sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Maternidade, liberdade e conexão: quando as mulheres escrevem Beat.


A  maternidade, na cultura ocidental canônica – da filosofia à sociologia - , era em grande parte ignorada, ou menosprezada, tratada de forma reducionista como mera questão de “instinto materno”.  - em lugar de se fazer um esforço de captar suas múltiplas dimensões sociais e culturais. De fato, nem a sociologia, nem a psicanálise ( e muito menos, a filosofia, a ciência econômica e a ciência política e  os discursos religiosos) faziam jus à necessidade de compreender a  maternidade “como experiência e instituição” (Rich, 1976), atitude que não mudaria no mundo acadêmico até  a chegada a revolução propiciada pela Segunda Onda feminista, que desenrolou-se tanto  dentro da academia quanto fora dela[i].  

Outras histórias, porém, podem ser encontradas em textos literários de autoria feminina, pois na arte, -onde a experiência e a subjetividade tomam precedência sobre os discursos racionalizantes e sistematizadores de viés científico-  teve -se uma liberdade maior de explorar a complexidade das emoções, laços e cuidados materiais surgidos em torno da maternidade.  Mas não esqueçamos  que  foram  mulheres escritoras e artistas que fizeram isto, e também muitas vezes na contramão dos seus pares de sexo masculino, que sucumbiam ali também ao padrão canônico da trivialização das experiências femininas.

Neste sentido, os homens Beat não eram exceção.  Um dos seus grandes temas era o do “companheiro de estrada”, tratando-se de uma camaradagem que se dava dentro dos padrões da homossociabilidade (cf Sedgwick, 1985).  Segundo Ehrenreich (1985), idealizaram a liberdade em padrões masculinistas, assim privilegiando as relações de amizade “entre iguais” - homens independentes, autônomos, amantes da estrada,  livres de compromissos com os outros, receosos do tipo de laço que pudesse comprometer seu livre ir e vir pelos espaços abertos do país e da vida. Embora esta busca da liberdade seja um ponto –talvez o ponto – central da sua crítica da sociedade "burguesa" ainda bastante repressora desse tempo histórico (a sociedade da guerra fria, de normas comportamentais rígidos, do organization man, etc.), seu viés repercutia direta e visivelmente nas suas relações com as mulheres e com os filhos que chegassem a gerar junto com elas (já nesta coluna falei, e voltarei  a falar, sobre as re-significações da estrada, da liberdade e da aventura, quando pensadas também no feminino).

Mais tarde, a teoria feminista da “segunda onda” – as pioneiras da revolução feminista na academia – se esforçará  para pensar a questão da maternidade de forma mais complexa e na sua relação com o conjunto de possíveis experiências e expectativas da modernidade. Enquanto discurso histórico sobre  a "missão" exclusiva das mulheres ou como normas sociais concretas e a  imposição de um formato de família nuclear que isolava as mulheres dentro do lar privatizado, a maternidade poderia significar a escravidão, ou exigir abrir mão de possibilidade de ser escritora, pensadora, cientista, ativista. Mas muitas mulheres a viviam todos os dias, de outra maneira, e várias sociólogas, antropólogas e escritoras atentavam para isto, mostrando não só que poderia associar a maternidade à criatividade senão que, como metáfora, poderia também ousar a pensá-la como forma de relação de cuidado (nurturing, caring). As teóricas norte-americanas Carol Gilligan e Nancy Chodorow escreveram livros pioneiros nos anos 70 nos quais examinaram as formas culturais generificadas de constituição dos sujeitos modernos,  focando as formas em que homens e mulheres viviam a relação com o eu e  com o outro de acordo a padrões social e culturalmente estruturados de maneira divergente.  Influenciando o sujeito tanto em quanto a formas de cognição quanto no emocional, elas argumentavam, os homens desde meninos eram encaminhados para a construção de um eu autônomo, que se contrapunha, de forma relativa, à construção do eu relacional  (relational self)  das mulheres, pautado este último para a criação e sustento da conexão interpessoal e intersubjetiva.    A partir desta bifurcação, se sugeria, haveria muito campo para desentendimento, conflito e frustração, para tod@s.

Penso que um elemento central que diferencia os e as escritoras Beat é de fato, a forma mais forte em que aparece, nas escritoras, a necessidade urgente de  combinar liberdade e conexão.   É também neste sentido que, na obra de escritoras como Hettie Jones, Diane diPrima, Joyce Johnson,  Brenda Frazer , a conexão (âncora existencial, peso, peso para os outros, elemento que desmente o mito do Individuo livre cujo eu precisa ser preservado, para que algo de valor se diga sobre o mundo), a temática e a experiência da maternidade adquirem força singular.  Cada uma a exprime  e a vive a partir de posições e realidades particulares.

Por exemplo, Diane di Prima,  desde jovem extremamente ousada na forma em que confrontava expectativas convencionais, zombava abertamente da noção que não se podia ser mãe e mulher Beat rebelde ao mesmo tempo.  Se teve alguém que quis mostrar e conseguiu provar que se podia ter filhos fora dos padrões da família nuclear de classe média, sem condições de estabilidade econômica, sem  por isso abrir mão dos seus projetos criativos, certamente foi ela. É realmente estonteante a forma em que ela assumiu os desafios de viver um estilo de vida Beat, e depois “hippie” –inclusive a vida em comunidade onde ela por vezes era a única pessoa com condições de pagar contas e trazer o pão – sendo também mãe de 5 crianças; crianças, alias,  de pais diferentes, numa época em que ter um filho fora do casamento –out of wedlock, como se dizia – era altamente estigmatizante.

De acordo à minha leitura de sua autobiografia, How I Became Hettie Jones, a escritora Jones (que casou com o único poeta negro do círculo Beat, Leroi Jones – posteriormente conhecido como Amiri Baraka)  encarnou, inicialmente, o tipo da mãe que “dá tudo” para os filhos e prioriza a luta para manter a família. Contudo,  nunca abriu mão da luta pelo "seu” a nível existencial, mesmo cuidando dos projetos coletivos de um grupo de escritores Beat e se mantendo nos bastidores. É verdade que ela  publicou muito pouco nesta fase da vida, devido também à insegurança que ela sentia como escritora e artista, ao lado de “grandes homens”.   Mas era criativa, inteligente, e vivia intensa e reflexivamente um momento histórico singular;  pode ser que ela tenha adiado mas não abandonado a noção de um caminho próprio, que demorou mas desembocou em uma produção literária com fortes marcas próprias (na qual ela persiste na atualidade). Criou também suas duas talentosas filhas, em e para o mundo.

A experiência de Brenda Frazer (AKA Bonnie Bremser), sobre quem também falei nesta coluna, foi inicialmente outra.  Muito jovem foi casada com o poeta Ray Bremser – mais velho do que ela e carregando uma história de problemas com a lei. Quando os dois fogem para o México, começa uma saga de vida marginal que ela narra, em verdadeiro estilo Beat, no seu livro Troia. Brenda se prostitui  para manter a pequena família, que inclui  a  pequena Rachel, criada por ela com sentimentos de amor e culpa até finalmente doá-la, deixando a filha “do outro lado da fronteira” quando ela e o marido se veem numa situação que os obriga a voltar aos EUA.  As angústias, ambivalência e finalmente arrependimento que ela sente em relação ao desdobramento da sua história ajudam a ilustrar como os contextos moldam as experiências maternas, que sempre podem  ser mais ou menos felizes, mais ou menos sombrias ou frustrantes.


Através da sua protagonista Joana, no seu romance, In the Night Café  (de certo teor autobiográfico, eu suponho) e sua relação com o filho, vislumbro em Joyce Johnson outro tema que parece ser recorrente nas experiências e narrativas sobre a maternidade. Trata-se de um relato que evoca a relação com o filho como a relação que persiste - a mais duradoura, e talvez a mais verdadeira – enquanto os homens (amantes, companheiros por uns tempos, talvez pais dos seus filhos) chegam e vão embora, priorizando suas próprias urgências, a força magnética dos riscos, da estrada.

Há com certeza na obra de cada uma destas autoras, assim como na obra de outras do seu círculo e geração (como a Diane Wakoski, de quem já falei por aqui, e muitas outras que nem pude contemplar ainda) muito a explorar sobre como elas trabalham a maternidade, como experiência e como metáfora.  Para finalizar hoje, incluo um fragmento literário, fragmento que ilustra  como a experiência da maternidade é sentida e transformada, como uma das grandes e recorrentes metáforas da Diane di Prima. O poema  forma parte do livro Loba, que pode ser lido na sua totalidade como um poema épico, dividido em textos fragmentos menores, e que nos aproxima a uma subjetividade calcada nas possibilidades de um ser que é, entre outras coisas, um ser materno.


O poeta quer encontrá-la.  (No original: “The poet, seeking her”)
      
             Diane di Prima
      
Será que ela passou o dia todo sentada nesse jumento
    ou perto da porta
de alguma casinha humilde em algum lugar
Será que ela usava aquele manto
que leva posto & será que estava
pontilhado de flores?
Será que ela sorria calmamente, ou será
    que de fato sorria, será que levantou
os olhos, os dedos firmes, as mãos trabalhando
   com firmeza, será que ela
costurava, assava o pão
ou sonhava, livro aberto no seu colo, será que era
no Egito ou na Galileia, será que o som
de muitas crianças flutuava ao redor dela
ou era só uma
Será que ela sozinha era “duas mães
                      & sete filhos”
e eles as Plêiades, será que ela
    foi sempre  lua

Tradução:  Miriam Adelman

Imagens:  Reproduções de desenhos da artista alemã Kathe Kollwitz (1867-1945).

Referencias.

Adelman, Miriam (2004) . Para além dos discursos: o poder da afetividade  Cadernos  Pagu  no.23 Campinas July/Dec. 2004    Disponível no:
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-83332004000200013&script=sci_arttext

Bremser, Bonnie.  (2007/1969) Troia:  Mexican Memoirs. Champaign/London: Dalkey Archives Press.
 
Chodorow, Nancy. (1978/1999)   The Reproduction of Mothering: Feminism and Psychoanalytic Theory.  New Haven: Yale University  Press.

Di Prima, Diane.(1998/1973) Loba. New York:  Penguin.

Ehrenreich, Barbara. (1983) The Hearts of Men: American Dreams and the Flight from Commitment. New York:  Anchor Books.
 
Gilligan, Carol.(1982)  In a Different Voice:  Psychological Theory and Women's Development. New Haven:  Harvard University Press.

Johnson, Joyce. (1989) In the Night Café   New York: E.Dutton

 Jones, Hettie.  (1990)  How I Became Hettie Jones. New York:  Grove Press.

 Rich, Adrienne.  (1976)  Of Woman Born:  Motherhood as Experience and Institution.  New York: W.W.Norton & Co.

Sedgwick, Eve K. (1985)  Between Men:  English Literature and Male Homosocial Desire. New York:Columbia University Press.


Miriam Adelman é socióloga, tradutora e poeta.  Nascida nos EUA, morou dos 19 aos 29 anos no México. É radicada em Curitiba desde 1991.  Professora da UFPR desde 1992, atualmente actúa nos Programas de Pós-graduação de Estudos Literários (PGLETRAS) e Sociologia (PGSOCIO) dessa instituição.  Mantém também o blog pessoal, Juntando Palavras (www.conviteapalavra.blogspot.com)
       


                                                     

[i] As teóricas feministas norte-americanos Gilligan e Chodorow  foram duramente criticadas, principalmente por “universalizar” ou “essencializar” experiências de maternidade que correspondem mais à realidade de mulheres brancas, de classe média, heterossexuais etc.   Mas com certeza elas contribuíram para suscitar debate e estimular toda uma produção feminista sobre maternidade como “experiência, ideologia e instituição”, além de ter contribuído insights sociológicos e crítica cultural válidos.  Vale lembrar que a própria Chodorow superou-se com um belo livro, The Power of Feelings, resenhado por mim na revista Cadernos Pagu.

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