quarta-feira, 12 de novembro de 2014

LIXO E FOTOGRAFIA: UMA LIGAÇÃO IMPROVÁVEL


“De um corpo real, que estava lá, partiram radiações que vêm me atingir, a mim, que estou aqui; pouco importa a duração dessa transmissão; a foto do ser desaparecido vem me tocar como os raios retardados de uma estrela. Uma espécie de vínculo umbilical liga a meu olhar o corpo da coisa fotografada” (Roland Barthes)



Ao me deparar com a coleção denominada Álbum do Lixo, de imediato me veio à mente A Câmara Clara, último livro de Barthes, escrito em 1980, que é uma bibliografia obrigatória em qualquer curso teórico de fotografia, que pretenda se debruçar minimamente sobre a “leitura de imagens”. 

Nessa obra, Barthes não criou um método, mas uma forma de sentir, uma forma subjetiva de perceber uma fotografia, sintetizada no conceito de punctum.

O punctum seria para ele, um detalhe na imagem que, por uma força que concentra em si, atinge o leitor e mobiliza involuntariamente seu afeto. Isso nada tem a ver com o “querer interpretar”, como recorrer a um repertório de conhecimentos técnicos e muito menos a uma bagagem cultural. 

Com o punctum, a imagem fotográfica perde seu caráter de mediação, reconhecendo-se nela uma parte da própria “realidade” que a gerou. A fotografia funcionaria como um elo que conecta de modo muito concreto elementos distantes: “Vejo os olhos que viram o imperador”, diz Barthes no primeiro parágrafo do livro, diante de uma foto do irmão de Napoleão (p. 11).

Posso dizer que fui 'tocada', pungida por esta coleção de fotos.

O “Album do Lixo, Resíduos Fotográficos da Feira da Ladra”,  é um projeto sobre a fotografia e os seus destinos. Na Feira da Ladra, os mesmíssimos objetos expostos podem ser mercadorias, fetiche ou lixo, conforme o ponto de vista de cada um.

No final da tarde o fluxo habitual da feira dispersa-se e deixa, como despojos, uma acumulação de objetos resilientes num oceano de lixo.


Tudo o que não encontrou nenhum lugar no tempo ajustado para o intercâmbio de objeto e dinheiro atrai agora uma nova onda de exploradores desses resíduos, com motivações díspares. 


Durante muitos meses, o coletivo Left Hand Rotation integrou esse estranho grupo de abutres do lixo para veícular o projeto “Álbum Lixo” e proporcionar a exposição que agora inaugura na Pickpocket Gallery. A quarta exposição de Found Photography que esta galeria promove.

Fazendo parte do aglomerado, o objeto fotográfico, revela protocolos sociais, paisagens, circunstâncias, registros, reproduções do que só teve lugar uma vez, do que nunca mais pode repetir-se existencialmente, acontecimento nunca excedido. 


Que orientações, símbolos, rituais, modelos, motivos, significados, compartilhamos em cada uma das nossas experiências diárias únicas e subjetivas? 
                                           
                                                            



O objetivo dessa exposição é “recuperar estas imagens para o imaginário coletivo e, idealmente, reencontrar as suas relações com as pessoas que aparecem nas fotografias”, segundo o grupo Left Hand Rotation, que realiza intervenções de caráter social, cultural e ambiental na cidade.

Os membros do coletivo começaram a reunir as fotografias abandonadas ao final do dia naquela feira há três anos, devido a uma “curiosidade antropológica sobre a memória rejeitada da população”.

“O que leva as pessoas a desfazerem-se dos fragmentos do seu quotidiano” foi o mote da recolha, que os levou a refletir sobre os “paradigmas da identidade no mundo global”, explicaram.




Segundo o Left Hand Rotation, o arquivo está em constante atualização e já é composto por 2.000 fotografias. Ali é possível encontrar imagens de casamentos, crianças, animais de estimação, retratos, paisagens e monumentos.




A exposição é um “exercício coletivo de classificação das imagens”, inspirado no projeto inacabado “Mnemosyne Atlas”, do historiador de arte alemão Aby Warburg, que juntou entre 1924 e 1929 cerca de mil imagens, desenhos, pinturas e páginas de livros.

A escolha do espaço não foi aleatória - além de conhecerem o seu proprietário, Rui Poças, o grupo selecionou a galeria devido à sua proximidade ao Campo de Santa Clara, onde se realiza a Feira da Ladra.

A exposição foi inaugurada no dia 30 de outubro passado e ficará até o dia 15 de novembro deste ano, na PickPocket Gallery, situada na Calçada dos Cesteiros, em Lisboa.

Abaixo, mais algumas fotos da coleção. E, se por acaso alguém reconhecer um parente seu, objeto ou paisagem, enfim que a foto faça parte da sua história, pode reclamar a posse da imagem junto à organização da mostra.


















Referências:
BARTHES, Roland- A Câmara Clara, Editora Nova Fronteira, R.Janeiro: 1984.
http://www.ionline.pt/artigos/mais-lifestyle/fotografias-encontradas-na-feira-da-ladra-reunidas-exposicao-lisboa


         
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Izabel Liviski é fotógrafa e doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Escreve a coluna INCONTROS desde 2009, e é também co-editora da Revista ContemporArtes.

Contato: izabel.liviski@gmail.com



4 comentários:

Francisco Cezar de Luca Pucci disse...

Que ideia mais fantástica. Comovente, mesmo. Fotos anônimas, apagadas, rasgadas, amareladas pelo tempo, pelo anonimato (talvez!) impressionam nossas memórias que estavam arquivadas e reativam sentimentos que estão lá, embora também não se liguem mais e nenhuma imagem nítida. Esse "lixo" é a própria expressão externa e material do inconsciente de centenas de vidas. Adorei.

12 de novembro de 2014 às 13:56
Anônimo disse...

Muito lindo Isabel!
São iniciativas como essa que tornam provável o improvável!
Parabéns Isabel!
Abraços,

Waldman

13 de novembro de 2014 às 20:48
Anônimo disse...

Excelente ensaio Izabel! Parabéns!
Beijo e saudade

Mauro Koury
GREM/PPGA/UFPB

13 de novembro de 2014 às 20:49
Anônimo disse...

Adorei querida! Obrigada
Maria Felipina Barreto Maciel

13 de novembro de 2014 às 20:52

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