quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Ficção científica e cultura clássica? Uma análise de All the Troubles of the World de Isaac Asimov



          A literatura de ficção científica não costuma receber a atenção adequada por parte da Academia e, ouso dizer, costuma ser marginalizada por aqueles que idolatram o cânone já instituído. De acordo com a crítica estadounidense Elizabeth Ginway:

A ficção científica brasileira também sofre da idéia de que um país do Terceiro Mundo não poderia autenticamente produzir tal gênero, e das atitudes culturais elitistas que prevalecem no Brasil. Como um gênero popular, a ficção científica brasileira no Brasil tem recebido pouca atenção acadêmica séria, ainda que alguns dos seus primeiros praticantes fossem figuras literárias bem estabelecidas, como Dinah Silveira de Queiroz, da Academia Brasileira de Letras, e o poeta André Carneiro. Não é de surpreender que a maior parte dos primeiros estudos dedicados ao gênero enfocassem a ficção científica praticada fora do Brasil. (GINWAY, 2005, p. 27 apud  MONT’ALVÃO JÚNIOR, 2009)

No entanto, ao lado de todas as já conhecidas funções da literatura, a dedicada à ficção científica se ocupa da tarefa de criar situações que podem vir a se tornar objetivo de pesquisa das mais variadas ciências, ou seja, os cenários, máquinas e objetos imaginários desses textos podem servir de inspiração a inventores e cientistas.

Mas será que a literatura de ficção científica olha apenas para o futuro ou ela pode também beber das fontes clássicas? Sabemos que um texto se constrói pela junção de outros já lidos pelo autor. É a noção da intertextualidade tão trabalhada por teóricos tanto da Literatura quanto da Linguística.

No conto All the Troubles of the World, Isaac Asimov nos conta sobre uma máquina capaz de dar a reposta para qualquer pergunta proposta, o Multivac. De acordo com o narrador do conto:

Qualquer pessoa poderia trazer seus próprios problemas e questões para o Multivac. A qualquer momento, milhões de conexões elétricas poderiam responder às perguntas das pessoas. As respostas não eram, talvez, certeiras, mas elas eram as melhores possíveis. E todos sabiam que elas eram as melhores, e acreditavam nelas. (ASIMOV, 1975. Tradução nossa)

Essa passagem nos remete a um tema famoso da cultura grega: o Oráculo de Delfos. Personagem que aparece em várias passagens mitológicas, a Pitonisa, ou Pítia, sacerdotisa do templo de Apolo situado na região grega de Delfos, era procurada por nobres e camponeses que iam à procura de respostas para suas inquietações acerca do futuro. O vaticínio do oráculo proferido por ela é, por vezes, descrito como incerto e enigmático, mas na maior parte das vezes a resposta era também bem aceita pelos fieis, já que provinha do próprio Febo, ou Apolo, pois

Segundo nos contam os mitos gregos, três irmãs são responsáveis pela trama do destino de cada um: as Parcas Cloto, Láquesis e Átropos. Elas tecem e é dessa tecedura que Apolo retiraria o que dizer (?) aos diversos intermediários encarregados de estabelecer relações entre deuses e homens. (VOLKER, 2007)

A citação menciona vários intermediários entre deuses e homens, pois, na Grécia Antiga, várias eram as práticas divinatórias.

É interessante notar que o excerto do conto acima transcrito também traz outra informação relevante, afinal, enquanto que a arte divinatória da Pítia era dada pelo deus Apolo, o Multivac responde às perguntas graças às conexões elétricas que funcionam no interior da “maior máquina do mundo”, máquina que possuía certo nível de consciência, como é sugerido no conto. Apesar das diferenças, o fato de possuir, por um ou outro método, a capacidade de responder às perguntas inquietantes de quem os visita é o fator que mais aproxima o conto dos relatos míticos e históricos do Oráculo de Delfos.

Não estamos de maneira alguma tentando demonstrar ou comprovar que Asimov teria se baseado nos vários relatos acerca do templo de Delfos para construir seu conto. Na verdade, tal afirmação não poderia ser conclusiva apenas a partir da análise do texto, no entanto, essa é uma das várias leituras possíveis de ser realizadas e, portanto, é pertinente, ao menos, que a dúvida seja levantada, tal como fizemos no título desse ensaio.



Referências bibliográficas:
ASIMOV, Isaac. All the Troubles of the World. In: JONES, Lewis, Me, Myself and I: Seven Science Fiction Stories. Harlow: Longman, 1975.
MONT’ALVÃO JÚNIOR, Arnaldo Pinheiro. As definições de ficção científica da crítica brasileira contemporânea. Revista Estudos Linguísticos v. 38. São Paulo, 2009.

VOLKER, Camila Bylaard. As palavras do Oráculo de Delfos: Um estudo sobre o De Pythiae Oraculis de Plutarco. Dissertação de Mestrado. Belo Horizonte: UFMG, 2007.

Welton Pereira e Silva é mestrando em Letras: Estudos Linguísticos na Universidade Federal de Viçosa (MG). Cursou Letras: Português e Literatura também na UFV e se licenciou em Português na Universidade de Coimbra, em Portugal. Trabalha com a Análise do Discurso, mas seu lado crítico literário persiste em continuar. 

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