quinta-feira, 3 de julho de 2014

VERMELHO, de Carlos Alberto Lara





MOTE

"— Se eu quisesse, enlouquecia. Sei uma quantidade de histórias terríveis. Vi muita coisa, contaram-me casos extraordinários, eu próprio... Enfim, às vezes já não consigo arrumar tudo isso. Porque, sabe?, acorda-se às quatro da manhã num quarto vazio, acende-se um cigarro... Está a ver? A pequena luz do fósforo levanta de repente a massa das sombras, a camisa caída sobre a cadeira ganha um volume impossível, a nossa vida... compreende?...  a nossa vida, a vida inteira, está ali como... como um acontecimento excessivo... Tem de se arrumar muito depressa."

Estilo / in Os passos em volta, de Herberto Helder




Os poemas a seguir fazem parte do projeto 
Traduções: sete autores ficcionais
são assinados por Carlos Alberto Lara.





ANTEMANHA

Eu não posso fazer isso. Você não pode. Nós não podemos fazer. Nunca podemos. E seria bom que não fizéssemos. Seria bom não sonhar com isso. “Seria mesmo ótimo”. E eu me levanto e lavo os olhos. Lavo os dentes e o cabelo. Visto uma roupa suja e saiu antes do arrependimento. Saiu correndo. As mãos trêmulas. Diverto-me com as chaves. E da rua escorre gente. E não espero o bastante delas.


MANHÃ

Eu trabalho e fico feliz com a possibilidade da volta e com os anos que me restam. Serão sempre poucos anos. Até o fim. Se eu conseguir dobrar a esquina vou dobrar a esquina. E a vida não poderia ser melhor do que um pão seco e um bocado de café. 


MEIO-DIA


Quem dirá da memória. Haverá. As casas | verdade | eram a fronteira do que se podia ver. Uma Infância, o cheiro de café e a falta de imagem. O lençol macio e o lábio doce. Bom dia, dormiu bem? Os cabelos | teclas de piano. E a Manchete. O corpo crescia como planta nova e bem cuidada. Entre o dia e a noite havia o sol e a escola e os amigos e os brinquedos. Acordei com o som do meu sossego e dormi sorrindo. Eu era uma pessoa de verdade.


de sorver batalhas onde havia um campo 
e quatro flores lindas,
saio hoje ao centro
                                     de olhos vagos e brotando vela
pesado e seco e ansioso e rude
tamborilando à beira dum pinico
- eminência constante do sufoco.

Caminhei sobre a Terra e dela provei e neguei a prova senil
e nasceram as górgonas

e os montes nasceram. 



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