LIXO E FOTOGRAFIA: UMA LIGAÇÃO IMPROVÁVEL
“De um corpo real, que estava lá, partiram radiações que
vêm me atingir, a mim, que estou aqui; pouco importa a duração dessa
transmissão; a foto do ser desaparecido vem me tocar como os raios retardados
de uma estrela. Uma espécie de vínculo umbilical liga a meu olhar o corpo da
coisa fotografada” (Roland Barthes)
Ao me deparar com a coleção denominada
Álbum do Lixo, de imediato me veio à
mente A Câmara Clara, último livro de Barthes, escrito em 1980, que é
uma bibliografia obrigatória em qualquer curso teórico de fotografia, que
pretenda se debruçar minimamente sobre a “leitura de imagens”.
Nessa obra,
Barthes não criou um método, mas uma forma de sentir, uma forma subjetiva de
perceber uma fotografia, sintetizada no conceito de punctum.
O punctum seria para ele, um
detalhe na imagem que, por uma força que concentra em si, atinge o leitor e mobiliza
involuntariamente seu afeto. Isso nada tem a ver com o “querer interpretar”,
como recorrer a um repertório de conhecimentos técnicos e muito menos a uma bagagem
cultural.
Com o punctum, a imagem fotográfica perde seu caráter de
mediação, reconhecendo-se nela uma parte da própria “realidade” que a gerou. A fotografia funcionaria como um elo
que conecta de modo muito concreto elementos distantes: “Vejo os olhos que
viram o imperador”, diz Barthes no primeiro parágrafo do livro, diante de uma
foto do irmão de Napoleão (p. 11).
Posso dizer que fui 'tocada', pungida por esta coleção de fotos.O “Album do Lixo, Resíduos Fotográficos da Feira da Ladra”, é um projeto sobre a fotografia e os seus destinos. Na Feira da Ladra, os mesmíssimos objetos expostos podem ser mercadorias, fetiche ou lixo, conforme o ponto de vista de cada um.
No final da tarde o fluxo habitual da feira
dispersa-se e deixa, como despojos, uma acumulação de objetos resilientes num
oceano de lixo.
Tudo o que não encontrou nenhum lugar no tempo ajustado para o intercâmbio de objeto e dinheiro atrai agora uma nova onda de exploradores desses resíduos, com motivações díspares.
Durante
muitos meses, o coletivo Left Hand Rotation integrou esse estranho grupo de
abutres do lixo para veícular o projeto “Álbum Lixo” e proporcionar a exposição
que agora inaugura na Pickpocket Gallery. A quarta exposição de Found
Photography que esta galeria promove.
Fazendo
parte do aglomerado, o objeto fotográfico, revela protocolos sociais,
paisagens, circunstâncias, registros, reproduções do que só teve lugar uma vez,
do que nunca mais pode repetir-se existencialmente, acontecimento nunca
excedido.
Que
orientações, símbolos, rituais, modelos, motivos, significados, compartilhamos
em cada uma das nossas experiências diárias únicas e subjetivas?
O objetivo dessa exposição é “recuperar estas imagens para o
imaginário coletivo e, idealmente, reencontrar as suas relações com as pessoas
que aparecem nas fotografias”, segundo o grupo Left Hand Rotation, que realiza intervenções de caráter social,
cultural e ambiental na cidade.
Os membros do coletivo começaram a reunir as fotografias
abandonadas ao final do dia naquela feira há três anos, devido a uma
“curiosidade antropológica sobre a memória rejeitada da população”.
“O que leva as pessoas a desfazerem-se dos fragmentos do seu
quotidiano” foi o mote da recolha, que os levou a refletir sobre os “paradigmas
da identidade no mundo global”, explicaram.
Segundo o Left Hand Rotation, o arquivo está em constante atualização e já é composto por 2.000 fotografias. Ali é possível encontrar imagens de casamentos, crianças, animais de estimação, retratos, paisagens e monumentos.
A exposição é um “exercício coletivo de classificação das imagens”, inspirado no projeto inacabado “Mnemosyne Atlas”, do historiador de arte alemão Aby Warburg, que juntou entre 1924 e 1929 cerca de mil imagens, desenhos, pinturas e páginas de livros.
A escolha do espaço não foi aleatória - além de conhecerem o seu proprietário, Rui Poças, o grupo selecionou a galeria devido à sua proximidade ao Campo de Santa Clara, onde se realiza a Feira da Ladra.
A exposição foi inaugurada no dia 30 de outubro passado e ficará até o dia 15 de novembro deste ano, na PickPocket Gallery, situada na Calçada dos Cesteiros, em Lisboa.
Abaixo, mais algumas fotos da coleção. E, se por acaso alguém reconhecer um parente seu, objeto ou paisagem, enfim que a foto faça parte da sua história, pode reclamar a posse da imagem junto à organização da mostra.
Abaixo, mais algumas fotos da coleção. E, se por acaso alguém reconhecer um parente seu, objeto ou paisagem, enfim que a foto faça parte da sua história, pode reclamar a posse da imagem junto à organização da mostra.
Referências:
BARTHES, Roland- A Câmara Clara, Editora Nova Fronteira, R.Janeiro: 1984.
http://www.ionline.pt/artigos/mais-lifestyle/fotografias-encontradas-na-feira-da-ladra-reunidas-exposicao-lisboa
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Izabel Liviski é fotógrafa e doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Escreve a coluna INCONTROS desde 2009,
e é também co-editora da Revista ContemporArtes.
Contato: izabel.liviski@gmail.com
Contato: izabel.liviski@gmail.com
4 comentários:
Que ideia mais fantástica. Comovente, mesmo. Fotos anônimas, apagadas, rasgadas, amareladas pelo tempo, pelo anonimato (talvez!) impressionam nossas memórias que estavam arquivadas e reativam sentimentos que estão lá, embora também não se liguem mais e nenhuma imagem nítida. Esse "lixo" é a própria expressão externa e material do inconsciente de centenas de vidas. Adorei.
12 de novembro de 2014 às 13:56Muito lindo Isabel!
13 de novembro de 2014 às 20:48São iniciativas como essa que tornam provável o improvável!
Parabéns Isabel!
Abraços,
Waldman
Excelente ensaio Izabel! Parabéns!
13 de novembro de 2014 às 20:49Beijo e saudade
Mauro Koury
GREM/PPGA/UFPB
Adorei querida! Obrigada
13 de novembro de 2014 às 20:52Maria Felipina Barreto Maciel
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