sexta-feira, 25 de julho de 2014

A América de Sylvia Plath e Diane Arbus


“What is it about these pictures? Like Plath’s Ariel poems, they are decidedly not nice. We do not enjoy being made to contend with them... Her photos... revel in ugliness. We are made to see, as if for the first time, all those things we sensed were there but could not locate on our own. Our terror is a little bit domesticated (if we’re lucky). Then it’s a matter of deciding what to do with these people – cross-dressers, midgets, albinos, giants.  Do we condemn or assimilate them?  Are they us or not us?  Probably both. That is the realization to come to terms with. It is not easy. Arbus is not easy.”  

William Todd Schultz.

Como tão emblemáticamente expresso no poema “Um supermercado na California” de Allen Ginsberg, a  América dos anos cinquenta foi retratada por escritores e escritoras do círculo Beat como  banal, estéril e repressora  e, ao mesmo tempo,  herdeira de grandes personagens sonhadores,  iconoclastas e aventureiros.  Embora menos (re)conhecidas – e nadando contra a corrente não só da cultura norte-americana da época de Guerra Fria senão  contra toda uma herança ocidental masculinista, que inferiorizava as mulheres e impunha obstáculos de caráter objetivo e subjetivo no caminho da sua realização artística  - algumas mulheres conseguiram fazer avançar seu trabalho iconoclasta ou transgressor, na literatura, na fotografia, nas artes visuais e cênicas.  Fizeram emergir uma visão crítica desde um olhar um tanto diferente.

Dentre o contingente dessas mulheres, hoje destaco duas  de gerações próximas, vivendo problemáticas parecidas, que criaram linguagens estéticas com alguns elementos muito significativos em comum.  Diane Arbus e Sylvia Plath, nascidas ainda na primeira parte do século XX,   viveram um mundo dominado por roteiros estreitos da feminilidade,   pela hipocrisia da sociedade dos anos 50,  pela alienação ou vazio que emanava  da vida da classe média/ alta e seus valores. Suas vidas foram profundamente atingidas pelo destino ambíguo que marcava a vida das mulheres geniais. Ambas vieram a juntar-se à triste e trágica fileira de “escritoras (artistas) suicidas”; ambas também foram esposas e mães, papéis que, na época, não se encaixavam facilmente na vida de uma mulher que optasse ou desejasse ter, também, uma ambição pública .  E na fama póstuma delas, em ambos casos,  o fato do suicídio paira sobre sua arte, deslocando por vezes  o foco da atenção, da sua arte para suas vidas conturbadas.  

A fotografia de Diane Arbus, e sua fascinação com os Freaks, deve ser compreendida no seu contexto histórico e pode ser vista em relação a uma estética Beat, creio eu:   os bizarros, marginalizados e abjetificados são socialmente excluídos de uma cultura que tem medo da imperfeição e da “feiura” que está em todo, e aparecem na literatura Beat – nos escritos de Kerouac e Ginsberg, por exemplo – como tendo uma maior autenticidade, e por vezes um poder de visão dos que pouco têm a perder.  Arbus, por seu lado, fala sobre os Freaks que ela procura conhecer e fotografar, “Many people go through life dreading they’ll have a traumatic experience. Freaks were born with their trauma.  They’ve already passed their test in life.”    Não exatamente da mesma forma do que Ginsberg, que viu “as melhores mentes de sua geração” engolidas por um sistema opressor e a quem não lhe resta outra  possibilidade a não ser o desafio aberto aos seus códigos morais “(“putting my queer shoulder to the wheel”),  Arbus percebe  aquilo que a sociologia interacionista de Erving Goffmann vai sistematizar no final dos anos 50, no livro Estigma: é na dinâmica social de construção de “normais” e “anormais” (sendo, estes últimos, os estigmatizados ou estigmatizáveis) que residem os processos básicos que regem a vida e a interação social cotidiana das nossas “modernidades”.


Da obra poética de Plath, emerge  uma interessante estética de confronto, expressa  em dois dos seus mais famosos poemas,  Papai e Lady Lazarus.  No primeiro,  a raiva “contra o pai” pode ser lida menos como alusão ao pai de carne e osso que a Sylvia teve ( a não ser a raiva da “traição” daquele,  por ter morrido cedo e dessa forma, abandonando a menina que ainda precisava dele) senão como alusão a um pai patriarca onipresente na cultura e na vida , como líder totalitário, colega ou amante (marido) manipulador (Every woman adores a fascista/The boot in the face/ the brute/Brute heart of a brute like you ) que ao final, ela supera (Daddy, daddy, you bastard/I’m through).   No segundo,  cria-se uma performance dramática sobre a (auto) destruição de uma mulher, no qual o público que assiste – “the peanut munching crowd” – é colocado em condição de cúmplice, aludindo talvez à vulgaridade de uma sociedade de massas, a mesma que hoje em dia assiste de maneira faminta aos espetáculos de terror e sofrimento alheio promovidos em diferentes formatos midiáticos.  Noutro poema, The Applicant,  Plath ironiza as normas e expectativas  sociais do conformismo, alvos privilegiados da escrita Beat também*.  "O" ou "a" “candidata ”, personagem  desse poema, pode ser homem ou mulher, candidat@ a um emprego de escritório, ou a  um casamento, sendo que o texto brinca exatamente com essa ambiguidade.  O que salta à vista é que ambos papéis são igualmente ridicularizados, ambas instituições igualmente trituradoras das diferenças.

                                                                                   Imagem:  Miriam Adelman.


William T. Schultz,  autor do livro “An emergency in slow motion”,  é psicólogo e seus objetivos em discutir a vida de Arbus fluem do seu olhar psicologizante. Isto que não é necessariamente improdutivo, sendo que fornece  material desde uma outra perspectiva, para pessoas como eu que trabalhamos desde um marco interpretativo mais sociológico.  Infelizmente, o autor falha na sua interpretação da "alienação" de Arbus, ao não localizar a relação dela com sua família (judia, de classe média alta) e seus pais (a mãe depressiva dona de casa, o pai um tipo de American businessman que fica fora o tempo todo, bem no padrão de quem segue regras sobre a vida social e cotidiana por convenção e imposição social) no contexto mais amplo dos artistas e espiritos irriquietos que começavam, entre o final dos anos 40 e até a  irrupção da contracultura nos anos 60,  a desenvolver novos olhares - e novas linguagens estéticas - como distanciamento, crítica e denúncia.  Arbus persegue o “segredo” atrás da fachada da normalidade e radicado para ela no bizarro (os freaks, os outsiders); nisto seu projeto artístico compartilha fortemente com a crítica beat e depois a da contracultura,  assim como com a perspectiva sociológica de Goffmann que mencionei acima.  

 Segundo Schultz, outras pessoas -incluindo por vezes os sujeitos que Arbus fotografava -  reclamaram da Diane impor “agenda própria” sobre seus retratados, questão que exige consideração à luz da teoria da produção fotográfica e o papel d@ artista (em que medida tod@ fotógraf@ não faria isto?  ).  Desde a perspectiva da crítica cultural, em todo caso,  esse tentar desvendar a angústia e solidão que se escondiam atrás da fachada da normalidade não era apenas uma tarefa solitária de uma artista "mal ajustada" que uma vez abandonou a fotografia de moda  -  “Beauty itself is an aberration”, ela percebe-  para trilhar outro caminho, senão tarefa assumida por uma, ou várias gerações de artistas norte-american@s, que não se contentavam com os imperantes rumos da cultura e da nação.



                                                                        Imagem:  Diane Arbus.



* Plath pertencia a um círculo literário muito diferente dos Beats, mais vinculado às instituições acadêmicas.  Neste sentido, sua luta como escritora também conteve elementos diferentes, batendo de frente com um tipo de sexismo institucionalizado que mantinha as mulheres do lado de fora do cânone, bem como Virgínia Woolf tinha ironizado décadas antes, no famoso ensaio  Um Teto Todo Seu.

 
Referências

Adelman,  M.  "Modernidade e pós-modernidade em vozes femininas". Em: Codato, A., org. Para pensar o século XXI.  Curitiba: SESC. 2011.

Arbus, D.  Diane Arbus:  An Aperture Monograph  New York:  Aperture, 1972.


Goffmann, E.  Estigma: Notas Sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada.  RJ: Editora Guanabara.

Plath, Sylvia.  Ariel.  New York:  Harper Perennial. 1961

Schultz, W.T.  An emergency in slow motion:  the inner life of Diane Arbus.  New York: Bloomsbury. 2011.


  Miriam Adelman é socióloga, tradutora e poeta.  Nascida nos EUA, morou dos 19 aos 29 anos no México. É radicada em Curitiba desde 1991.  Professora da UFPR desde 1992, atualmente actúa nos Programas de Pós-graduação de Estudos Literários (PGLETRAS) e Sociologia (PGSOCIO) dessa instituição.  Mantém também o blog pessoal,
Juntando Palavras (www.conviteapalavra.blogspot.com) 

Imagem:  Janaina Ina
 

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