terça-feira, 2 de setembro de 2014

Everest


E pensar que os Beatles cogitaram ir até o Himalaia tirar fotos para um disco que levaria o nome da mais alta montanha da Terra. Mas os prazos – sempre eles – estavam tão apertados, que os rapazes resolveram simplesmente atravessar a rua em frente ao estúdio que os abrigou por quase dez anos e batizar o álbum de Abbey Road.

Resultado: o que tem de turista engarrafando a capital inglesa para registrar seus pezinhos na mais famosa faixa de pedestres do mundo... É só dar um google para saber por que Paul, John, George e Ringo se tornaram os quatro cavaleiros do Apocalipse de onze entre dez guardas de trânsito londrinos.

Long and winding roads à parte, o caso me fez acender o sinal amarelo. Quantas vezes não provocamos congestionamentos quilométricos em nossas vidas apenas porque encasquetamos que a tal da Dona Felicidade mora numa cobertura de seiscentos metros quadrados na esquina da Quinta Avenida com a Champs-Élysées.

Pode morar. Acho até que mora. Mas esse não é seu único endereço. Senhora de posses, abastada de todos os nossos sonhos mais megassênicos, ela tem casa de campo, de praia, chalé na montanha, apê na Vieira Souto, mansão nos Jardins (da Babilônia), palacete em Marte, castelo nos anéis de Saturno, ilha particular em Alfa Centauro.

Mas tem também conjugado na Tijuca, quarto e sala no Catete, quitinete em Copa. Tem até sobradinho na subida do Vidigal.

Dona Felicidade não guarda cadeira; é nômade por natureza. E, de repente, não está tão longe quanto imaginamos. Quem sabe ela não acorda do nosso lado todos os dias, nas bochechas ainda sonolentas de quem divide (disputa?) o lençol conosco; de quem pincela a Becel no pão de forma enquanto boceja as primeiras notícias da manhã; lê a crônica da Martha como se o domingo não escondesse uma segunda; lava a louça do almoço lembrando a última viagem (e a enxuga planejando a próxima); vai ao cinema ver aquele adorável filme de robôs gigantes por pura solidariedade; faz cafuné e segura nossa mão sempre que o time perde; encerra as discussões com uma trufa no lugar do ponto.

Zapeia o Discovery a semana inteira em busca de (mais) um episódio perdido do Vestido ideal – mesmo jurando já ter encontrado o marido ideal.

Fê – para os íntimos – é a prova final, sem direito a segunda época, de que não precisamos atingir o pico de um monte distante, aparentemente coberto de algodão, para alcançar sua doce companhia. A escalada aqui é outra. Dispensa tantos apetrechos e cilindros de oxigênio. Exige apenas que deixemos a rua livre, o sinal verde e o coração permanentemente aberto ao trânsito de coisas boas.

De preferência, sem aqueles pardais urubuzentos do dia a dia – que insistem em querer nos multar por excesso de alegria.








Fábio Flora é autor de Segundas estórias: uma leitura sobre Joãozito Guimarães Rosa (Quartet, 2008), escreve no Pasmatório, tem perfil no Twitter e no Facebook.

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