quinta-feira, 18 de setembro de 2014

O engenho obscuro de Luís de Camões



O problema que gostaria de levantar, no modesto âmbito desta matéria, é muito simples: trata-se de perscrutar a questão da liberdade enquanto problema ético na poesia de Luís de Camões. Parto da suspeita da existência de um paradoxo fundamental a conjugar livre arbítrio e destinação nos muitos registros da experiência amorosa presente neste universo poético. 
Porventura a minha inquirição surgiu em meio às muitas leituras já realizadas da obra crítica de Helder Macedo, Camões e a viagem iniciática. No princípio de seu incontornável trabalho, o ensaísta nos diz imperativamente: “A melhor poesia é sempre uma pesquisa, uma tentativa de dar forma inteligível ao desconhecido.” (MACEDO, 2013, p. 13, grifo nosso). Estamos, desde já, frente ao impasse primeiro desta poesia, a qual se comporta, segundo o ensaísta irá desenvolver pormenorizadamente, como um problema de conhecimento. Ou se preferirmos, de desconhecimento. Proponho, a partir da investida gnosiológica formulada por Helder Macedo, trabalhar a dupla face inerente às questões do saber e não-saber. 
Um pequeno salto na história: Gilles Deleuze, em seu famoso ensaio “Literatura e vida”, tece uma poderosa reflexão acerca da ideia do informe. Reconhecendo o fazer literário como modo de desestabilização da linguagem, o ensaísta francês arrisca as seguintes palavras: “Escrever não é certamente impor uma forma (de expressão) a uma matéria vivida. A literatura está antes do lado do informe, ou do inacabamento (...).” (DELEUZE, 2000, p. 11). Chama-me a atenção a recusa de Deleuze de reconhecer a escrita enquanto forma de expressão de modo que, se compararmos a sua afirmação com o dito por Helder Macedo, teríamos de enfrentar, inelutavelmente, uma zona de tensão. Portanto, vamos a ela. 
Ao dizer que a melhor poesia é uma “tentativa de dar forma inteligível ao desconhecido”, Helder Macedo nos propõe um entendimento sistemático da poesia camoniana, de maneira a estabelecer, como intrínseco ao seu funcionamento, a articulação de elementos em um conjunto organizado. Como já sabemos, o ensaísta nos dá parte do desejo de transformação do apetite em razão por meio da experiência amorosa na lírica de Camões. E de fato nos demonstra com perícia o movimento que desencadeia o anseio por conferir uma organização formal ao desconhecido. “Porém a mais me atrevo”, usando palavras camonianas, e aceno para a possibilidade de se reconhecer outros modos de entendimento acerca desta poesia. Pois se partirmos da ideia de Deleuze de que a escrita se encontra do lado do informe, do inacabamento, havemos de problematizar a asserção de Helder Macedo, a qual encerra a obra camoniana em um universo muito bem definido. Arrisco, portanto, outras veredas e busco encontrar os versos do poeta quinhentista em um plano em expansão. 
A mudança operada por esta leitura seria sensível no que diz respeito ao entendimento da questão ética a que pretendo discutir. Por quê? Ora, o paradoxo que reputo como fundamental para a compreensão desta poesia é aquele mesmo que está resumido emblematicamente nos versos do conhecido soneto “Amor é um fogo que arde sem ver”, o qual afirma ser Amor um “querer estar preso por vontade”. Prisão e vontade são polos opostos, na medida em que o “querer” é o que determina a ação deliberada – o movimento de escolha em um momento de decisão. E não há possibilidade de decisão para o aprisionado, pois as regras do jogo já foram previamente estabelecidas e está ele sujeito a um ordenamento exterior ao qual deve obedecer. É o caso do herói trágico, por exemplo. Na tragédia clássica, a imposição ao jugo das Moiras é o que leva o herói, inevitavelmente, ao cumprimento de seu destino – nada impedirá Édipo de assassinar seu pai e cometer o incesto com sua mãe, nem mesmo o aviso acerca de tais fatos por vir. 
Mas o que ocorre exatamente na poesia de Camões? De fato, o poeta lírico não é um autor de tragédias, mas o intercâmbio conceitual da experiência do trágico é notavelmente transferível para o plano de sua lírica. Quem há de negar a dimensão de angústia e desespero frente ao desencadeamento trágico dos fatos presente nos versos de “Erros meus, má fortuna, amor ardente”? Está lá a má fortuna! Todavia, tal procedimento deve ser concebido em deslocamento. 
Sabemos, desde os estudos de Jorge de Sena, da importância do desejo como elemento inerente à experiência amorosa na poesia de Camões. E desejo, o sabemos também, tem sua raiz latina na expressão desiderium, a qual significa “parar de olhar os astros, deixar de por eles se guiar”. Em outras palavras, romper com a lógica do destino e afirmar-se como sujeito detentor de uma vontade deliberada. Aliás, é aqui mesmo que nasce uma atitude ética, já que somente o homem livre é capaz de tomar decisões. Observemos que o gesto ético é indiscernível, neste plano, de uma atitude transgressora e que a presença do estereotipo de personagens insubordinados na história da cultura ocidental é assimilada correntemente com a figuração do Mal (para citar apenas dois nomes, lembro Prometeu e Lúcifer). Aqui, o erro é inerente à busca pelo conhecimento e à conquista da liberdade, a qual, todavia, se baseia em um hermético paradoxo. Voltemos a ele. 
Se o desejo é o que determina a condição de liberdade do sujeito, o que lhe possibilita tomar decisões, lhe dá poder de escolha, é nele e por meio dele (o desejo) que se constrói a ética da poesia de Camões. Por outro lado, é o mesmo desejo que lança o sujeito para fora de si e que o faz aproximar-se da loucura. Mais que isso: o faz sentir-se sujeito a diversas vontades que fogem ao seu domínio. Em resumo: o desejo, assim como é propulsor da liberdade, cerceia o sujeito em sua vontade. Mas como enfrentar esta perturbadora contradição? 
Partindo destas reflexões, e para que não caiamos na mais profunda inércia do pensamento dialético que anseia por sínteses redutoras, seria o caso de concebermos, em Camões, a consciência de uma nova humanidade. Ou melhor, de um novo modo de conceber a sua humanidade, a qual desestabilizava, já no Portugal do século XVI, uma frágil lógica antropocêntrica, que séculos depois culminaria nos excessos do Iluminismo e da razão cientificista, já posta em suspeita há muito tempo. Ao situar-se em um espaço de dúvida e hesitação, a poesia de Camões dá-nos testemunho de um radical exercício de devir o qual não é passível de se estabilizar na busca por uma forma, mas apenas tangível sob a noção do informe. É neste plano de massas confusas e indiferenciáveis que podemos reconhecer os procedimentos da escrita camoniana, a qual nos oferece a Figura, ainda que em traços erráticos, desta desejada humanidade. 
Tal Figura se constitui por meio de uma linguagem fundada na dinâmica dos afetos. Sob uma perspectiva spinoziana, compreendemos a noção de sujeito não em vista de seu autocentrado caráter racional, mas em consonância com sua potência afetiva. O sujeito camoniano é aquele ferido por forças exteriores e sujeito a acidentes os quais lhe concedem, em um plano de forças em tensão, os meios possíveis de ação no mundo; portanto, é a partir de um gesto de reponsabilidade à medida da desestabilização provocada pelo encontro que Camões forja a sua ética. Veja-se bem: não há aqui uma falta de propósito a qual suspenderia o pensamento camoniano sobre os abismos do niilismo; pelo contrário, é por buscar se instituir por meio das relações intersubjetivas que esta poesia se sustenta, embora menos em vias de estruturação de um construto formal, que no sentido de afirmação de um cruzamento entre intensidades. A questão pode ser formulada sob os seguintes termos: e se pensarmos o amor como campos de força que se chocam, não para suprir qualquer carência, mas para afirmar esta falta fundamental que enfim nos move ao encontro dos corpos?  
Ainda no plano da escrita em devir, podemos nos situar, quanto ao problema do paradoxo liberdade/destino, tendo em vista a afirmação de Octavio Paz, em seu A dupla chama, acerca dos movimentos operados por este duo na relação amorosa. Leiamos o que ele diz: 
O amor é um laço mágico que literalmente cativa a vontade e o livre arbítrio dos apaixonados. [...] A fatalidade se manifesta só com e por meio da cumplicidade de nossa liberdade. O elo entre liberdade e destino [...] é o eixo em torno do qual giram todos os apaixonados da história. [...] o amor é um mistério no qual liberdade e predestinação se enlaçam. (PAZ, 1994, p. 114). 

Poderíamos, aqui, modalizar a concepção de destino e percebê-la como construto do imaginário laborado no sentido de dar contorno ao desconhecido. À medida que eu não sou capaz de dar forma aos efeitos da experiência amorosa em meu corpo e espírito, chamo-lhe mistério, e as veredas que percorri até o encontro de minha amada são resultado de uma ação fatal. Nada mais humano. Camões, entretanto, talvez por um sentido de justiça, ou medida – se não estou a falar da mesma coisa –, contraditoriamente lança-nos em um espaço absolutamente desamparado de qualquer ordenamento. Nada mais humano. Pois é justamente neste campo em expansão que pode articular, ainda que parcamente, a experiência do desejo a qual projeta a sua humanidade afirmando-a na não-coincidência consigo mesma. 
O soneto que gostaria de destacar mais detalhadamente acerca deste processo descreve aquilo que reconheço como a manifestação do informe ao inscrever o sujeito lírico em um espaço de absoluto desconhecimento. Vamos ao texto: 
Busque Amor novas artes, novo engenho, 
para matar-me, e novas esquivanças; 
que não pode tirar-me as esperanças, 
que mal me tirará o que eu não tenho. 

Olhai de que esperanças me mantenho! 
Vede que perigosas seguranças! 
Que não temo contrastes nem mudanças, 
andando em bravo mar, perdido o lenho. 

Mas, conquanto não pode haver desgosto 
onde esperança falta, lá me esconde 
Amor um mal, que mata e não se vê. 

Que dias há que n’alma me tem posto 
um não sei quê, que nasce não sei onde, 
vem não sei como, e doi não sei porquê. 

Camões decerto não sabe; e pouco importa se as formas fixas da tradição, as quais dominava com exímia habilidade, lhe exigiam o uso correto na escrita poética, pois, em contrapartida, o seu engenho promovia tal torção da linguagem em consonância a um mundo em desconcerto que apenas a afirmação do desconhecimento poder-lhe-ia saber a um testemunho possível da crise que o seu discurso incorporava.  
É assumindo em sua linguagem a experiência da crise que Camões pode dar vida à nova concepção de humanidade, que então se labora sob os termos do informe. E é ao superar as dicotomias reducionistas que delimitam o homem sob o cogito cartesiano que o poeta rompe com o frágil esquema de estruturação que lhe subtrai da esfera do desejo. Como bem afirma o ensaísta Luis Maffei, na poesia camoniana, o homem só acede a sua condição de humanidade porque ama, e neste amar está implicado uma fundamental parcela desejante. Talvez a questão possa se esclarecer a partir da concepção de subjetividade de Georges Bataille, cujo “conceito idiossincrático de soberania significava a perda de controle voluntário que supostamente teria um agente homogêneo” em oposição à submissão a “forças heterogêneas que arrebatam sua integridade” (JAY, 2003, p. 282). O mal do soneto camoniano parece dialogar com a transgressão de Bataille, ambos em concordância relativamente a um movimento de decomposição dos corpos. 
Há, por fim, de se destacar a ambivalência da escrita camoniana em seus processos produtivos. Parece-me sintomática a conjugação de termos tão contraditórios quanto “engenho” (que encontra o seu radical latino na expressão ingeniu), a indicar a ação criativa, e “matar”. Repito os versos: “Busque Amor novas artes, novo engenho, / para matar-me (...)”. A curiosa articulação entre vida e morte a operar no cerne da escrita camoniana indica-nos uma radical consciência da metamorfose, a mesma que move a existência. Pois somente o corpo vivo é passível de se decompor e morrer para gerar outras vidas. Há, sem ironia, a percepção, por parte de Camões, de uma ideia da alegria, em termos nietzschianos, como horizonte de ação. É a alegria adivinhada no informe da matéria em decomposição que o impulsiona para além do desespero, para um novo espaço onde, sem redenção, possa continuar a clivagem de seus versos. Talvez pudéssemos falar de uma ética da alegria, ou do contentamento, se preferirem o dizer camoniano, a qual busca angustiosamente o retorno – o verso que porventura ilumine os contornos de seu engenho obscuro. 

Referências: 
CAMÕES, Luís. Rimas. Texto estabelecido e prefaciado por Álvaro Júlio da Costa Pimpão. Coimbra: Atlântida Editora, 1973. 

DELEUZE, Gilles. A literatura e a vida. In. Crítica e clínica. Tradução de Pedro Eloy Duarte. Lisboa: Edições Século XXI, 2000. 

JAY, Martin. El modernismo y el abandono de la forma. In. Campos de fuerza: Entre la historia intelectual y la crítica cultural. Buenos Aires: Paidós, 2013. 

MACEDO, Helder. Camões e a viagem iniciática. Rio de Janeiro: Móbile, 2013. 

PAZ, Octavio. A dupla chama: amor e erotismo. Tradução de Wladir Dupont. São Paulo: Siciliano, 1994.

A matéria de hoje foi escrita  por Paulo Ricardo Braz de Souza. Ele é mestre em Literatura Portuguesa pela Universidade Federal Fluminense e doutorando em Estudos de Literatura por esta mesma instituição. Os interesses dele perpassam a poesia em geral, a portuguesa, em particular.

0 comentários:

Postar um comentário

Seja educado. Comentários de teor ofensivo serão deletados.