METÁFORAS DE AUTORIA FEMININA.
No livro Literature After Feminism, Rita Felski, crítica
literária que admiro muito e que venho citando por aqui, aborda o teimoso debate com críticos literários de
tendências variadas que defendem ou reproduzem a convicção de haver uma
oposição entre preocupações estéticas e políticas na análise e avaliação de
obras literárias. Este tipo de argumento, ela assinala, tem sido
muito sintomaticamente mobilizado em disputas sobre o cânone, utilizado muitas vezes por críticos conservadores que promovem noções estáticas sobre o que torna uma
obra “um clássico” e que defendem critérios estéticos universais e pouco
historicizados. Muito pacientemente, ela
volta a estas disputas, afirmando que há sempre em toda produção literária
conteúdo político; critérios estéticos, por outro lado, não são a antítese de suas características mais "ideológicas", senão que nos obrigam a pensar de formas
complexas, não reducionistas (e.g. o
conteúdo “feminista” de uma obra nem legitima nem desqualifica o valor de um poema, um conto ou um romance,
seria apenas uma de suas facetas).
Quanto a dúvidas relativas à escrita e autoria femininas,
Felski também oferece estratégias que conduzem à complexificação do trabalho crítico. Da sua própria leitura de contribuições críticas, identifica
três metáforas ou alegorias que condensam abordagens utilizadas pela crítica feminista contemporânea, que mais do
que se referir a descrições empíricas de autoras e suas obras, refletem modos de interpretar o ser e fazer das mulheres dentre as complexas teias-tramas de relações sociais e históricas, Assim, a primeira
metáfora, ou alegoria de autoria feminina que ela denomina de the madwoman in the attic (“a louca no
sótão), é tomada do livro homônimo
das autoras Sandra Gilbert and Susan Gubar (apud Felski), que no final dos anos 70 lançam
este clássico da crítica
feminista. Produto de um momento pioneiro na crítica feminista, trabalhos como estes eram muito
influenciados pela Virginia Woolf, por sua noção de feminine sentences e seu justificável lamento da “ausência de uma tradição” de escrita
feminina dentro do cânone literário. Metáfora- denúncia da exclusão das mulheres das
instituições de produção cultural, ainda peca por basear-se numa certa universalização do papel da senhora burguesa, cujos privilégios de classe paradoxalmente a dilaceravam, ao confiná-la dentre os “roteiros estreitos” do seu gênero ( cf. Kehl). Nesse contexto,
surge a noção da loucura ou histeria como resposta (inteligível) à negação de voz, imputando à mesma uma certa qualidade de agência. Por outro lado, como parte dos esforços de visibilizar e valorizar a escrita feminina, algumas críticas da época também defendiam a ideia
de existirem diferenças formais entre a escrita de mulheres e homens, reforçando
desta maneira o discurso binário que hoje em dia em amplamente reconhecido como paradoxalmente
mantenedor de fronteiras e barreiras .
Contudo, há outras vertentes interpretativas que fazem parte desta história. Masquerading women, por exemplo, que coloca o gênero no terreno do performativo - contingente e fluído, por definição . Embora esta forma interpretativa das críticas não a situa exclusivamente em obras mais recentes (muito pelo contrário!), é fato que hoje em dia qualquer generalização sobre como “homens” e “mulheres” são, ou como se manifestem literariamente, vira suspeita, ou pelo menos muito pouco convincente, em plenos tempos de desconstrução destas mesmas categorias. De fato, a metáfora de gênero como baile de máscaras (como carnaval, como performance) ressoa na literatura pelo menos desde a mesma Virgínia Woolf escreveu Orlando, e outras autoras da mesma época - e muitas mais, posteriormente- produziram textos que subvertem o gênero, bem como na perspectiva que hoje encontra-se sintetizado no brilhante trabalho teórico da filósofa Judith Butler.
Felski promove ainda mais a des-universalização da categoria de escritora ao chamar nossa atenção para outra alegoria ou metáfora, a de Home girls. Vejam bem: se a primeira metáfora discutida por Felski
surge de um contexto de circunscrição de mulheres de camadas sociais privilegiados
a um papel doméstico que produz o lar como prisão, para outras - as que
pertenciam a comunidades raciais e étnicas marginalizadas ou hostilizadas,
discriminadas, o lar poderia significar conforto, consolo ou refúgio. Pelo menos parcialmente, ou por vezes. Isto parece ser o caso para mulheres latinas e negras no caso dos EUA, como vem sendo apontado também na sociologia e na história (Cf. Jones; Cole; Davis; Smith; apud Adelman), desde várias décadas, por estudiosas que nos lembram que nos tempos da escravidão, ter um lar era um "privilégio" negado às mulheres negras escravizadas. Ou, como acontece hoje em dia nos países que mantêm cidades divididas entre
enclaves étnico-raciais (como pode ser também na França ou na Espanha atualmente, ou em relação a comunidades indígenas no Brasil ou no México...), tanto o lar (principalmente, da família extensa) quanto o bairro ou outra estrutura comunitária pode se levantar como aconchego e proteção perante um mundo público que submete mulheres e homens de etnicidades discriminadas à hostilidade e agressão (física, simbólica).
Diante da diversidade da produção textual e das possibilidades interpretativas da atualidade, uma estratégia indutiva útil pode ser partir de obras singulares de autoria feminina para tentar descobrir como elas definem “ser mulher que escreve". Por exemplo, em leitura recente do primeiro
livro da poeta Beat Hettie Jones, Drive, percebi como o livro foi construído em torno da metáfora central “mulher ao volante”. Os poemas evocam
constantemente a capacidade das mulheres
de pegar a estrada, ou de fazer a
estrada. Tematizam, nesse empreendimento, tanto a
relação com o eu quanto com o outro, fato que acredito ser de grande significância, pois no
trabalho dela, como no de outras mulheres Beats, este elemento emerge e se
impõe de maneira muito diferente do que no trabalho dos homens (como tão claro
em Kerouac, por exemplo) – grande
ambivalência quanto às relações que permanecem ou que exigem compromisso! Vejamos aqui apenas o primeiro poema, de
abertura do livro, que acabei de traduzir:
Direção (Hard Drive)
No
sábado os ursos de pelúcia flutuavam de novo
sobre
o Major Deegan
dançando
no plástico ao longo do corrimão da ponte
sob
um céu meio nublado, meio azul
e
havia nuvens brancas
chegando
do oeste
o
que talvez fosse suficiente
para
alguém acostumado ao prazer
em
pequenas dosagens
Porém
mais tarde ao pôr do sol
dirigindo
rumo ao norte pelo Saw Mill
no
vento forte, com as nuvens grandes que flutuavam
por
sobre a estrada como animais
mostrando
orgulhosomente suas rosadas barrigas
num
momento de luz intensa
vi
uma casa tipo Edward Hopper
tão
simultânea e extraordinariamente clara e escura
que
eu chorei todo o caminho da Rota 22
aquelas
lágrimas incontroláveis
“como se o corpo chorasse”
e
portanto, mulheres jovens
eis
aqui o dilema
em
si a solução:
sempre
fui ao mesmo tempo
mulher
o suficiente para me comover até o pranto
e
homem o suficiente
para
pegar o carro e me mandar
em qualquer
direção
Concluindo, apenas por hoje, gostaria de sugerir - mais um vez, estimulada pelo texto da Felski - que já passamos da noção da "morte do autor" para um interesse no lugar da fala d@s enunciantes , que pode ser mais ou menos enraizado, mais ou menos móvel e instável – se produz na junção de relacões sócio-históricas como gênero, classe, raça/etnicidade, sexualidade, posição numa geopolítica global, inserção numa geração, etc. Isto fica claro na posição de Rita Felski e outros estudiosos e estudiosas da questão. Por isto mesmo, Felski enfatiza que as metáforas que ela utiliza para pensar sobre autoria feminina e crítica feminista representam apenas algumas das vastas possibilidades de representação de sujeitos-autoras. As metáforas ou alegorias podem se tornar um problema, também, se entendidas como prescrições fechadas sobre a questão da "autoria feminina". Podemos pensar, junto com ela, quais outras metáforas seriam expressivas a partir das obras que lemos, estudamos e escrevemos. Talvez algumas metáforas que emerjam de contextos “do sul”? A pergunta fica aguardando a reflexão e a criatividade d@s que lêem esta minha pequena contribuição...
Imagens: Miriam Adelman
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Referências.
Adelman, M. (1997) Common Bonds? On the Intersection of Class, Race and Gender in the Lives of U.S. Women. Curitiba: Revista de Sociologia e Política #8. (pp 145-156)Felski, R. (2003) Literature after feminism. Chicago/London: University of Chicago PressJones, H (1998) Drive. New York: Hanging Loose Press.Kehl, M.R. (1998) Deslocamentos do feminino: a mulher freudiana na passagem para a modernidade. Rio de Janeiro: Imago.
Imagem: Janaína Ina.
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