Dois papelotes de Clarice
Entreouvido por aí: preso pode ganhar redução de pena se ler um livro por mês. Terá até trinta dias para dar conta da obra – um clássico da literatura, das ciências ou da filosofia – e deverá apresentar uma resenha sobre ela. Uma comissão avaliará a veracidade do texto e fará uma arguição com o detento.
De cara – ainda amarrotada de sono – achei a iniciativa bonitinha. Fofa. Até inteligente. Combina menos ócio e mais educação, menos população carcerária e mais cultura. Sem contar que atualiza a máxima de Monteiro Lobato: a de que um país se faz com homens livres e livros.
Mas bastou uma água no rosto para eu acordar e vislumbrar o óbvio ululante: o surgimento de uma nova modalidade de crime no Brasil, algo tão sórdido, vil e maquiavélico que nem Conan Doyle, Agatha Christie e Allan Poe imaginaram – o tráfico de letras.
Quem acha que isso é delírio deste que vos cronica se trumbicou: há coisa de dois meses um sujeito foi flagrado negociando um resumo de Dom Casmurro com seus companheiros de cela. Em plena luz do dia. O camarada tentou disfarçar, veio com um papo oblíquo e dissimulado de que só estava promovendo um simpósio sobre a traição (ou não) de Capitu, mas não colou.
Uma semana atrás foram desenterrados do pátio de uma penitenciária em Cordisburgo (MG) quase dez quilos de apontamentos sobre Guimarães Rosa. A maior parte do carregamento tratava de Grande sertão, mas havia ainda trouxinhas de Sagarana, Primeiras estórias e até Tutameia. Há indícios de que os policiais da própria unidade facilitaram a entrada do material no presídio.
E, ontem, a gota d’água. Deu em tudo que é canal. Não se falava de outra coisa na Globo News: o pastor e deputado J. Pinto Fernandes – guia espiritual de onze entre dez meliantes – foi preso em Brasília tentando entrar numa cadeia com dezenas de poemas comentados do Drummond na cueca. E ele não estava sozinho; contava com o apoio de cinco obreiros de sua igreja. Vão todos responder por formação de quadrilha.
Resultado: já há um clamor popular pela abertura de uma CPI que investigue o comércio ilegal de sinopses, súmulas e afins nos xilindrós brasileiros. Tem até juiz do STF defendendo o aumento da pena de quem for surpreendido plagiando o texto alheio, além da prisão sumária, sem direito a fiança, dos cúmplices.
Em que mundo nós estamos. Quem diria que um dia a cola – ela mesma, a velha esticadinha de olho, o papelzinho com todas as respostas da prova, a pesquisa removida sem aspas da enciclopédia ou da internet – viraria coisa de máfia, caso de polícia e estaria prestes a se tornar crime hediondo previsto em lei.
Para alívio de muitos, não retroativa.
Fábio Flora é autor de Segundas estórias: uma leitura sobre Joãozito Guimarães Rosa (Quartet, 2008), escreve no Pasmatório, tem perfil no Twitter e no Facebook.
Fábio Flora é autor de Segundas estórias: uma leitura sobre Joãozito Guimarães Rosa (Quartet, 2008), escreve no Pasmatório, tem perfil no Twitter e no Facebook.
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