A espessura do Sol
Estranho como
pode não haver espanto. O terror de uma água corrente sem a força que tinha. No
rio aqui de perto, baixo como só, fino como só, os peixes – que antes eram
segredos – são agora borboletas na flor da superfície. O fundo parece um campo
de árvores anãs e as capivaras caminham na fantasia – mais passo que nado. Um
córrego de ali – muito sujo, muito magro – lambe com dificuldade um resto de
beira que ainda alcança. Aquela claridade imensa, planta de fogo que floresce,
e os rapazes da feira que devoram melancias como quem salva da peste a própria
alma. Quando o algodão das nuvens corre vento para o outro lado do morro e o céu
come inteiro um azul plúmbeo, feito fumaça leve, mas perigosa. _Deve de ser queimada por aí! Deve de
ser. E a gente toda que se aglomera nas portas, rezando com os olhos o chuveiro
que não desce, aconselha: _Leva o
guarda-sol! Para mim que torço o nariz quererendo perder o sol mais do que
tudo. Que ando a fechar com força as trancas da cara e acabo por sentir uma
trinca na grota da cabeça. Que de brutalidade minha sobrancelhas torcem uma
contra a outra e elevam a colina do entrepelos na subida longa e nasal da face.
Não haveria, por um acaso, um perde-sol? Fala-me outro: _Não esquece o protetor solar! E eu lá Deus penso que o melhor
seria um balde. Se pirigar eu até que gargalhava, mas não tenho por onde
escorrer. Levo ou não levo o guarda-sol? Daí
vem aquela última vez que ameacei ir até a esquina com uma sombrinha
(que
me dava bem o que o nome promete)
e
a junta do braço que levantava a tenda floral começou a chorar desesperada. Não
levo a guarda sol. Decidido. E quando já com a porta fechada, quando já com a
rampa descida e o portão encostado, alguém me grita que espere. Eu espero – e
sofre em silêncio a minha obediência no torpor penitente da parada.
_Leva o guarda sol!
E
subo a rua como um bicho sem toca. O trambolho pendurado em um dos braços e o
braço pendurado no corpo e o corpo pendurado na alma - que se pendura em Deus
para não deixar de existir. Da ponte – entre o boteco e o mercado – a realidade
seca do rio que agora é enxurrada. Esbarro com os carregadores dos caminhões de
frete e sacudimos a cabeça e poupamos a palavra. Por onde a sombra é farta –
sem o frescor natural das sombras – e os cães todos alicerçam sua soberania,
algumas senhoras largas estreitam a calçada e torna-se volumosamente penoso
arredar o pé contra a rua. Essa rua que é um reflexo da pouca água e nós que
somos todos peixes atirados contra a emancipação. As mangueiras alimentam o
jardim estéril dos paralelepípedos e o moço que direciona os jatos em serpente
não percebe – ou faz não perceber – que a água da torneira é água da ribeira e
que a falta de lá é falta de cá – se não para agora, para logo. O povo que não
conheço e que passa como parentes distantes piquenicando e periquitando pela
rotina dos meus anos. O mato desbotado e morno e triste na quina do meio-fio
comungando as folhas abandonadas de um arbusto anêmico. Uma porção de jovens
lentos e descompostos passeando no caos inabitável dos lugares iluminados, no
desgaste natural da caminhada, com semblantes cuidadosamente cobertos de
verniz.
Faço
lá o que saí para fazer – não era muito – e volto e na volta é tudo como na
ida: a mangueira em prantos que espera brotar uma brisa do pedregulho, o
passeio arredado pelas senhoras fartas de plantão, o fluxo esgotado e
pluvimedonho da canaleta, o guarda-sol que me esconde das aves e a tempestade
que só existe em mim e sobre a pele da onde habito. Estrangulo a maçaneta do
portão com dificuldade e violência – o ferro queima como se estivesse ali para
queimar. Eu entro e subo a rampa. Nada se move: nem as rosas, nem as folhas,
nem o tempo. Parada – gordamente. Absurdamente parada. Aquela flor insana de
lume pendurado no teto da vida. Erguida sobre o mundo. Aquela claridade imensa.
E os gatos derrubados – imóveis – na canela da goiabeira. E o sono pesado das pálpebras
desidratadas. Estranho como pode não haver espanto.
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