Perigo amarelo e de preferência... GELADO!
Em
1935, no livro Idéias
de João Ninguém,
coletânea de crônicas escritas para o jornal “Follha da Noite”
(atual “Folha de São Paulo”), o cronista e cartunista paulistano
Belmonte (Benedito Carneiro Bastos Barreto) publicou uma crônica
intitulada “Perigo Amarelo”. Se apenas associarmos o título da
matéria à época da publicação, seria praticamente inevitável
conectá-lo ao clima dos debates tanto contrários quanto favoráveis
à imigração japonesa, que se deram por ocasião da Assembleia
Nacional Constituinte (1933-34). No entanto – e felizmente -, as
coisas não são “tão simples” assim...O “perigo amarelo” ao
qual Belmonte faz alusão - de forma irônica - é bem mais sedutor e
saboroso do que os áridas discussões que ocorreram na então
capital federal, o Rio de Janeiro: tratava-se da cerveja nipônica!
Com
um toque nada exotista, mas sempre em tom de ironia, em suas linhas
iniciais o autor alerta os mais incautos para o fato de que o Japão
deixara de ser o “doce país das geishas”, e os japoneses já não
eram mais um “povo ingênuo e infantil”. Belmonte, então,
apresenta brevemente aos leitores da época um Japão também
possuidor das qualidades
do Ocidente - i.e., armamento moderno e lâmpadas. Segundo ele,
tratava-se de “qualidades” menos efêmeras (e exóticas) e que,
por isso mesmo, acabaram por incomodar a europeus e norte-americanos.
Mas, para a grande surpresa do autor, foi a entrada, em mercados
europeus, “desses esquisitos orientais”, no ramo da produção e
tentativa de exportação de cerveja tipo Pilsen, a razão do
verdadeiro perigo
amarelo – ou
seja, a bela coloração de suas “loiras” -
Ao
ler essa crônica pela primeira vez, uns dez anos atrás, vasculhei
na internet e em algumas publicações e jornais informações que
pudessem confirmar tal tentativa nipônica, na época referida
(1930’s), de exportar cerveja e abrir concorrência em terras
europeias. Infelizmente, não encontrei nenhuma informação que
pudesse servir de referência ou inspiração a Belmonte. No meu caso
em particular, o fato é que realmente as cervejas destas bandas onde
“nasce o Sol”, acabaram realmente se tornando “um perigo”
para mim...
Em
terras brasileiras, nunca fui muito chegado a “uma breja” - bebia
uma vez ou outra uma Original, mas sempre preferi um bom vinho tinto
à cerveja. No entanto, aqui no Japão, devagar, bem devagar (dan
dan,
no jargão japonês) passei a experimentar e consumir algumas
“loiras” nativas e olha que, para minha surpresa, passei a
apreciar a cerveja daqui, a ponto de deixar os tintos um pouco de
lado.
A
cerveja é a bebida alcoólica mais consumida pelos japoneses, tendo
aqui arribado, timidamente, no século XVII, graças aos comerciantes
holandeses em Deshima (sul do Japão). Mas acabou se popularizando
apenas na era Meiji (1868-1912). As quatro grandes produtoras de
cerveja nipônica, Sapporo, Asahi, Kiri e Suntory, surgiram no último
quartel do século XIX e se tornaram desde então as referências
para o paladar nipônico. Entre essas grandes marcas, a minha
favorita é a Asahi Super Dry. Lançada em 1987, essa cerveja
karakuchi
(辛口=
“
de gosto seco”) – um termo geralmente usado para classificar
nihonshou
(traduzido como “saquê”) - causou grande alvoroço, tornando-se
a cerveja “flagship”da marca Asahi. Talvez esse estrépito se
deva à novidade de seu caráter de “dry beer”, à massiva
campanha publicitária e, claro, ao fato de ser ela uma cerveja boa
mesmo – tudo isso fez dela a mais vendida “breja” no Japão.
(Observação: não classifiquei a Super Dry como ótima, mas como
BOA prá caramba! Sobre a que considero ÓTIMA tecerei considerações
já já...).
Existe
uma miríade de microcervejarias, algumas artesanais, espalhadas pelo
Japão, produzindo vários tipos de “biru” (cerveja em japonês)
para todos os gostos, sendo as Lager e Pilsen as preferidas pelos
nipônicos. Neste interessante universo, acabei por descobrir ao
acaso, em uma das nossas idas ao supermercado (taí um lugar de
eternas descobertas...), a minha “biru”favorita: Minoh Beer!
(http://www.minoh-beer.jp/).
O
que imediatamente chamou a minha atenção, mesmo antes de
degustá-la, foi o nome, Minoh - o mesmo da cidade onde moramos.
Tratava-se, portanto, de uma cerveja nativa da terrinha (100%
osaquense), criada em 1997. Comprei duas garrafas do tipo Lager para
experimentar. Não perdi tempo: logo ao jantar, abri uma e mandei
ver. Bem diferente da Asahi Super Dry: mais cremosa, suave, de
coloração mais clara e com uma espuma “bem brasileira”! O
curioso é que a Minoh Beer não é uma cerveja fácil de encontrar
e, para minha surpresa, muita gente próxima a nós (estudantes,
amigos japoneses e estrangeiros), desconhecia a dita cuja!
Sobre
a interessante história dessa cervejaria local, dê uma olhada no
link abaixo e você, caro leitor, verá que o que escrevi acima não
tem nem uma gota – aliás, nem um copo! - de propaganda enganosa,
pois a cerveja tipo Stout da Minoh Beer recebeu em 2009 o título de
melhor “Dry Stout” do mundo!!
(http://www.worldbeerawards.com/beer/minoh_beer_stout-5467.html)
Mecha sugoii!
(Muito
legal!! no dialeto de Kansai). Experimentei a dita cuja, Imperial
Stout, no ano passado, e ela é, realmente, um verdadeiro perigo de
deliciosa! Na minha modesta opinião de “brejeiro” de fim de
semana, a Stout osaquense deixa a irlandesa Guiness no chinelinho!
Last
but not least,
a relação dos japoneses com a cerveja é completamente diferente da
nossa, brasileiros, a começar pela propaganda de cerveja veiculada
na mídia, até o ato (prazeroso) de degustar uma “loira gelada”.
No caso da propaganda, principalmente televisiva, a cerveja é
mostrada como uma bebida que serve para relaxar depois de uma jornada
de trabalho ou durante um fim de semana, servindo como elemento de
“união”, reforçando a ideia de coletividade e de celebração
entre amigos e familiares ou explorando aspectos históricos e
culturais. Nada a ver com “Futebol, Carnaval, Peitos e Bundas”
como na terra
brasilis...
Isso me fez lembrar um trecho da obra Empire
of signs
do francês Roland Barthes, sobre a questão da sexualidade no Japão:
“(...) in
Japan – in that country I am calling Japan – sexuality is in sex,
not elsewhere; in the United States, is the contrary; sex is in
everywhere; except in sexuality”
(p. 29)
Após
quatro anos aqui, posso afirmar que, com relação ao Japão,
concordo com Barthes. Sobre os Estados Unidos, não tenho vivência
“ianque” para avaliar a afirmação do semiólogo francês, mas
se colocar o Brasil no lugar dos americanos, concordo de novo com
ele, plenamente!
Digressões
a parte, o fato é que o próprio ato de beber
em grupo por estas bandas envolve uma certa hierarquia (por exemplo,
as mulheres servindo os homens), quase ritualística, embora, claro,
às vezes não seguida. Mas já ouvi de muita gente – estrangeiros
- a afirmação: “Os japoneses não sabem beber!”, ou seja, bebem
para “agradar” aos outros ou para encher a cara...Não discordo
completamente...
Declaração
final: elaborar este longo artigo acabou me deixando de goela seca,
por isso, só mais uma frase e vou encher um copo com uma Minoh
Beer, de colarinho bem alto e cremoso... Quando eu me for daqui, com
certeza, além do arroz e dos onsen, sentirei imensa falta dessa
deliciosa Dry Stout da terrinha osaquense-minohana!!!
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imagens publicadas na coluna possuem direitos autorais Copyright
©2014AkitiDezem
Links
interessantes:
http://beerinjapan.com/bij/1172/minoh-beer-osaka/
Rogerio
Akiti Dezem é
professor visitante de língua portuguesa e cultura brasileira da
Universidade de Osaka, no Japão. Mestre em História Social pela
Universidade de São Paulo (USP), é autor de Matizes
do Amarelo - A gênese dos discursos sobre os orientais no
Brasil (Humanitas,
2005) entre outros livros. Além da História, sua grande paixão é
a Fotografia (http://akitidezemphotowalker.zenfolio.com/).
1 comentários:
Fala a verdade, ó nobre professor, escritor, fotógrafo, cachimbeiro e "brejeiro": você escreveu esse texto quase líquido abastecido de uns bons pints de "Dry Stout" da terrinha osaquense... Porque sua crônica "brejeiral" tá tão atraente quanto um copo bem orvalhado e de conteúdo loiro... Salut! Chin-chin! Prosit! Na zdorov! Fi sihitaek! L´chayim! Steniyasas! Aapki sehat! Essas são algumas das universais maneiras de "brejeiros" se saudarem uns aos outros. Ah, sim, sem esquecer,é claro, de KAMPAI!!!!
25 de abril de 2014 às 15:18Postar um comentário
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