quinta-feira, 22 de maio de 2014

O Triangulo motriz: nota sobre a “tricotomia” de Filipe Marinheiro



Filipe Marinheiro publicou seu segundo livro, Silêncios, pela Chiado Editora, em dezembro de 2013.


Do berro ao sussurro,

Do sussurro ao silêncio,

Do silêncio ao berro...


          “Após chutar a dita estética frágil”, descrendo “na cega literatura violentíssima” e – para o poeta – “inexistente”, Marinheiro transborda por entre os murmúrios – incessante – à procura de uma forma-além, da matéria (a)grafada, da expressão viva, sonora e verbal. Um espírito que inteiro seja o oposto de si. Um poema que se torne anónimo para fora e dentro brotando qualquer coisa”, ruminado no espaço senil e lisonjeiro, talhado por finas mãos – toques de amanhecer – de lento a lento, de quase a pouco, o Silêncio, nada mais, nada menos”.
            “O acto de escrever poesia” é um eterno reverse, “é simplesmente um jogo de estados de espírito refletidos num espelho metido para dentro e para fora. A escrita - corporificação dos reflexos – seria um fim tomado por início e uma reinvenção dos meios, um eterno retorno e uma constante releitura de si onde “a palavra e a linguagem são meros instrumentos.
    Nesse empenho, tamborilando pontas e extremos, ora estrondos e brados, ora quietudes e quedas, o livro se constrói sobre três pilares maiores: o berro, explosão de vontade visceral; o silêncio, estado – busca e contentamento - de alcance pendular e temporal; o sussurro, um tomar-se para si, dizer ao pé do ouvido – em cadência firme e serena – o que se vai anunciar.
        “Cada pessoa deve tirar a sua própria ilação”, diz o autor, “ato de leitura e interpretação deve ser livre”. Para cada profundidade uma medida, para cada terreno um preparo, para cada estrada um caminho. Que os símbolos postos sejam – aos olhos de quem os (re)inventa – o seu próprio segredo. O mesmo poema poderá ser límpido ou compacto, dependendo dos olhos de quem o lê”.

O que esperar desse Marinheiro? Tomemos para nós o revés da frase glorioso de antigos navegantes. Que faça - cada leitor - a sua "ilação".  "Navegar (viver) é ___________, viver (navegar) ____ é __________".



Sem título 1
A minha cabeça pensa em todas as cabeças é sombriamente
todas as outras cabeças, entranham-se, entram umas nas
outras, na minha! – inquieto-me, estremeço, esmago-me,
imortalizo-me tornando vidente tudo o que mexe…
Sem título 2
Uma vez
atei lençóis ferrugentos
aos membros lisos
da claridade daquele céu tatuado,
como deslizava lasso ao longo
da corrente sanguínea
de um qualquer envenenamento.
Após sobrepostas vibrações
retalharem a sombra da minha fechadura.
São terríveis os afectos.
Sem título 3
fecho os olhos
abro-me nos teus como uma balada impune no seu sangue
oscilante
entretido percorro-te, estremeço-me nas veias singulares
depois com a ponta da língua
afável caligrafia reponho as cordas giratórias
e andas no meu imenso chão
um chão embalado p’los nossos sorrisos de cetim
só teu, só meu a transformar-se
porém nunca a concluir ou terminar salvo esse romance
nada súbito a apertarem violetas durante
jactos perfumados
decerto uma bondade eterna
eis donde chegam os meus afectos
e nas artérias de seda cristal
crias novas meigas cores novos ligeiros ares
novos amantes tons
novos endurecidos ruídos
novo auroreal amor para eu continuar a ver
a ver-te debruçada sobre mar transparente
com veludo de orvalho entre os poros
a ver-nos encalhados continuando a moldar
brancos banhos
como numa nossa gargalhada
a dormir no cume de videntes astros adentro
só dessa maneira
estaremos destinados a tais grandes coisas
Sem título 4
Na palma de minha mão
cabem os esguichos daquele emaranhado mar
ofegante
esfiam-se cachos de búzios nas bordas
tacteando uma pandemia de linhos a puxarem-se
temperamentalmente
do bico pontiagudo das aves a moer
o céu pálido da boca
amedrontava num arrepio arenoso
embora fosse embarcar nas ocas águas
sem os antepassados existirem
decidi riscar
o fundo que não estava destinado
à visita de grandes visões
e apaguei os declinados olhos migrantes
até esgaçar o ódio que restava
no punho carregado de sal aberto
é notável defesa redescobrir o exílio lânguido
quando se move
uma traça míope antes da sua nascença fétida
donde vejo
redentor sorriso a caber-me

Filipe Marinheiro / in Silêncios (2013)

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