Ficção científica e cultura clássica? Uma análise de All the Troubles of the World de Isaac Asimov
A literatura de ficção científica não
costuma receber a atenção adequada por parte da Academia e, ouso dizer, costuma
ser marginalizada por aqueles que idolatram o cânone já instituído. De acordo
com a crítica estadounidense Elizabeth Ginway:
A ficção científica brasileira também
sofre da idéia de que um país do Terceiro Mundo não poderia autenticamente
produzir tal gênero, e das atitudes culturais elitistas que prevalecem no
Brasil. Como um gênero popular, a ficção científica brasileira no Brasil tem
recebido pouca atenção acadêmica séria, ainda que alguns dos seus primeiros
praticantes fossem figuras literárias bem estabelecidas, como Dinah Silveira de
Queiroz, da Academia Brasileira de Letras, e o poeta André Carneiro. Não é de
surpreender que a maior parte dos primeiros estudos dedicados ao gênero
enfocassem a ficção científica praticada fora do Brasil. (GINWAY, 2005, p. 27 apud MONT’ALVÃO JÚNIOR, 2009)
No entanto, ao
lado de todas as já conhecidas funções da literatura, a dedicada à ficção
científica se ocupa da tarefa de criar situações que podem vir a se tornar
objetivo de pesquisa das mais variadas ciências, ou seja, os cenários, máquinas
e objetos imaginários desses textos podem servir de inspiração a inventores e
cientistas.
Mas será que a
literatura de ficção científica olha apenas para o futuro ou ela pode também
beber das fontes clássicas? Sabemos que um texto se constrói pela junção de
outros já lidos pelo autor. É a noção da intertextualidade tão trabalhada por
teóricos tanto da Literatura quanto da Linguística.
No conto All the Troubles of the World, Isaac
Asimov nos conta sobre uma máquina capaz de dar a reposta para qualquer
pergunta proposta, o Multivac. De acordo com o narrador do conto:
Qualquer pessoa poderia trazer
seus próprios problemas e questões para o Multivac. A qualquer momento, milhões
de conexões elétricas poderiam responder às perguntas das pessoas. As respostas
não eram, talvez, certeiras, mas elas eram as melhores possíveis. E todos
sabiam que elas eram as melhores, e acreditavam nelas. (ASIMOV, 1975. Tradução
nossa)
Essa passagem
nos remete a um tema famoso da cultura grega: o Oráculo de Delfos. Personagem
que aparece em várias passagens mitológicas, a Pitonisa, ou Pítia, sacerdotisa
do templo de Apolo situado na região grega de Delfos, era procurada por nobres
e camponeses que iam à procura de respostas para suas inquietações acerca do
futuro. O vaticínio do oráculo proferido por ela é, por vezes, descrito como
incerto e enigmático, mas na maior parte das vezes a resposta era também bem
aceita pelos fieis, já que provinha do próprio Febo, ou Apolo, pois
Segundo nos contam os mitos
gregos, três irmãs são responsáveis pela trama do destino de cada um: as Parcas
Cloto, Láquesis e Átropos. Elas tecem e é dessa tecedura que Apolo retiraria o
que dizer (?) aos diversos intermediários encarregados de estabelecer relações
entre deuses e homens. (VOLKER, 2007)
A citação
menciona vários intermediários entre deuses e homens, pois, na Grécia Antiga,
várias eram as práticas divinatórias.
É interessante
notar que o excerto do conto acima transcrito também traz outra informação
relevante, afinal, enquanto que a arte divinatória da Pítia era dada pelo deus
Apolo, o Multivac responde às perguntas graças às conexões elétricas que
funcionam no interior da “maior máquina do mundo”, máquina que possuía certo
nível de consciência, como é sugerido no conto. Apesar das diferenças, o fato
de possuir, por um ou outro método, a capacidade de responder às perguntas
inquietantes de quem os visita é o fator que mais aproxima o conto dos relatos
míticos e históricos do Oráculo de Delfos.
Não estamos de
maneira alguma tentando demonstrar ou comprovar que Asimov teria se baseado nos
vários relatos acerca do templo de Delfos para construir seu conto. Na verdade,
tal afirmação não poderia ser conclusiva apenas a partir da análise do texto,
no entanto, essa é uma das várias leituras possíveis de ser realizadas e, portanto,
é pertinente, ao menos, que a dúvida seja levantada, tal como fizemos no título
desse ensaio.
Referências bibliográficas:
ASIMOV,
Isaac. All the Troubles of the World. In: JONES, Lewis, Me, Myself and I: Seven Science Fiction Stories. Harlow: Longman,
1975.
MONT’ALVÃO JÚNIOR, Arnaldo Pinheiro. As definições de ficção científica da
crítica brasileira contemporânea. Revista Estudos Linguísticos v. 38. São
Paulo, 2009.
VOLKER, Camila Bylaard. As palavras do Oráculo de Delfos: Um estudo
sobre o De Pythiae Oraculis de
Plutarco. Dissertação de Mestrado. Belo Horizonte: UFMG, 2007.
Welton Pereira e Silva
é mestrando em Letras: Estudos Linguísticos na Universidade Federal de Viçosa
(MG). Cursou Letras: Português e Literatura também na UFV e se licenciou em Português
na Universidade de Coimbra, em Portugal. Trabalha com a Análise do Discurso,
mas seu lado crítico literário persiste em continuar.
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