A América de Sylvia Plath e Diane Arbus
“What is it about these pictures? Like Plath’s Ariel poems, they are decidedly not nice. We do not enjoy being made to contend with them... Her photos... revel in ugliness. We are made to see, as if for the first time, all those things we sensed were there but could not locate on our own. Our terror is a little bit domesticated (if we’re lucky). Then it’s a matter of deciding what to do with these people – cross-dressers, midgets, albinos, giants. Do we condemn or assimilate them? Are they us or not us? Probably both. That is the realization to come to terms with. It is not easy. Arbus is not easy.”
William Todd Schultz.
Como tão emblemáticamente expresso no poema “Um supermercado
na California” de Allen Ginsberg, a América dos anos cinquenta foi retratada por
escritores e escritoras do círculo Beat como
banal, estéril e repressora e, ao
mesmo tempo, herdeira de grandes
personagens sonhadores, iconoclastas e
aventureiros. Embora menos (re)conhecidas
– e nadando contra a corrente não só da cultura norte-americana da época de
Guerra Fria senão contra toda uma
herança ocidental masculinista, que inferiorizava as mulheres e impunha
obstáculos de caráter objetivo e subjetivo no caminho da sua realização
artística - algumas mulheres conseguiram
fazer avançar seu trabalho iconoclasta ou transgressor, na literatura, na
fotografia, nas artes visuais e cênicas. Fizeram emergir uma visão crítica
desde um olhar um tanto diferente.
Dentre o contingente dessas mulheres, hoje destaco duas de gerações próximas, vivendo problemáticas parecidas,
que criaram linguagens estéticas com alguns elementos muito significativos em
comum. Diane Arbus e Sylvia Plath,
nascidas ainda na primeira parte do século XX,
viveram um mundo dominado por roteiros estreitos da feminilidade, pela
hipocrisia da sociedade dos anos 50, pela
alienação ou vazio que emanava da vida
da classe média/ alta e seus valores. Suas vidas foram profundamente atingidas pelo destino ambíguo que marcava a vida das mulheres geniais.
Ambas vieram a juntar-se à triste
e trágica fileira de “escritoras (artistas) suicidas”; ambas também foram
esposas e mães, papéis que, na época, não se encaixavam facilmente na vida de
uma mulher que optasse ou desejasse ter, também, uma ambição pública . E na fama póstuma delas, em ambos casos, o fato do suicídio paira sobre sua arte,
deslocando por vezes o foco da atenção,
da sua arte para suas vidas conturbadas.
A fotografia de Diane Arbus, e sua fascinação com os Freaks,
deve ser compreendida no seu contexto histórico e pode ser vista em relação a
uma estética Beat, creio eu: os
bizarros, marginalizados e abjetificados são socialmente excluídos de uma
cultura que tem medo da imperfeição e da “feiura” que está em todo, e aparecem
na literatura Beat – nos escritos de Kerouac e Ginsberg, por exemplo – como
tendo uma maior autenticidade, e por vezes um poder de visão dos que pouco têm a
perder. Arbus, por seu lado, fala sobre
os Freaks que ela procura conhecer e fotografar, “Many people go through life dreading they’ll have a traumatic
experience. Freaks were born with their trauma.
They’ve already passed their test in life.” Não exatamente da mesma forma do que
Ginsberg, que viu “as melhores mentes de sua geração” engolidas por um sistema
opressor e a quem não lhe resta outra possibilidade a não ser o desafio aberto aos seus
códigos morais “(“putting my queer
shoulder to the wheel”), Arbus
percebe aquilo que a sociologia interacionista de Erving Goffmann vai sistematizar no
final dos anos 50, no livro Estigma: é na dinâmica social de construção de “normais”
e “anormais” (sendo, estes últimos, os estigmatizados ou estigmatizáveis) que residem os processos
básicos que regem a vida e a interação social cotidiana das nossas “modernidades”.
Da obra poética de Plath, emerge uma interessante estética de confronto,
expressa em dois dos seus mais famosos
poemas, Papai e Lady Lazarus. No
primeiro, a raiva “contra o pai” pode
ser lida menos como alusão ao pai de carne e osso que a Sylvia teve ( a não ser a raiva da “traição” daquele, por ter morrido cedo e dessa forma, abandonando a
menina que ainda precisava dele) senão como alusão a um pai patriarca onipresente na cultura e na vida , como líder
totalitário, colega ou amante (marido) manipulador (Every woman adores a fascista/The boot in the face/ the brute/Brute
heart of a brute like you ) que ao final, ela supera (Daddy, daddy, you bastard/I’m through). No segundo,
cria-se uma performance dramática sobre a (auto) destruição de uma
mulher, no qual o público que assiste – “the
peanut munching crowd” – é colocado em condição de cúmplice, aludindo
talvez à vulgaridade de uma sociedade de massas, a mesma que hoje em dia
assiste de maneira faminta aos espetáculos de terror e sofrimento alheio
promovidos em diferentes formatos midiáticos. Noutro poema, The Applicant, Plath ironiza
as normas e expectativas sociais do
conformismo, alvos privilegiados da escrita Beat também*. "O" ou "a" “candidata ”, personagem desse poema,
pode ser homem ou mulher, candidat@ a um emprego de escritório, ou a um casamento, sendo que o texto brinca
exatamente com essa ambiguidade. O que
salta à vista é que ambos papéis são igualmente ridicularizados, ambas
instituições igualmente trituradoras das diferenças.
Imagem: Miriam Adelman.
William T. Schultz, autor
do livro “An emergency in slow motion”, é psicólogo e seus objetivos
em discutir a vida de Arbus fluem do seu olhar psicologizante. Isto que não é necessariamente improdutivo, sendo que fornece
material desde uma outra perspectiva, para pessoas como eu que trabalhamos desde um marco interpretativo mais sociológico. Infelizmente, o autor falha na sua interpretação da "alienação" de Arbus, ao não localizar a relação dela com sua família (judia, de classe média alta) e seus pais (a
mãe depressiva dona de casa, o pai um tipo de American businessman que fica
fora o tempo todo, bem no padrão de quem segue regras sobre a vida social e
cotidiana por convenção e imposição social) no contexto mais amplo dos artistas e espiritos irriquietos que começavam, entre o final dos anos 40 e até a irrupção da contracultura nos anos 60, a desenvolver novos olhares - e novas linguagens estéticas - como distanciamento, crítica e denúncia. Arbus persegue o “segredo” atrás da fachada da normalidade e radicado para ela no
bizarro (os freaks, os outsiders); nisto seu projeto artístico compartilha
fortemente com a crítica beat e depois a da contracultura, assim como com a perspectiva sociológica de Goffmann que mencionei acima.
Segundo Schultz, outras pessoas -incluindo por vezes os sujeitos que Arbus fotografava - reclamaram da Diane impor “agenda
própria” sobre seus retratados, questão que exige consideração à luz da teoria da produção fotográfica e o papel d@ artista (em que medida tod@ fotógraf@ não faria isto? ). Desde a perspectiva da crítica cultural, em todo caso, esse tentar desvendar a angústia e solidão que se escondiam atrás da fachada da normalidade não era apenas uma tarefa solitária de uma artista "mal ajustada" que uma vez abandonou a fotografia de moda - “Beauty itself is an aberration”, ela percebe- para trilhar outro caminho, senão tarefa assumida por uma, ou várias gerações de artistas norte-american@s, que não se contentavam com os imperantes rumos da cultura e da nação.
Imagem: Diane Arbus.
* Plath
pertencia a um círculo literário muito diferente dos Beats, mais vinculado às
instituições acadêmicas. Neste sentido,
sua luta como escritora também conteve elementos diferentes, batendo de frente
com um tipo de sexismo institucionalizado que mantinha as mulheres do lado de
fora do cânone, bem como Virgínia Woolf tinha ironizado décadas antes, no
famoso ensaio Um Teto Todo Seu.
Referências
Adelman, M. "Modernidade e pós-modernidade em vozes femininas". Em: Codato, A., org. Para pensar o século XXI. Curitiba: SESC. 2011.
Arbus, D. Diane Arbus: An Aperture Monograph New York: Aperture, 1972.
Goffmann, E. Estigma: Notas Sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada. RJ: Editora Guanabara.
Plath, Sylvia. Ariel. New York: Harper Perennial. 1961
Schultz, W.T. An emergency in slow motion: the inner life of Diane Arbus. New York: Bloomsbury. 2011.
Miriam Adelman é socióloga, tradutora e poeta. Nascida nos EUA, morou dos 19 aos 29 anos no México. É radicada em Curitiba desde 1991. Professora da UFPR desde 1992, atualmente actúa nos Programas de Pós-graduação de Estudos Literários (PGLETRAS) e Sociologia (PGSOCIO) dessa instituição. Mantém também o blog pessoal,
Juntando Palavras (www.conviteapalavra.blogspot.com)
Imagem: Janaina Ina
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