domingo, 26 de abril de 2015

Eu era feliz. Eu sabia.

                       

Sempre repeti o chavão de que quando se é feliz, não se sabe. Mas não acredito nele. Acho que quando se está a vivenciar a felicidade, é impossível ignorá-la.
Quando eu estava na terceira série, tinha consciência de que era meu melhor ano até ali. A professora gostava de mim, eu sentava no primeiro lugar da fila, tinha uma melhor amiga que também era minha melhor amiga e na minha classe havia um menino que eu gostava e que era legal comigo. Eu estava a viver o meu melhor ano na escola e tinha convicção disso. Não é verdade que eu era feliz e não sabia.
Acho que isso vale para todos os momentos incendiados de plenitude: por mais que se saiba da transitoriedade dela e que a incompletude está mais para a pessoa do que o preenchimento, ao nos pegarmos "naquele" momento, sabemos exatamente que ele jamais desmarcará a pele da nossa alma.
De uns tempos pra cá, vêm-me flashes de lugares, de passagens vividas em viagens, paladares e perfumes de flores e estradas, que me transportam novamente por paisagens distantes, as quais talvez eu nem chegue, um dia, a rever outra vez. E o que eles tem em comum é que, a cada instante que passava por elas, eu sabia estar acontecendo um momento inesquecível da vida, uma alegria sem tamanho, inigualável, que jamais iria me deixar.
O meu primeiro reveillon segurando a mão de um homem foi assim. Os fogos estouravam na noite limpa e estrelada do Paraná e eu sabia estar estreando uma espécie de momento, inédito até ali, na companhia do amor.
O mesmo quando entrei naquele trem português, de Lisboa a Coimbra, vendo as casinhas esparsas pelo caminho, naquele comboio quase vazio e tão confortável, com mesinhas pra reunião de quatro pessoas, enquanto seguia viagem. Meu coração exultava pela alegria do novo, mas também comprimia, pela iminência da saudade, a qual, mal eu chegava a meu porto, já me inundava o coração por conta dos meses que se seguiriam na distância daqueles que eu amava.

Enquanto o trem rangia sobre os trilhos, vindo
Eu vagava cansada, entre nuvens
Procurando enxergar através dos vidros
A fumaça das casas
Viajava há um dia pelos ares
E porque podia medir a distância em tempo
A separação em mim se alongava
Como definitiva
E, nas árvores ao contorno dos morros
Eu 'inda não via as folhas que faltavam
E o cantado da língua não era bonito
Só mais um artifício do desconhecido
Só outro enigma em terra de gringo
Vi minha avó nos olhos de uma velha distinta. E a mim mesma
: olhos atrevidos, amendoados, que riem sozinhos
Às malas quadradas, difíceis de levar,
Reservei os sonhos de peso
Ainda assim, quando as abri, tudo faltava
Parece praxe dizer isso a uma semana de casa
Mas medir o espaço em meses é poema
Com nome predestinado de saudade
Porque quando a distância é tamanha
Que se possa medir em águas
Já se aporta com o peito cheio dela
O oceano transbordando pelos olhos
Ao desembarcar da caravela


Quando em criança eu brincava aquelas tardes de verão com minhas primas e uma criançada boa que se reunia pra brincar de esconde-esconde no escuro, ao cair da noite em Santa Mariana, eu sabia que era feliz. Quando naquelas férias, os primos da minha mãe foram passar um tempo na casa da minha avó, eles com seus quatro filhos, sendo três deles, meninas, e a gente pegava piscina todo dia, jogava baralho e trocava biquínis umas com as outras (a cor da minha pele num tom de cobre. Porque é assim, o bronzeado: pega a tonalidade do ambiente em que se está, na praia, reflete da areia pra pele, no interior, da terra para ela, ofertando à tez, um caboclês inconfundível), eu sabia que era feliz.
E então quando eu entrei na faculdade, aconteceu uma coisa diferente. Eu sabia que seria feliz ali, mesmo antes de ser. E cumpriu-se a profecia: quando eu andava com meus amigos de braços dados, cantando ou rindo, dançando nas noitadas, ou estudando junto pras provas, eu sabia que estava sendo feliz.
Uma vez, ainda criança, meu pai nos levou ao teatro, eu e meu irmão. No teatro de Santo André, no período da tarde, pra assistir uma peça infantil. Era raro ele sair conosco sozinho e aquela tarde atípica, repleta de uma pasmaceira característica das tardes de semana, foi maravilhosamente invadida pela felicidade do novo, na companhia daquele que sempre será o personagem mais especial de todas as histórias: meu pai.

Eu era feliz. Eu sabia.

Isso se deu em inúmeros outros momentos. Tive a graça de ser feliz muitas vezes até aqui. Talvez o mesmo número de vezes que fui infeliz, porque o ser humano é isso. Não dá pra desfrutar de uma única coisa a vida inteira e, se se deseja experimentar o júbilo, tem-se que estar preparado pra viver também o martírio, algumas ou muitas vezes.
Acho que esse desejo de fazer determinada coisa ser especial e inesquecível, influencia no torná-la o que se deseja. Apesar de alguns momentos felizes não se consumarem como esperávamos, não há momento de felicidade consumada, sem que tivéssemos o lapso, a percepção de se estar vivendo um episódio especial.
Minhas viagens, os lugares por que passei, as cores e algum breu revelados nelas, são especiais pra mim. Não todos, é claro!, apenas alguns eleitos, não se sabe ao certo se antes, ou durante o acontecimento. 
Por exemplo, quando iniciei o caminho de Santiago, aquele pôr-do-sol alaranjado alastrando-se no horizonte e sob as ancas dos touros em Pontes de Lima; ou quando andava pelas ruas da baixa de Coimbra, o saxofonista empunhando seu instrumento, que ressoava pelas vielas e arcos; ou quando vi apontar no dobrar de uma esquina de Paris, a Torre muito ao longe e quis persegui-la a pé, até alcançá-la... todos esses, momentos em que eu sabia estar vivendo e, ao mesmo tempo, construindo o que vale a pena ser lembrado e re-experimentado muitas e muitas vezes,  em memória.

Pôr-do-sol alaranjado de Pontes de Lima.
A primeira visão da Torre.
O contato com o mundo diretamente, sem a interferência do outro: uma relação que se desenvolve com o todo, sem passar por mais ninguém, um envolvimento pessoal com o mundo, que o sertanejo faz tão bem e muitas vezes -  não durante um ano, mas durante um dia e todos os dias.
Acho que por isso as pessoas do campo sentem-se mais felizes do que nós. Porque para elas esse contato com o Universo faz-se o tempo todo e por mais que possuam amigos, pessoas com quem podem conversar, compartilhar a vida, nos seus assuntos e silêncios, sabem contactar-se, sem nenhum intermédio, com a natureza.
No filme "Into the Wild", o personagem fala disso. De conseguir a felicidade por outro meio que não através de relações. Ao final, ele conclui que só tem sentido aquilo que se compartilha, mas por muito tempo ele alcançou o sentimento de felicidade no exclusivo usufruto do mundo.


Na cidade, está-se mais distante da natureza, mas não do mundo, não do todo. Contudo, aqui, quanto maior a solidão que sentimos, menos nos permitimos essa interação com o ambiente de que fazemos parte sem que recorramos ao outro, à intermediação do outro, que parece nosso único referencial da felicidade e do encontro.
Outro dia me disseram: você não tem muitos amigos. E isso ecoou fundo em mim, posso dizer mesmo que me deixou doente, tão impactada eu fiquei com a revelação verdadeira: não tenho muitos amigos.
Identifiquei-me com a música de Dominguinhos, num trecho em que diz "eu quase não saio/ eu quase não tenho amigo". Senti-me a própria sertaneja e a dor daquele lamento entranhou-me tanto o ser que infeccionou-me a alma, deixou-me doente, cheia de enxaqueca e vômitos, porque me reconheci no nordestino solitário, cuja poesia confunde-se um pouco com uma angústia perniciosa "eu quase não falo/ eu quase não sei de nada", cuja patologia fundiu-se à minha dor física, em forma de melodia, numa performance inexorável.
Essa identificação, ou simples constatação, constituiu num choque : é claro que eu não queria ser uma mulher sem amigos, que eu não queria ser uma mulher solitária, que confia mais nos animais de estimação que na maior parte das pessoas que conhece. Eu sei a importância de ter amigos. 
Mas, refletindo melhor, não posso também dizer que sou muito infeliz por não ter muitos amigos. Porque eu aprendi um pouco (não totalmente) essa relação mundo X pessoa e muitas vezes me sinto integrada: quando me permito sair pelas ruas e respirar o mundo de fora, olhar pra desconhecidos, ouvir o rumor dos trilhos do metrô e a buzina dos automóveis nas grandes avenidas, contemplar uma obra de arte numa galeria desconhecida ou degustar um doce de maçã no meu café preferido, enquanto aguardo aquele filme que só passa na capital.

Hoje eu vou levantar
Abrir as janelas, arrumar a cama
Vestir uma roupa bem viva
Ir pra longe.
Hoje eu vou deixar a vida
O mundo, as avenidas
Andarem em mim.
Hoje eu quero sair.

Desta maneira eu consigo continuar construindo momentos inesquecíveis, mesmo quando não há uma mão pra entrelaçar na minha - na carteira levo meus amuletos: um ticket do metrô de Paris, um cartão de hotel em Florença, um ingresso de Mr. Paul Mac'Cartney no Brasil.
E consigo também despistar o medo quando, no viger daquele ato inestimável em que está a desenrolar-se o amor da vida, desesperamo-nos em cogitar, mesmo que em remota hipótese, a perda da pessoa amada... 
Afinal, o mundo, o que nos envolve, sempre vai estar ali. Como Deus, como a própria vida, o que está around, diferentemente de uma pessoa, é grande demais pra se perder.














ouça esta canção e entenda com o coração o que não está dito
















Larissa Germano é autora de "Cinzas e Cheiros" e escreve nos blogs Palavras Apenas (naoapenaspalavras.blogspot.com) e Nunca Te Vi Sempre Te Amei (cafehparis.blogspot.com), Tem perfil no facebook e no twitter e a página Lári Prosa e Trova no facebook. É também compositora intuitiva e tem perfil no Sound Cloud e Youtube.






7 comentários:

Vanisse Simone disse...

Lindo. Lindo. Lindo... Parabéns Larissa!

26 de abril de 2015 às 10:25
Vanisse Simone disse...

Lindo. Lindo. Lindo... Parabéns Larissa!

26 de abril de 2015 às 10:26
Anônimo disse...

Uau, Larissa!
Maravilhoso texto, senti como se fosse eu falando...
Parabéns por saber falar de coisas sentimentos tão pessoais
e ao mesmo tempo tão universais.
Bel

26 de abril de 2015 às 11:47
Lari Germano disse...

que legal que gostou!!! é sempre bom quando o outro se identifica com o meu texto, pq, tão subjetivo, é como um novo amigo que se faz.... grata! bjsss

26 de abril de 2015 às 14:12
Lari Germano disse...

ah que legal seu comentário!! é isso mesmo o que pretendo falando do que me é tão íntimo, atingir esse ponto em que, na verdade, somos todos iguais.... bjs

26 de abril de 2015 às 14:13
Iraci disse...

Uma leitura tão tranquila quanto intensa.

26 de abril de 2015 às 20:23
Lari Germano disse...

Obrigada, Iraci!! Continue acompanhando. Bjs

27 de abril de 2015 às 07:21

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