Os japoneses e o サッカー
A questão que aqui proponho se torna mais pertinente
em época de Copa do Mundo: até que ponto uma seleção nacional de futebol
representa, efetivamente, um país e sua gente, em seus aspectos culturais e
identitários? Uma representação que vá além das quatro linhas do campo. Digo: é
possível assistir a um jogo do Brasil e, observando a maneira como os jogadores
se comportam (por exemplo, cantando o hino nacional), antes do jogo e durante ele,
percebermos elementos que representem a
nação brasileira? Desde os estereótipos (“Brasil, país do futebol”) até os detalhes
- cor dos uniformes, superstições antes da bola rolar, etc. -, essas atitudes
nos dão mesmo pistas para compreender um pouquinho do “ser brasileiro”? Isso
não só nos serviria, a nós próprios, para identificarmos traços peculiares de
nossas facetas brasílicas, mas também como um instrumento auxiliar para os
outros compreenderem o modus operandi
tupiniquim? Para ser mais direto, a figura de Neymar em quatro tempos -
“correndo, driblando” e, possibilidade um, “caindo”, ou possibilidade dois, “marcando”
- seriam metáforas do espírito brasileiro?
Desde 2010, quando aqui cheguei, faço essa pergunta
aos meus alunos japoneses, apenas mudando o sujeito da questão - ao invés do
Brasil, coloco o Japão na jogada. De primeira, eles não compreendem as
indagações, pois o futebol, por aqui, ainda é uma grande referência em gestação;
já se eu usasse o yakiu (baisebol) ou kendô (esgrima japonesa), aí a associação seria imediata. Mas após
explicar a grande representatividade do esporte bretão para a maioria dos
brasileiros (não para todos os
brasileiros, como os japoneses imaginam...), ou seja, como um “fenômeno
social totalizante” - para alguns críticos, “alienante” - a questão se torna
mais clara para os meus jovens alunos, mas não menos complexa.
Lá se vão mais de vinte anos, quando, no início dos
anos 90, o futebol efetivamente se profissionalizou e se difundiu no Japão. Uma
grande parcela desse sucesso se deveu à vinda de ex-jogadores brasileiros,
pioneiros como Alcindo, Dunga, Toninho Cerezo, Pita, entre outros e,
principalmente, Ramos e Zico, que se tornaram verdadeiros ícones na terra do
sol nascente. O carioca Ruy Ramos chegou a se naturalizar japonês, jogou trinta
e duas partidas pela seleção nipônica, protagonizou vários comerciais de TV e é
figurinha carimbada quando o assunto é futebol aqui no Japão. Assim, uma das
maiores referências para os japoneses, quando falamos em サッカー (“sakká” do inglês soccer) são os jogadores brasileiros já veteranos, que vieram para
o Japão ajudar na transição do futebol amador para o profissional e, é claro,
ganhar uma graninha...
O futebol é o esporte que mais cresce em número de
adeptos no Japão. A geração nascida nos anos 90, desde cedo acompanha a liga
japonesa e as ligas internacionais, além de torcer nas sucessivas participações
do Japão em Copas desde 1998. Em geral, os jovens fãs japoneses do サッカー praticam futebol, torcem pelos times e
assistem aos jogos frequentemente. Um
reflexo disso pode ser visto na opção de alguns dos meus alunos por estudar
língua portuguesa na universidade por causa da admiração pelo futebol
brasileiro.
Sabendo disso, há quatro anos orientei meus estudantes
do terceiro e quarto anos a trabalharem em duplas, um rapaz e uma garota, em um
projeto de dois meses, cujo título era “como o futebol define uma nação?”. Eles
deveriam assistir aos jogos da Copa do Mundo de 2010, escolher um time, além do
Japão, e buscar aspectos singulares de cada equipe escolhida, como por exemplo:
biotipo dos jogadores, cortes de cabelo, cores das camisas, movimentação em
campo, comemoração de um gol ou da
vitória, decepção pela derrota, relação entre o jogo individual e o coletivo, enfim
uma série de detalhes que, em conjunto, poderiam auxiliar na compreensão do
futebol como o espelho da sociocultura de um país.
O produto final foi um ensaio de duas páginas, em que
as duplas deveriam apresentar oralmente, para os colegas, suas observações e
reflexões acerca da questão proposta. As duas seleções escolhidas na época,
além do Japão, foram a da Espanha e a do Brasil, três times com formas diferentes
de jogar. A partir dessa constatação, os alunos apresentaram seus pontos de
vista quanto a essas “diferenças” serem também um reflexo do modo de vida nos
três países. No caso específico japonês, a maioria das respostas/reflexões foi
afirmativa: “Sim, nós japoneses jogamos futebol como vivemos. Ou seja, entre
nós o coletivo é mais importante do que os interesses individuais, a disciplina
tática e, além disso, o respeito pelo treinador e a confiança nas suas
orientações (o valor da hierarquia) são referências importantes”.
Perguntei, então, qual seria a diferença entre o time
do Japão e os outros dois, no campo e na vida fora dele... Após quase um minuto
de silêncio, alguns alunos se entreolharam, e um rapaz que havia feito
intercâmbio no Brasil (Unicamp) por quase um ano, respondeu com um sorriso: “A
malandragem”... Ao que repliquei, malandramente: ”Você quer dizer criatividade?”. E ele: “Talvez...mas
meus amigos brasileiros diziam que eu teria de ser um japonês malandro para conseguir jogar bem
futebol...”. “Ok...Ok...”, respondi e emendei “E você está praticando esse
conselho dos seus amigos brasileiros?”. Ele riu e, de maneira bem japonesa
(i.e. com uma sinceridade que às vezes beira a ingenuidade), respondeu: “Eu
tento, no treino, no jogo, mas meus colegas não entendem... Eu peço pra eles
serem mais felizes (sic) jogando, um pouco mais relaxados e confiantes em si
próprios, mas é difícil...”. E assim essa aula acabou.
Na outra semana, antes de uma nova aula, fui dar uma
espiada no treino de futebol dos rapazes. Era a primeira vez que via os alunos
do time da universidade treinando desde o início – já os vira, só de passagem, praticando,
mas nunca lhes dera muita atenção. Dessa vez, porém, assisti a uns bons cinquenta
minutos da prática. Um detalhe: o Japão havia acabado de ser eliminado da copa de
2010 pelo Paraguai, na disputa de pênaltis. Naquela manhã, os alunos pareciam meio
cabisbaixos, mas mantinham a mesma rotina de sempre, silenciosa no início. Cada
um sabia exatamente o que deveria fazer, e o grupo estava completo: vinte e
dois jogadores, mais três garotas de “suporte” (i.e. encarregadas desde
carregar água e isotônicos até fazer o papel de gandula...). Não havia
treinador, mas um líder – geralmente o próprio capitão do time –, que, após o
aquecimento, deu orientações ao grupo, minutos antes da prática com bola. Tudo muito organizado, embora
um pouco monótono, mecânico, repetitivo. Sem gritos, risadas, broncas, treino
puro e simples na sua mais objetiva concepção: praticar para aperfeiçoar as
habilidades futebolísticas em grupo, ou seja, jogadas individuais, pouquíssimas...
Ah! O meu aluno da “malandragem” mencionada dois
parágrafos atrás estava lá, com sua camisa azul-marinho da marca brasileira
Athleta, estampada com “Café do Brasil”. Ele jogava de meia-direita, ou seja, como
um dos homens de criação, posição na qual a condição de “malandro”
futebolístico é essencial. Vi-o correr, fazer bons passes, gritar uma ou duas
vezes com os colegas de time, mas, aos meus olhos brasileiros, a “ginga
malandra” não deu as caras no treino, que se limitou a exibir um futebol
correto, dinâmico, mas repetitivo, pouco criativo e silencioso. Dois golzinhos
para o time titular.
No outro dia, perguntei ao meu aluno como havia sido,
para ele, aquele treino, e ele respondeu que tinha sido
ótimo, que o escrete se esforçara muito, e ele pudera usar “um pouco da
malandragem em campo”. Pensei comigo, mas sem proferir palavra: “Será que
assisti ao treino errado?”. Talvez naquele dia não tivesse havido espaço para a
malandragem, ou será que meu olhar de brasileiro era incapaz de enxergar a “malandragem”
nipônica? Enigmas do futebol...
Todas imagens publicadas na coluna possuem direitos autorais Copyright ©2014AkitiDezem
Links interessantes:
http://www.youtube.com/watch?v=li5UFwkt6d0
Rogerio Akiti Dezem é professor visitante de língua portuguesa e cultura brasileira da Universidade de Osaka, no Japão. Mestre em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), é autor de Matizes do Amarelo - A gênese dos discursos sobre os orientais no Brasil (Humanitas, 2005) entre outros livros. Além da História sua grande paixão é a Fotografia (http://akitidezemphotowalker.zenfolio.com/).
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