sexta-feira, 27 de junho de 2014

Estradas da vida: Muitas maneiras de ser mulher




 Estradas da Vida:  Muitas maneiras de ser mulher.

Nos últimos tempos, voltei a refletir sobre um velho problema para nós, estudiosas e pesquisadoras da área de gênero e cultura, e que vinha também à tona nas discussões que trouxe aqui em semanas anteriores: se de fato os códigos normativos  que se impunham sobre as mulheres, digamos, no século XIX - e até pelo menos a época de emergência do Círculo Beat lá pelos anos 50 do século passado - eram fortes e aprisionadores, devemos realmente pensar que a maior parte das mulheres se aderiam a eles?    Ao reforçar o Mito da Mulher que a sociedade oitecentista europeu tanto se empenhou em hegemonizar ( Kehl, 1998), se afirmavam regimes discursivos que invisibilizavam ou  patologizavam a vida de todas as mulheres que não tinham o "privilégio", opção ou desejo de ser mulher no formato "anjo do lar".  Assim, mulheres de classe trabalhadora - como a maior parte das mulheres negras, nos EUA assim como no Brasil- , filhas de classe média com aspirações artísticas, profissionais ou intelectuais, ou qualquer mulher que cultivasse desejos de viver o amplo mundo de forma parecida com a liberdade masculina - parecia nem sequer existir.  Eram submetidas, pois, a uma série de negações:  silenciamento, invisibilização, estigma...

Como eu venho estudando não só as escritoras Beat, senão, no momento contemporâneo, um grupo muito diferente de mulheres - mulheres que em diferentes partes do mundo constroem projetos de vida em práticas equestres de lazer, esporte ou profissão - nada mais relevante do que voltar meu olhar histórico para algumas lendas das suas sociedades:  as Anitas Garibaldis, Belle Starrs e Calamity Janes desta (ou daquela) vida.  Fiquei fascinada ao descobrir, através de leituras que retomei  recentemente, que havia tantas mulheres corajosas que assumiam o trabalho "de vaqueiro"  na época da fronteira do Velho Oeste americano (algumas tendo que se travestir de homem para obter emprego de peão!) e que, então, não pode ser por acaso que as mulheres no estado de fronteira por excelência, Wyoming, ganharam o direito ao voto (assim como a ocupar cargos políticos e ter propiedade) no ano 1867!!

 A autora de um destes livros que chegaram às minhas mãos nos últimos meses, , Candace Savage, me encantou mais ainda com reflexões próprias sobre como, a pesar do conceito de vaqueiro se impor no masculino - um masculino triunfante e glamorizado nos filmes de faroeste - algumas destas  cowgirls - que conseguiram vencer ou sobreviver a invisibilização, inspiraram meninas da sua geração, meninas como ela, e ela mesma, a expandir os horizontes dos discursos, e significar o feminino de outra maneira.



"Quando eu era menina, em meados da década de 1950, o que mais queria era ser vaqueira.  Mas foi apenas muito recentemente que me ocorreu que tal ambição poderia ser estranha. Vaqueira? Não tinha vaca nenhuma nas vizinhanças!  Eu morava na cidade, e o campo ao outro lado da rua não servia como pasto senão como pista do aeroporto. Quanto aos cavalos, as montarias de madeira do carrossel era todo o que se tinha de selvagem.
Ser vaqueira era muito mais divertido do que ser uma pequena dama, esta última o que aparentemente meus pais queriam que eu fosse.  Pequenas damas [senhoritas] usavam luvas brancas para ir à igreja ou tomar o chá da tarde com suas bonequinhas. Eram limpinhas e quietinhas e nunca raspavam a ponta dos pés dos seus sapatos de couro envernizado.  Mas as vaqueiras se vestiam de camisa e calça jeans e corriam com os meninos.  Atiravam pistolas e gritavam e faziam todo tipo de barulheira. “Bangue, bangue, te acertei!  Você tá morta!”  “Não, não tô;  não me acertou!Isso que era vida! As mulheres do meu bairro eram mães e esposas em tempo integral e eu sabia que era para eu algum dia me tornar igual a elas. Mas me virar uma senhora tampouco me parecia muito divertido. Decidi em lugar disso ser vaqueira e brincar igual aos meninos. Foi meu primeiro impulso em direção àquilo que chegaria a ser reconhecido como “liberação de gênero”.

O fato é, se eu pudesse, eu teria gostado de ser vaqueiro.  Não que eu achasse uma pena ser mulher. Mas eu percebia que ser homem trazia certas vantagens. Por exemplo, tinha a questão dos coldres e das pistolas. Todos os meninos do bairro tinham os seus, mas meus pais não me os permitiam; diziam que arma não era brinquedo.  Teriam eles imposto esta regra se tivessem um filho?  Era claro para mim que eu não tinha revólver porque era menina.  Assim como não era justo que Roy Rogers monopolizasse a ação na t.v. e que Dale Evans rara vez conseguia fazer algo. Nunca ninguém mandava Roy Rogers ao café buscar sanduiches.

Brincar de vaqueira:  era brincadeira de criança mas distava muito de ser trivial. Me apresentou tanto à parte atrativa quando à dificuldade de ser mulher num mundo que era dos homens.  Foi a vaqueira que me pôs no caminho do feminismo, e talvez tenha conduzido muitas outras meninas por essa trilha promissora.  Porque eu não estava sozinha nas minhas fantasias do Velho Oeste. Havia milhares de jovens vaqueiras, todas faceiras nos seus chapéus e coletes, galopando a todo vapor pelos gramados arrumadinhos das casas dos subúrbios dos anos cinquenta.  Vinte anos mais tarde, elas sairiam de casa em massa, colocando sua paixão e energia a serviço da construção de um movimento de mulheres.  Teriam elas brincado de vaqueira , como primeiro passo rumo a esse horizonte?" (Savage, 1996; tradução minha)
                                                                                                   


                             Imagem:  Miriam Adelman

Referências:

Kehl, Maria Rita.  Deslocamentos do feminino:a mulher freudiana na passagem para a modernidade. Rio de Janeiro:  Imago, 1998.

Savage, Candace. Cowgirls . Berkeley: Ten Speed Press, 1996

Miriam Adelman é socióloga, tradutora e poeta.  Nascida nos EUA, morou dos 19 aos 29 anos no México. É radicada em Curitiba desde 1991.  Professora da UFPR desde 1992, atualmente actúa nos Programas de Pós-graduação de Estudos Literários (PGLETRAS) e Sociologia (PGSOCIO) dessa instituição.  Mantém também o blog pessoal, Juntando Palavras (www.conviteapalavra.blogspot.com) 

Imagem:  Janaina Ina.

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