quinta-feira, 2 de julho de 2015

PECADO CAPITAL




Chegamos cedo, mas era tarde. “Grandes são os desertos e tudo é deserto”. Um céu de cimento sustentado por imensas colunas de aço e concreto. Tempo Sombrio. Onde o mundo envelheceu, as folhas escureceram. Cotidianamente.
Religiosamente.
As pessoas movimentam-se em ondas e os carros movimentam-se e as motos também. Um cajado negro sustenta o candeeiro de três cores. Vez ou outra o mar se abre e o povo de Deus passa. E passa a fingir que passa o que não vai e não pode passar.
Em êxodo –
partindo, partidos, paridos, feridos, ruídos. Caminhando por fora, correndo por dentro. Um homem alto, feito uma árvore torta, com suas raízes leves e contraídas sobre o chão resistente – um suspiro de ânima, quase insustentável, quase incorpóreo. Anônimo. Cantarola. E o Shopping, a Casa das Luzes na Capital, mantem os olhares perdidos procurando o impossível.
Uma lebre em casco de tartaruga, quase cega pelos anos, quase morta pela vida, murmura: _Onde está? Onde está aquela maldita coisa? Ela diz. _O que? Eu pergunta. _Não consigo encontrar. Onde está? E continua espetando o lixo com sua bengala improvisada.  Arbustos de metal indicam a direção, nomes talhados em copas de leme. Os caminhos são infinitos e são infinitas passagens e portas. Um corpo sem homem passa sussurrando. Quatro camundongos vestidos de gente e duas pessoas vestidas de rato. A minha fome limpou a barata esmagada do chão e a minha pressa esquentou o salgado que eu comia e que estava frio. Frio de doer os dentes. Como esta cidade anzol. Morna pela urgência de estar sempre correndo, limpa pela fome de estar sempre faminta. Fisgando.
            Depois
centopeias de ferro, sanfonadas no meio – sem pernas, nem pés - abrem a boca. Todos querem entrar na centopeia, querem ser tragados para dentro. Elas conhecem todos os caminhos e os perigos que existem por lá. Elas percorrem todas as vias, as centopeias gigantes que rodam e rodam. Estômagos febris de conforto passageiro - pelos túneis escuros de estrelas amarelas.
É preciso pagar, nada é de graça.
Até mesmo as centopeias respondem a alguém maior. Ninguém ousa questionar o Maior.            É assim que o chamam, o Maior. Os outros de suas espécie, os Maiorais, também não podem ser questionados.
Sobre abelhas mecânicas, os abelheiros costuram entre as centopeias, entre as marés e – por vezes – acima das margens do rio estático que – paralisado – continua correndo.
            A estrada permitida aos ambulantes é listrada de zebra. O Azebramento, apelidaram. Apelidaram também os assobiadores e os pedintes. Diabretes berram na saída do mercado: _Compro olho, compro olho! Avaliação sem compromisso! De cara larga e corpo alheio, um estranho grita: _Compro e vendo cabelo! Compro e vendo! Mais adiante, antes de uma esquina que torcia de maneira peculiar uma ruela estreita, a moça-doura, desembocando na avenida, repetia – sempre no mesmo tom: _Chip aqui! Chip! Olha o Chip!
            Ocorreu-me então que estavam programados.
            (Poderiam estar programados?)
            Uma senhora estendeu a mão – um senhor deu-lhe do nada que tinha. Alguns vendiam seus trabalhos, outros vendiam e outros – ainda – vendiam outros. Na saída dos Guardadores, Homens de Pés anunciavam tudo, Homens de Sola compravam e Homens de Rodas passavam.
No enorme asterisco da praça central,
 aos poucos chegava uma segunda noite. A noite verdadeira de lâmpadas em volta. O Letes ancestral – ribeira da memória - canalizado em tubos de rotina, repetição e medo.
_É preciso esquecer! Diziam os carros.
_É preciso esquecer! Diziam as motos.
_É preciso esquecer! Diziam as bocas desabitadas e os relógios de quina.
_É preciso esquecer! Diziam os prédios.
            E o concreto e o cansaço e o choro e a fome diziam: _É preciso esquecer, não é? E o menino dizia: _É preciso esquecer! É preciso e necessário, é uma condição sine qua non para a sobrevivência. Talvez eu não sobreviva à necessidade e à precisão de esquecer o inesquecível, Coração.
_Mas é preciso esquecer, menino! Um grilo anêmico lamenta.
Subimos na caixa elétrica de carreteis cromados. Vamos embora? Não ainda. Uma última parada. Em algum lugar, além do além e depois, jogos de cores vorazes brigavam por um belo horizonte – preso nas lendas e na lembrança. Tentamos atravessar para o outro lado, mas duas serpentes largas como seis centopeias juntas cortavam o caminho, uma para a direita e outra para a esquerda. Não havia ponte ou porto ou rota. Não podíamos contornar. E a noite descia sobre os entulhos e sombras que pareciam homens e pareciam mulheres e pareciam crianças começavam a se misturar com outras sombras de lugares anoitecidos. A cidade nos venceria?   
_É preciso esquecer, menino!  Alguém cochicha.
Por quê? Eu pergunta. E o Condutor me responde, consolado: _Embaixo de tanta euforia e de tanto ruído
- tudo é deserto.

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