O Triangulo motriz: nota sobre a “tricotomia” de Filipe Marinheiro
Filipe
Marinheiro publicou seu segundo livro, Silêncios,
pela Chiado Editora, em dezembro de 2013.
Do
berro ao sussurro,
Do sussurro ao silêncio,
Do silêncio ao berro...
“Após chutar a dita estética frágil”, descrendo “na cega
literatura violentíssima” e – para o poeta – “inexistente”, Marinheiro
transborda por entre os murmúrios – incessante – à procura de uma
forma-além, da matéria (a)grafada, da expressão viva, sonora e verbal. Um espírito
que inteiro seja o oposto de si. Um poema que se torne “anónimo para fora e dentro
brotando qualquer coisa”, ruminado no espaço senil e lisonjeiro,
talhado por finas mãos – toques de amanhecer – de lento a lento, de quase a pouco,
“o Silêncio, nada mais, nada menos”.
“O acto
de escrever poesia” é um eterno reverse, “é
simplesmente um jogo de estados de espírito refletidos num espelho metido para
dentro e para fora”. A escrita - corporificação dos reflexos – seria um fim tomado por
início e uma reinvenção dos meios, um eterno retorno e uma constante releitura
de si onde “a palavra e a linguagem são meros instrumentos”.
Nesse empenho, tamborilando
pontas e extremos, ora estrondos e brados, ora quietudes e quedas, o livro se constrói
sobre três pilares maiores: o berro,
explosão de vontade visceral; o silêncio,
estado – busca e contentamento - de alcance pendular e temporal; o sussurro, um tomar-se para si, dizer
ao pé do ouvido – em cadência firme e serena – o que se vai anunciar.
“Cada
pessoa deve tirar a sua própria ilação”, diz o autor, “ato de leitura e interpretação
deve ser livre”. Para cada profundidade uma medida, para cada terreno um
preparo, para cada estrada um caminho. Que os símbolos postos sejam – aos olhos
de quem os (re)inventa – o seu próprio segredo. “O mesmo poema poderá ser
límpido ou compacto, dependendo dos olhos de quem o lê”.
O que esperar desse Marinheiro? Tomemos para nós o revés da frase glorioso de antigos navegantes. Que faça - cada leitor - a sua "ilação". "Navegar (viver) é ___________, viver (navegar) ____ é __________".
Sem título 1
A minha cabeça pensa em todas as cabeças é sombriamente
todas as outras cabeças, entranham-se, entram umas nas
outras, na minha! – inquieto-me, estremeço, esmago-me,
imortalizo-me tornando vidente tudo o que mexe…
todas as outras cabeças, entranham-se, entram umas nas
outras, na minha! – inquieto-me, estremeço, esmago-me,
imortalizo-me tornando vidente tudo o que mexe…
Sem título 2
Uma vez
atei lençóis ferrugentos
aos membros lisos
da claridade daquele céu tatuado,
como deslizava lasso ao longo
da corrente sanguínea
de um qualquer envenenamento.
Após sobrepostas vibrações
retalharem a sombra da minha fechadura.
São terríveis os afectos.
atei lençóis ferrugentos
aos membros lisos
da claridade daquele céu tatuado,
como deslizava lasso ao longo
da corrente sanguínea
de um qualquer envenenamento.
Após sobrepostas vibrações
retalharem a sombra da minha fechadura.
São terríveis os afectos.
Sem título 3
fecho os olhos
abro-me nos teus como uma balada impune no seu sangue
oscilante
abro-me nos teus como uma balada impune no seu sangue
oscilante
entretido percorro-te, estremeço-me nas veias singulares
depois com a ponta da língua
afável caligrafia reponho as cordas giratórias
depois com a ponta da língua
afável caligrafia reponho as cordas giratórias
e andas no meu imenso chão
um chão embalado p’los nossos sorrisos de cetim
só teu, só meu a transformar-se
um chão embalado p’los nossos sorrisos de cetim
só teu, só meu a transformar-se
porém nunca a concluir ou terminar salvo esse romance
nada súbito a apertarem violetas durante
jactos perfumados
nada súbito a apertarem violetas durante
jactos perfumados
decerto uma bondade eterna
eis donde chegam os meus afectos
eis donde chegam os meus afectos
e nas artérias de seda cristal
crias novas meigas cores novos ligeiros ares
novos amantes tons
novos endurecidos ruídos
novo auroreal amor para eu continuar a ver
crias novas meigas cores novos ligeiros ares
novos amantes tons
novos endurecidos ruídos
novo auroreal amor para eu continuar a ver
a ver-te debruçada sobre mar transparente
com veludo de orvalho entre os poros
a ver-nos encalhados continuando a moldar
brancos banhos
com veludo de orvalho entre os poros
a ver-nos encalhados continuando a moldar
brancos banhos
como numa nossa gargalhada
a dormir no cume de videntes astros adentro
só dessa maneira
estaremos destinados a tais grandes coisas
a dormir no cume de videntes astros adentro
só dessa maneira
estaremos destinados a tais grandes coisas
Sem título 4
Na palma de minha mão
cabem os esguichos daquele emaranhado mar
ofegante
cabem os esguichos daquele emaranhado mar
ofegante
esfiam-se cachos de búzios nas bordas
tacteando uma pandemia de linhos a puxarem-se
temperamentalmente
do bico pontiagudo das aves a moer
o céu pálido da boca
amedrontava num arrepio arenoso
tacteando uma pandemia de linhos a puxarem-se
temperamentalmente
do bico pontiagudo das aves a moer
o céu pálido da boca
amedrontava num arrepio arenoso
embora fosse embarcar nas ocas águas
sem os antepassados existirem
decidi riscar
o fundo que não estava destinado
à visita de grandes visões
sem os antepassados existirem
decidi riscar
o fundo que não estava destinado
à visita de grandes visões
e apaguei os declinados olhos migrantes
até esgaçar o ódio que restava
no punho carregado de sal aberto
até esgaçar o ódio que restava
no punho carregado de sal aberto
é notável defesa redescobrir o exílio lânguido
quando se move
uma traça míope antes da sua nascença fétida
donde vejo
redentor sorriso a caber-me
Filipe Marinheiro / in Silêncios (2013)
quando se move
uma traça míope antes da sua nascença fétida
donde vejo
redentor sorriso a caber-me
Filipe Marinheiro / in Silêncios (2013)
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