quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Deste viver aqui num papel d’escrito



Na beira de tudo que é Ser no mundo, a invulnerabilidade das vozes. Sem abrir a porta, colocar a chave na maçaneta e girar. Um corpo verticalizado em frente a um pesar imenso. Vai até a cortina. O que há lá fora? Ele pensa no que poderia haver depois da porta. O que está depois da maçaneta? Mas a cortina que cobre a vidraça é um novo desafio. Alguém proibiu a espiadela. Quem? Não sei. Não sabemos. Sabe-se é da proibição. A mão no tecido. A surpresa de ser comum. Ele esperava que houvesse o impedimento. Onde está o impedimento? Há qualquer momento. Há qualquer momento. Aquilo que somos dentro do que vemos e somos não quer puxar a cortina. Contrariamos a sua expectativa. Não devemos fazer isso – ele diz – é proibido – ele diz.  Não quero fazer isso.
            E faço. Fizemos.
            Não há vidraça – a janela é de madeira. Abrir ou não a janela? Seria um teste, a cortina? Não importa. Perto demais. Não abro. O buraco da fechadura? Não se pode ver doutro lado. Talvez – toda essa preocupação configure a minha incerteza e já defina o destino. Vou acabar por não abrir a porta. Não lhe parecia que os outros tivessem dúvidas. Eles não pareciam amedrontados. Pode ter sido o calor cego dos momentos febris. Dizem que eles ganha forma se os alimentamos. Como serpentes gigantescas e insuportáveis, cujo mover-se pelos cantos torna-se um estrondoso chiado constante e o sibilar assombroso se parece muito com a reza matinal das crianças. Essas serpentes que nascem como vermes insignificantes – minúsculos e vindos de lugares tão pequenos – miúdos fios de nada. Quem imaginaria? Quem imaginaria? Pode ser esse o efeito motriz do primeiro passo – do último cruzar de pernas. Está lá a porta, temos a chave – mas quem há de girar a maçaneta e, contra todos os instintos, arremessar para o lado a matéria nebulosa da porta? Quem cruzará o pórtico, desvendando a plateia e o artista e descobrindo os lados da cortina?
A dobradiça da porta não condena para qual das posições se enverga.
Estamos dentro ou estamos fora? Sairemos ou entraremos? Não ouço o suficiente das serpentes. Ele pensou que não as ouvia. Pode ser isso. Ele achou que seria esse o motivo. Sá Carneiro – a figura que agora me ocorre. Não ouso – ele sim.  
            A porta se abrirá de uma forma ou de outra. Se não agora, depois virá alguém e – do outro lado – a abrirá e o receberá. Venha, amigo! Acenderão o farol do veiculo que além-porta o espera – caso haja a possibilidade do retorno – para que o conteúdo fique ainda submerso na ocorrência inevitável do encontro. Agora ou depois. O que os leva à maçaneta? O que leva a palma contrariada a torcer o pulso indignado? O cansaço de estar em um lugar tão cheio? Já contaram tanto sobre o outro lado. Já disseram tanto. Abrir ou não a porta? Ser ou não ser? Ser ou não ser, eis a questão: será mais nobre em nosso espírito sofrer pedras e flechas com que a Fortuna, enfurecida, nos alveja, ou insurgir-nos contra um mar de provocações e em luta pôr lhes fim? Seguir por onde se passa sem passar – de braços dados com o desconhecido. Parece fascinante e – agora – suportável.
            Ouço o ruído matinal das serpentes.
Ouço o cantar amigo das presas magnas e das bifurcações.
            A melodia. Seria isso? O suspiro pesado das lamentações atinge tamanho gemido que as serpentes – inimigas do agora – começam a cheirar com o perfume das mães. Quem sofreria os relhos e a irrisão do mundo, o agravo do opressor, a afronta do orgulhoso, toda a lancinação do mal-prezado amor, a insolência oficial, as dilações da lei, os doestos que dos nulos têm de suportar o mérito paciente, quem o sofreria, quando alcançasse a mais perfeita quitação com a ponta de um punhal? Quando – por ele – outros girassem a chave. Quando – por nós – com uma mão nas costas e outra sobre a maçaneta intocável, um estranho ou amigo ou filho, Brutus e Cesar, fizessem o que não fizemos. Se as cordas que me atam a essas mãos de carne, se os cordões que me tornam parte do espetáculo – volteios dessa dança – já não significassem tanto perante a possibilidade das novas cordas, da falta de cordas, doutros cordões e passos de valsa...
            Como fazer se ainda percebo o suspiro frio das serpentes e o calor do sol em minhas costas? Posso compreendê-los, mas ainda não os sigo. Seu perdão e benção, Florbela. O pensamento assim nos acovarda, e assim é que se cobre a tez normal da decisão com o tom pálido e enfermo da melancolia. Ele pulou da passarela – dezessete anos – me dizem. Irmão do filho do pai. No Rio de Janeiro ou em outro lugar. A chave – a porta – a maçaneta – a porta – o passo. Não é um instante eterno entre o saltar e o chão – é um repente ligeiro, o compasso breve de um violino, uma nota que se pretende longa, mas é interrompida. Ou seria largo para o corpo que cai? Ou seria eterno? Minhas mãos não se atrevem. Elas não se atreveriam. No entanto, gosto da segurança de dar as costas para a porta – sabendo-a e deixando-a. Quando chegar o momento, leves solavancos sobre o meu ombro. Ei! Vamos? – um apressado.  Com o indicador e o dedão, pedirei um pouco mais, o tempo de uma última olhada, sempre haverá – para mim – uma última olhada. Menino enrolão. Talvez seja isso. O que fica do lado de cá da porta. Entendo a gritaria e a voz doce das serpentes. No entanto, estarei sempre pedindo mais quinze minutos para estar na cama, mais dois para estar da tagarelice, mais um para entrar depois do jogo. Estarei sempre a querer fugir da escola. Não é por medo da morte – me parece – que não torço a maçaneta, mas por medo da vida. Receio de estar sem ela – como tinha antes – quando tico – de estar longe dos meus pais. Posso entendê-los. Abraço a todos vocês e sinto-me contemplado pelo romper da porta que tiveram. Quando vier Aquela – em forma de outra - que o meu adeus seja mais um até logo.
Por hora, deixemos tudo em guerra e
sigamos.

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