia de Processo
(dotado, mais ou menos, de princípio, meio e fim), permeada por
conceitos espacial e temporalmente dinâmicos. Esses conceitos,
variáveis, segundo o que pudemos notar, são condicionados pela
estrutura social vigente que, instaurando um modo de sociabilidade e
se garantindo através de instituições determinadas (família,
religião, educação, formas de arte e etc.), passa a especificar,
de forma velada, por formações ideológicas, os padrões de
significação de um época. Sabemos agora que o conceito de arte não
é instanque, vem se alterando no correr das eras, sofre influência
das relações sociais dos mais diversos níveis, está sujeito às
noções de cânone de um meio determinado e busca explicar a sua
realidade, mas que só faz sentido a partir dela.
Dessa forma,
podemos concluir que o conceito de arte, ou ainda, a arte em e por si
mesma é um processo contínuo onde se cria e recria significados
para que se possa produzir e reproduzir continuamente. Só é
possível dizer da arte se o fizermos dentro de um contexto
espaço-temporal específico e nunca de uma forma geral, pois
qualquer tentativa de generalização conduziria-nos ao erro, haja
vista que o próprio conceito de arte é já um reflexo da sociedade
que o estabelece. O meio
social e a obra de arte, reciproca e concomitantemente, são causa
motriz e causa final de si. Elaboram e reelaboram seus
elemento internos de forma ininterrupta, colaborando para a
reestruturação uma da outra dentro de seu espaço comum.LEIA TAMBÉM: O Processo da Arte (Parte I): lá e de volta outra vez
Lucca Tartaglia está onde Deus é servido conceder-lhe que seja, em companhia dos anseios, desejos, moscas, mosquitos e outros elementos auxiliares do bom estado das casas e dos sonhos. Gradua-se (ou Graduam-no) na Faculdade de Letras e Artes (mais uma que outra) da Universidade Federal de Viçosa. É colunista na ContemporARTES desde que se tem por isso. Desenvolve pesquisas na área de Literatura (Ocultismo em Fernando Pessoa) e LIBRAS (Língua Brasileira de Sinais).
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