Estradas da vida: Muitas maneiras de ser mulher
Estradas da Vida: Muitas maneiras de ser mulher.
Nos últimos tempos, voltei a refletir sobre um velho problema para nós, estudiosas e pesquisadoras da área de gênero e cultura, e que vinha também à tona nas discussões que trouxe aqui em semanas anteriores: se de fato os códigos normativos que se impunham sobre as mulheres, digamos, no século XIX - e até pelo menos a época de emergência do Círculo Beat lá pelos anos 50 do século passado - eram fortes e aprisionadores, devemos realmente pensar que a maior parte das mulheres se aderiam a eles? Ao reforçar o Mito da Mulher que a sociedade oitecentista europeu tanto se empenhou em hegemonizar ( Kehl, 1998), se afirmavam regimes discursivos que invisibilizavam ou patologizavam a vida de todas as mulheres que não tinham o "privilégio", opção ou desejo de ser mulher no formato "anjo do lar". Assim, mulheres de classe trabalhadora - como a maior parte das mulheres negras, nos EUA assim como no Brasil- , filhas de classe média com aspirações artísticas, profissionais ou intelectuais, ou qualquer mulher que cultivasse desejos de viver o amplo mundo de forma parecida com a liberdade masculina - parecia nem sequer existir. Eram submetidas, pois, a uma série de negações: silenciamento, invisibilização, estigma...
Como eu venho estudando não só as escritoras Beat, senão, no momento contemporâneo, um grupo muito diferente de mulheres - mulheres que em diferentes partes do mundo constroem projetos de vida em práticas equestres de lazer, esporte ou profissão - nada mais relevante do que voltar meu olhar histórico para algumas lendas das suas sociedades: as Anitas Garibaldis, Belle Starrs e Calamity Janes desta (ou daquela) vida. Fiquei fascinada ao descobrir, através de leituras que retomei recentemente, que havia tantas mulheres corajosas que assumiam o trabalho "de vaqueiro" na época da fronteira do Velho Oeste americano (algumas tendo que se travestir de homem para obter emprego de peão!) e que, então, não pode ser por acaso que as mulheres no estado de fronteira por excelência, Wyoming, ganharam o direito ao voto (assim como a ocupar cargos políticos e ter propiedade) no ano 1867!!
A autora de um destes livros que chegaram às minhas mãos nos últimos meses, , Candace Savage, me encantou mais ainda com reflexões próprias sobre como, a pesar do conceito de vaqueiro se impor no masculino - um masculino triunfante e glamorizado nos filmes de faroeste - algumas destas cowgirls - que conseguiram vencer ou sobreviver a invisibilização, inspiraram meninas da sua geração, meninas como ela, e ela mesma, a expandir os horizontes dos discursos, e significar o feminino de outra maneira.
"Quando eu era menina, em meados da década de 1950, o que
mais queria era ser vaqueira. Mas foi
apenas muito recentemente que me ocorreu que tal ambição poderia ser estranha.
Vaqueira? Não tinha vaca nenhuma nas vizinhanças! Eu morava na cidade, e o campo ao outro lado
da rua não servia como pasto senão como pista do aeroporto. Quanto aos cavalos,
as montarias de madeira do carrossel era todo o que se tinha de selvagem.
Ser vaqueira era muito mais divertido do que ser uma pequena
dama, esta última o que aparentemente meus pais queriam que eu fosse. Pequenas damas [senhoritas] usavam luvas
brancas para ir à igreja ou tomar o chá da tarde com suas bonequinhas. Eram
limpinhas e quietinhas e nunca raspavam a ponta dos pés dos seus sapatos de
couro envernizado. Mas as vaqueiras se
vestiam de camisa e calça jeans e corriam com os meninos. Atiravam pistolas e gritavam e faziam todo
tipo de barulheira. “Bangue, bangue, te acertei! Você tá morta!” “Não, não tô;
não me acertou!" Isso que era
vida! As mulheres do meu bairro eram mães e esposas em tempo
integral e eu sabia que era para eu algum dia me tornar igual a elas. Mas me
virar uma senhora tampouco me parecia muito divertido. Decidi em lugar disso
ser vaqueira e brincar igual aos meninos. Foi meu primeiro impulso em direção àquilo
que chegaria a ser reconhecido como “liberação de gênero”.
Brincar de vaqueira:
era brincadeira de criança mas distava muito de ser trivial. Me
apresentou tanto à parte atrativa quando à dificuldade de ser mulher num mundo
que era dos homens. Foi a vaqueira que
me pôs no caminho do feminismo, e talvez tenha conduzido muitas outras meninas
por essa trilha promissora. Porque eu
não estava sozinha nas minhas fantasias do Velho Oeste. Havia milhares de
jovens vaqueiras, todas faceiras nos seus chapéus e coletes, galopando a todo
vapor pelos gramados arrumadinhos das casas dos subúrbios dos anos
cinquenta. Vinte anos mais tarde, elas
sairiam de casa em massa, colocando sua paixão e energia a serviço da
construção de um movimento de mulheres.
Teriam elas brincado de vaqueira , como primeiro passo rumo a esse horizonte?" (Savage, 1996; tradução minha)
Referências:
Kehl, Maria Rita. Deslocamentos do feminino:a mulher freudiana na passagem para a modernidade. Rio de Janeiro: Imago, 1998.
Savage, Candace. Cowgirls . Berkeley: Ten Speed Press, 1996
Miriam Adelman é socióloga, tradutora e poeta. Nascida nos EUA, morou
dos 19 aos 29 anos no México. É radicada em Curitiba desde 1991.
Professora da UFPR desde 1992, atualmente actúa nos Programas de
Pós-graduação de Estudos Literários (PGLETRAS) e Sociologia (PGSOCIO) dessa instituição. Mantém também o blog pessoal, Juntando Palavras (www.conviteapalavra.blogspot.com)
Imagem: Janaina Ina.
Imagem: Janaina Ina.
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