quarta-feira, 23 de abril de 2014

Perigo amarelo e de preferência... GELADO!



Em 1935, no livro Idéias de João Ninguém, coletânea de crônicas escritas para o jornal “Follha da Noite” (atual “Folha de São Paulo”), o cronista e cartunista paulistano Belmonte (Benedito Carneiro Bastos Barreto) publicou uma crônica intitulada “Perigo Amarelo”. Se apenas associarmos o título da matéria à época da publicação, seria praticamente inevitável conectá-lo ao clima dos debates tanto contrários quanto favoráveis à imigração japonesa, que se deram por ocasião da Assembleia Nacional Constituinte (1933-34). No entanto – e felizmente -, as coisas não são “tão simples” assim...O “perigo amarelo” ao qual Belmonte faz alusão - de forma irônica - é bem mais sedutor e saboroso do que os áridas discussões que ocorreram na então capital federal, o Rio de Janeiro: tratava-se da cerveja nipônica!
Com um toque nada exotista, mas sempre em tom de ironia, em suas linhas iniciais o autor alerta os mais incautos para o fato de que o Japão deixara de ser o “doce país das geishas”, e os japoneses já não eram mais um “povo ingênuo e infantil”. Belmonte, então, apresenta brevemente aos leitores da época um Japão também possuidor das qualidades do Ocidente - i.e., armamento moderno e lâmpadas. Segundo ele, tratava-se de “qualidades” menos efêmeras (e exóticas) e que, por isso mesmo, acabaram por incomodar a europeus e norte-americanos. Mas, para a grande surpresa do autor, foi a entrada, em mercados europeus, “desses esquisitos orientais”, no ramo da produção e tentativa de exportação de cerveja tipo Pilsen, a razão do verdadeiro perigo amarelo – ou seja, a bela coloração de suas “loiras” -
Ao ler essa crônica pela primeira vez, uns dez anos atrás, vasculhei na internet e em algumas publicações e jornais informações que pudessem confirmar tal tentativa nipônica, na época referida (1930’s), de exportar cerveja e abrir concorrência em terras europeias. Infelizmente, não encontrei nenhuma informação que pudesse servir de referência ou inspiração a Belmonte. No meu caso em particular, o fato é que realmente as cervejas destas bandas onde “nasce o Sol”, acabaram realmente se tornando “um perigo” para mim...
Em terras brasileiras, nunca fui muito chegado a “uma breja” - bebia uma vez ou outra uma Original, mas sempre preferi um bom vinho tinto à cerveja. No entanto, aqui no Japão, devagar, bem devagar (dan dan, no jargão japonês) passei a experimentar e consumir algumas “loiras” nativas e olha que, para minha surpresa, passei a apreciar a cerveja daqui, a ponto de deixar os tintos um pouco de lado.



A cerveja é a bebida alcoólica mais consumida pelos japoneses, tendo aqui arribado, timidamente, no século XVII, graças aos comerciantes holandeses em Deshima (sul do Japão). Mas acabou se popularizando apenas na era Meiji (1868-1912). As quatro grandes produtoras de cerveja nipônica, Sapporo, Asahi, Kiri e Suntory, surgiram no último quartel do século XIX e se tornaram desde então as referências para o paladar nipônico. Entre essas grandes marcas, a minha favorita é a Asahi Super Dry. Lançada em 1987, essa cerveja karakuchi (辛口= “ de gosto seco”) – um termo geralmente usado para classificar nihonshou (traduzido como “saquê”) - causou grande alvoroço, tornando-se a cerveja “flagship”da marca Asahi. Talvez esse estrépito se deva à novidade de seu caráter de “dry beer”, à massiva campanha publicitária e, claro, ao fato de ser ela uma cerveja boa mesmo – tudo isso fez dela a mais vendida “breja” no Japão. (Observação: não classifiquei a Super Dry como ótima, mas como BOA prá caramba! Sobre a que considero ÓTIMA tecerei considerações já já...).
Existe uma miríade de microcervejarias, algumas artesanais, espalhadas pelo Japão, produzindo vários tipos de “biru” (cerveja em japonês) para todos os gostos, sendo as Lager e Pilsen as preferidas pelos nipônicos. Neste interessante universo, acabei por descobrir ao acaso, em uma das nossas idas ao supermercado (taí um lugar de eternas descobertas...), a minha “biru”favorita: Minoh Beer! (http://www.minoh-beer.jp/).
O que imediatamente chamou a minha atenção, mesmo antes de degustá-la, foi o nome, Minoh - o mesmo da cidade onde moramos. Tratava-se, portanto, de uma cerveja nativa da terrinha (100% osaquense), criada em 1997. Comprei duas garrafas do tipo Lager para experimentar. Não perdi tempo: logo ao jantar, abri uma e mandei ver. Bem diferente da Asahi Super Dry: mais cremosa, suave, de coloração mais clara e com uma espuma “bem brasileira”! O curioso é que a Minoh Beer não é uma cerveja fácil de encontrar e, para minha surpresa, muita gente próxima a nós (estudantes, amigos japoneses e estrangeiros), desconhecia a dita cuja!
Sobre a interessante história dessa cervejaria local, dê uma olhada no link abaixo e você, caro leitor, verá que o que escrevi acima não tem nem uma gota – aliás, nem um copo! - de propaganda enganosa, pois a cerveja tipo Stout da Minoh Beer recebeu em 2009 o título de melhor “Dry Stout” do mundo!! (http://www.worldbeerawards.com/beer/minoh_beer_stout-5467.html) Mecha sugoii! (Muito legal!! no dialeto de Kansai). Experimentei a dita cuja, Imperial Stout, no ano passado, e ela é, realmente, um verdadeiro perigo de deliciosa! Na minha modesta opinião de “brejeiro” de fim de semana, a Stout osaquense deixa a irlandesa Guiness no chinelinho!

Last but not least, a relação dos japoneses com a cerveja é completamente diferente da nossa, brasileiros, a começar pela propaganda de cerveja veiculada na mídia, até o ato (prazeroso) de degustar uma “loira gelada”. No caso da propaganda, principalmente televisiva, a cerveja é mostrada como uma bebida que serve para relaxar depois de uma jornada de trabalho ou durante um fim de semana, servindo como elemento de “união”, reforçando a ideia de coletividade e de celebração entre amigos e familiares ou explorando aspectos históricos e culturais. Nada a ver com “Futebol, Carnaval, Peitos e Bundas” como na terra brasilis... Isso me fez lembrar um trecho da obra Empire of signs do francês Roland Barthes, sobre a questão da sexualidade no Japão:
(...) in Japan – in that country I am calling Japan – sexuality is in sex, not elsewhere; in the United States, is the contrary; sex is in everywhere; except in sexuality” (p. 29)
Após quatro anos aqui, posso afirmar que, com relação ao Japão, concordo com Barthes. Sobre os Estados Unidos, não tenho vivência “ianque” para avaliar a afirmação do semiólogo francês, mas se colocar o Brasil no lugar dos americanos, concordo de novo com ele, plenamente!
Digressões a parte, o fato é que o próprio ato de beber em grupo por estas bandas envolve uma certa hierarquia (por exemplo, as mulheres servindo os homens), quase ritualística, embora, claro, às vezes não seguida. Mas já ouvi de muita gente – estrangeiros - a afirmação: “Os japoneses não sabem beber!”, ou seja, bebem para “agradar” aos outros ou para encher a cara...Não discordo completamente...
Declaração final: elaborar este longo artigo acabou me deixando de goela seca, por isso, só mais uma frase e vou encher um copo com uma Minoh Beer, de colarinho bem alto e cremoso... Quando eu me for daqui, com certeza, além do arroz e dos onsen, sentirei imensa falta dessa deliciosa Dry Stout da terrinha osaquense-minohana!!!

Todas imagens publicadas na coluna possuem direitos autorais Copyright ©2014AkitiDezem


Links interessantes:
http://beerinjapan.com/bij/1172/minoh-beer-osaka/




Rogerio Akiti Dezem é professor visitante de língua portuguesa e cultura brasileira da Universidade de Osaka, no Japão. Mestre em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), é autor de Matizes do Amarelo - A gênese dos discursos sobre os orientais no Brasil (Humanitas, 2005) entre outros livros. Além da História, sua grande paixão é a Fotografia (http://akitidezemphotowalker.zenfolio.com/).













1 comentários:

mariochico disse...

Fala a verdade, ó nobre professor, escritor, fotógrafo, cachimbeiro e "brejeiro": você escreveu esse texto quase líquido abastecido de uns bons pints de "Dry Stout" da terrinha osaquense... Porque sua crônica "brejeiral" tá tão atraente quanto um copo bem orvalhado e de conteúdo loiro... Salut! Chin-chin! Prosit! Na zdorov! Fi sihitaek! L´chayim! Steniyasas! Aapki sehat! Essas são algumas das universais maneiras de "brejeiros" se saudarem uns aos outros. Ah, sim, sem esquecer,é claro, de KAMPAI!!!!

25 de abril de 2014 às 15:18

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