Maternidade, liberdade e conexão: quando as mulheres escrevem Beat.
Outras
histórias, porém, podem ser encontradas em textos literários de autoria
feminina, pois na arte, -onde a experiência e a subjetividade tomam precedência
sobre os discursos racionalizantes e sistematizadores de viés científico- teve -se uma liberdade maior de explorar a
complexidade das emoções, laços e cuidados materiais surgidos em torno da
maternidade. Mas não esqueçamos que foram mulheres
escritoras e artistas que fizeram isto, e também muitas vezes na contramão dos
seus pares de sexo masculino, que sucumbiam ali também ao padrão canônico da
trivialização das experiências femininas.
Neste
sentido, os homens Beat não eram exceção. Um dos seus grandes temas era o do “companheiro
de estrada”, tratando-se de uma camaradagem que se dava dentro dos padrões da
homossociabilidade (cf Sedgwick, 1985). Segundo Ehrenreich (1985),
idealizaram a liberdade em padrões masculinistas, assim privilegiando as relações
de amizade “entre iguais” - homens independentes, autônomos, amantes da
estrada, livres de compromissos com os
outros, receosos do tipo de laço que pudesse comprometer seu livre ir e vir
pelos espaços abertos do país e da vida. Embora esta busca da liberdade seja um
ponto –talvez o ponto – central da
sua crítica da sociedade "burguesa" ainda bastante repressora desse tempo
histórico (a sociedade da guerra fria, de normas comportamentais rígidos, do organization man, etc.), seu viés repercutia
direta e visivelmente nas suas relações com as mulheres e com os filhos que
chegassem a gerar junto com elas (já nesta coluna falei, e voltarei a falar, sobre as
re-significações da estrada, da liberdade e da aventura, quando pensadas também
no feminino).
Mais tarde, a teoria feminista da “segunda onda” – as pioneiras da revolução
feminista na academia – se esforçará para pensar a questão da
maternidade de forma mais complexa e na sua relação com o conjunto de possíveis
experiências e expectativas da modernidade. Enquanto discurso histórico sobre a "missão" exclusiva das mulheres ou como normas sociais concretas e a imposição de um formato de família
nuclear que isolava as mulheres dentro do lar privatizado, a maternidade
poderia significar a escravidão, ou exigir abrir mão de possibilidade de ser
escritora, pensadora, cientista, ativista. Mas muitas mulheres a viviam todos
os dias, de outra maneira, e várias sociólogas, antropólogas e escritoras atentavam
para isto, mostrando não só que poderia associar a maternidade à criatividade
senão que, como metáfora, poderia também ousar a pensá-la como forma de relação
de cuidado (nurturing, caring). As
teóricas norte-americanas Carol Gilligan e Nancy Chodorow escreveram livros pioneiros nos anos 70 nos quais examinaram as formas culturais generificadas de constituição dos sujeitos
modernos, focando as formas em que homens
e mulheres viviam a relação com o eu e com o outro de acordo a padrões social e culturalmente
estruturados de maneira divergente. Influenciando
o sujeito tanto em quanto a formas de cognição quanto no emocional, elas
argumentavam, os homens desde meninos eram encaminhados para a construção de um
eu autônomo, que se contrapunha, de forma relativa, à construção do eu
relacional (relational self) das mulheres, pautado este último para
a criação e sustento da conexão interpessoal e intersubjetiva. A partir desta bifurcação, se sugeria, haveria muito
campo para desentendimento, conflito e frustração, para tod@s.
Penso que um
elemento central que diferencia os e as escritoras Beat é de fato, a forma mais
forte em que aparece, nas escritoras, a necessidade urgente de combinar liberdade
e conexão. É também
neste sentido que, na obra de escritoras como Hettie Jones, Diane diPrima,
Joyce Johnson, Brenda Frazer , a conexão
(âncora existencial, peso, peso para os outros, elemento que desmente o mito do
Individuo livre cujo eu precisa ser preservado, para que algo de valor se diga
sobre o mundo), a temática e a experiência da maternidade adquirem força
singular. Cada uma a exprime e a vive a partir de posições e realidades
particulares.
Por exemplo,
Diane di Prima, desde jovem extremamente
ousada na forma em que confrontava expectativas convencionais, zombava
abertamente da noção que não se podia ser mãe e mulher Beat rebelde ao mesmo
tempo. Se teve alguém que quis mostrar e conseguiu
provar que se podia ter filhos fora dos padrões da família nuclear de classe
média, sem condições de estabilidade econômica, sem por isso abrir mão dos seus projetos criativos, certamente foi ela. É realmente
estonteante a forma em que ela assumiu os desafios de viver um estilo de vida
Beat, e depois “hippie” –inclusive a vida em comunidade onde ela por vezes era
a única pessoa com condições de pagar contas e trazer o pão – sendo também mãe
de 5 crianças; crianças, alias, de pais
diferentes, numa época em que ter um filho fora do casamento –out of wedlock, como se dizia – era altamente estigmatizante.
De acordo à minha leitura de sua autobiografia, How I Became Hettie Jones, a escritora
Jones (que casou com o único poeta negro do círculo Beat, Leroi Jones –
posteriormente conhecido como Amiri Baraka)
encarnou, inicialmente, o tipo da mãe que “dá tudo” para os filhos e
prioriza a luta para manter a família. Contudo, nunca abriu mão da luta pelo "seu” a nível existencial, mesmo cuidando dos
projetos coletivos de um grupo de escritores Beat e se mantendo nos bastidores. É verdade que ela publicou muito pouco nesta fase da vida, devido também à insegurança que ela
sentia como escritora e artista, ao lado de “grandes homens”. Mas era criativa, inteligente, e vivia
intensa e reflexivamente um momento histórico singular; pode ser que ela tenha adiado mas não abandonado a
noção de um caminho próprio, que demorou mas desembocou em uma produção literária
com fortes marcas próprias (na qual ela persiste na atualidade). Criou também suas duas
talentosas filhas, em e para
o mundo.
A experiência de Brenda Frazer (AKA Bonnie Bremser), sobre
quem também falei nesta coluna, foi inicialmente outra. Muito jovem foi casada com o poeta Ray Bremser –
mais velho do que ela e carregando uma história de problemas com a lei. Quando os dois fogem para
o México, começa uma saga de vida marginal que ela narra, em verdadeiro estilo Beat, no seu livro Troia. Brenda se prostitui para
manter a pequena família, que inclui a pequena Rachel, criada por ela com sentimentos de amor e culpa até finalmente doá-la, deixando a filha “do outro lado da fronteira” quando ela e o marido
se veem numa situação que os obriga a voltar aos EUA. As angústias, ambivalência e finalmente arrependimento que ela sente em relação ao desdobramento da sua história ajudam a ilustrar como os contextos moldam as experiências maternas, que sempre podem ser mais ou menos felizes, mais ou menos sombrias ou frustrantes.
Através da sua protagonista Joana, no seu romance, In the Night Café (de certo teor autobiográfico, eu suponho) e sua relação com o filho, vislumbro em Joyce Johnson outro tema que parece ser recorrente nas experiências e narrativas sobre a maternidade. Trata-se de um relato que evoca a relação com o filho como a relação que persiste - a mais duradoura, e talvez a mais verdadeira – enquanto os homens (amantes, companheiros por uns tempos, talvez pais dos seus filhos) chegam e vão embora, priorizando suas próprias urgências, a força magnética dos riscos, da estrada.
Há com certeza na obra de cada uma destas autoras, assim como
na obra de outras do seu círculo e geração (como a Diane Wakoski, de quem já
falei por aqui, e muitas outras que nem pude contemplar ainda) muito a explorar
sobre como elas trabalham a maternidade, como experiência e como metáfora. Para finalizar hoje, incluo um fragmento literário, fragmento que ilustra como a experiência da maternidade é sentida e
transformada, como uma das grandes e recorrentes metáforas da Diane di Prima. O poema forma parte do livro Loba, que pode ser lido na sua totalidade
como um poema épico, dividido em textos fragmentos menores, e que nos aproxima a uma subjetividade calcada nas possibilidades de um ser que é, entre outras coisas, um ser materno.
O poeta quer encontrá-la. (No original: “The poet, seeking her”)
Diane di Prima
Será que ela
passou o dia todo sentada nesse jumento
ou perto da porta
de alguma
casinha humilde em algum lugar
Será que ela
usava aquele manto
que leva
posto & será que estava
pontilhado de
flores?
Será que ela
sorria calmamente, ou será
que de fato sorria, será que levantou
os olhos, os
dedos firmes, as mãos trabalhando
com firmeza, será que ela
costurava,
assava o pão
ou sonhava,
livro aberto no seu colo, será que era
no Egito ou na
Galileia, será que o som
de muitas
crianças flutuava ao redor dela
ou era só uma
Será que ela
sozinha era “duas mães
& sete filhos”
e eles as
Plêiades, será que ela
foi sempre lua
Tradução: Miriam Adelman
Imagens: Reproduções de desenhos da artista alemã Kathe Kollwitz (1867-1945).
Referencias.
Adelman, Miriam (2004) . Para além dos discursos: o poder da afetividade Cadernos Pagu no.23 Campinas July/Dec. 2004 Disponível no:
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-83332004000200013&script=sci_arttext
Bremser, Bonnie. (2007/1969) Troia: Mexican Memoirs. Champaign/London: Dalkey Archives Press.
Chodorow, Nancy. (1978/1999) The Reproduction of Mothering: Feminism and Psychoanalytic Theory. New Haven: Yale University Press.
Di Prima, Diane.(1998/1973) Loba. New York: Penguin.
Ehrenreich, Barbara. (1983) The Hearts of Men: American Dreams and the Flight from Commitment. New York: Anchor Books.
Gilligan, Carol.(1982) In a Different Voice: Psychological Theory and Women's Development. New Haven: Harvard University Press.
Johnson, Joyce. (1989) In the Night Café New York: E.Dutton
Jones, Hettie. (1990) How I Became Hettie Jones. New York: Grove Press.
Rich, Adrienne. (1976) Of Woman Born: Motherhood as Experience and Institution. New York: W.W.Norton & Co.
Sedgwick, Eve K. (1985) Between Men: English Literature and Male Homosocial Desire. New York:Columbia University Press.
Miriam Adelman é socióloga, tradutora e poeta. Nascida nos EUA, morou dos 19 aos 29 anos no México. É radicada em Curitiba desde 1991. Professora da UFPR desde 1992, atualmente actúa nos Programas de Pós-graduação de Estudos Literários (PGLETRAS) e Sociologia (PGSOCIO) dessa instituição. Mantém também o blog pessoal, Juntando Palavras (www.conviteapalavra.blogspot.com)
[i] As teóricas feministas
norte-americanos Gilligan e Chodorow foram
duramente criticadas, principalmente por “universalizar” ou “essencializar”
experiências de maternidade que correspondem mais à realidade de mulheres
brancas, de classe média, heterossexuais etc.
Mas com certeza elas contribuíram para suscitar debate e estimular toda
uma produção feminista sobre maternidade como “experiência, ideologia e
instituição”, além de ter contribuído insights sociológicos e crítica cultural
válidos. Vale lembrar que a própria
Chodorow superou-se com um belo livro, The
Power of Feelings, resenhado por mim na revista Cadernos Pagu.
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