sábado, 28 de novembro de 2015

AQUILES, O DESTEMOR E O FIO DA NAVALHA...


A coluna Espaço do Leitor, traz a importante contribuição de Yasmin Tamara Jucksch*, em uma reflexão ao mesmo tempo profunda e sensível da condição humana em sua dualidade paradoxal.



...de novo ainda outra, a quarta sobre a terra que muitos nutre,
Zeus filho de Crono fez, mais justa e valorosa,
a raça divina dos homens heróis, que são chamados
semideuses, a geração anterior à nossa na terra imensurável.
(Hesíodoii)


A qualidade do tempo dos semideuses narrada em Os Trabalhos e os Dias revela, como no trecho citado acima, o lugar fantástico e muito delicado do herói entre a proximidade e o afastamento entre a sua humanidade e sua natureza divinal. Tanto no mito hesiódico das cinco raças quanto na Ilíada, o tempo e a raça dos semideuses têm como liame entre homem e divindade a justiça e o valor ; todavia, enquanto o poema de Hesíodo mostra-se mais lacônico em relação a estes dois vocábulos decisivos, a Ilíada de Homero oferece-nos sobre eles um denso tratado, cuja eloquência poética influenciou muitos dos maiores artistas e pensadores da História. Nos versos de Homero encontramos um riquíssimo retrato dessa raça dos semideuses, “mais justa e valorosa” que a raça brônzea e, sem dúvida – como dirá Hesíodo – que a desgraçada raça de ferro. 

Ora, em ambos os poemas percebe-se a referência poética a este inquebrantável elo entre a ideia de valor máximo para o humano e os princípios largamente divinizados da justiça e da sensatez, como também da coragem, da gratidão e da lealdade, o que não é pouco. No mito hesiódico, estas medidas éticas é que dão o tamanho e o valor de uma raça, ao compor a métrica desse arco de graus que engolfa desde o afastamento até a maior contiguidade entre homens e deuses. Tais medidas aparecem magistralmente narradas por Hesíodo: as diferenças entre as raças vão gradualmente se acentuando quanto maior o afastamento desses sacratíssimos éthos, consagrados como os mais celestes desde a raça de ouro dos homens “que como deuses viviam”. 




Os homens dessa raça áurea “voluntária e tranquilamente repartiam os trabalhos, tendo bens abundantes”iii, diz Hesíodo; note-se que é a justiça, com toda a sua sacralidade ancestral, que está na raiz da excelência divina das raças superiores. A justa e voluntária repartição (ideia que remete também à questão da justa medida da têmpera) é, portanto, da maior gravidade, e por isso mesmo aparece integralmente conectada à noção de abundância . Essa precisa distribuição é lembrada pelo próprio Aquiles quando diz a Agamêmnon que “(...) não é justo partir de novo o repartido”iv.

Na raça dos semideuses – meio deuses, meio humanos – a justiça parece figurar, portanto, como a divina medida de maior valor possível para o homem. Ainda no mito hesiódico, lê-se que na raça de prata (que “já não se assemelhava à de ouro em corpo nem pensamento”), o que sobejava era uma certa iniquidade, aflorada na insensatez e na insolência, embora ela fosse, ainda assim, “bem-aventurada”. Já à raça de bronze, que a sucede (com seus homens vigorosos e de “coração de aço”) segue-se a raça de Aquiles e de outros memoráveis heróis, mais justa e valorosa que a anterior, diz o mito. Parte dos heróis dessa estirpe imemorial foi ceifada pela morte em Troia, mas


(...)outros, conferindo-lhes vida e moradia à parte dos humanos,
Zeus pai, filho de Crono, estabeleceu-os nos limites da terra.
E eles, o coração sem cuidados, habitam
as ilhas dos bem-aventurados, junto ao Oceano
de fundos redemoinhos,
afortunados heróis, para quem um fruto doce como o mel,
que floresce três vezes ao ano, a terra fecunda traz.
(HESÍODO, Os Trabalhos e os Dias, v. 174)


Deleitados com tal “fruto doce como o mel” (imagem fecunda que dá ensejo a diversas possibilidades interpretativas), os heróis eleitos por Zeus desfrutam a dita de um solo rico e sagrado sobre o qual se deliciam com a bem-aventurança dos prazeres divinos. Mas o motivo pelo qual esses heróis afortunados foram eleitos, se é que há algum, não nos é revelado pelo poema. Poderia a diferença destes para os outros, “levados pelo termo da morte”, estar expressa na sagacidade e na agudez de uma têmpera superior e no reconhecimento natural das divindades? De qualquer modo, na Ilíada, esta mesma capacidade de reconhecer e escutar as figuras divinas, largamente reputada a Aquiles, é o que dá a magnânima distinção ao herói: é ele quem afirma tacitamente que “os deuses dão escuta a quem se curva aos deuses”v.




Parece-nos – e tal é a leitura que defendemos aqui – que a essa possibilidade de reconhecimento do divino alinha-se a questão da justiça e da injustiça, o que quer dizer que a medida justa seria, ela mesma, a própria abertura para a participação do homem em certas qualidades áureas, traduzidas nos mitos e nos poemas épicos como uma plena “aproximação dos deuses”. Ora, o problema da medida é de fato tanto o coração da história homérica quanto o da vida humana: a injustiça que se paga com a injustiça, a desmedida punida num círculo infinito com uma nova desmedida – ou com medidas justas que criam sempre novas ocasiões de injustiças – é igualmente o motor da Ilíada e o fado da humanidade. 

      E se o desacordo, a cegueira e a injustiça são características próprias ao humano e a justiça e a visão são qualidades eminentemente divinas – porque desde sempre atribuídas a Zeus –, é justamente a própria arte da medida que equivaleria, para qualquer homem, a uma espécie de “contato com os deuses”. 

      Note-se que no poema estas medidas e desmedidas da têmpera vicejam nas oposições entre crueldade e piedade, medo e coragem, carência e saciedade que afloram nos personagens, cada qual com a sua medida própria. Mas Aquiles, o mais valoroso dentre os melhores, parece caminhar no espaço exíguo do meiovi, isto é, parece encarnar essa mesma possibilidade de medida de que falávamos: ele nunca está predisposto à contenda, é solidário e cultor da amizade, mas na refrega com o inimigo é implacavelmente cruel – já que o enfrentamento corajoso que se traduz na violência e na morte bem executada é a medida ideal do guerreiro supremo. 


      Aquiles nada teme, mas se encolhe perante o desbragado rio-deus Escamandro, respeitoso. Ele é também o homem pleno de areté vii, o mais destemido e o maior guerreiro, e, no entanto, é uma dor no coração – a carência do amigoviii – que o impulsiona à ação bélica mais cantada da história. Mas o problema fulcral da medida também abrange outro aspecto (do qual não trataremos aqui), manifestado na presença constante na Ilíada do problema das relações entre o que chamamos modernamente de livre-arbítrio e destino, embora tal cisão conceitual seja estranha à tradição que engendrou os poemas homéricos. 





      Os caprichos e dissensões que se dão logo no início do poema (e que vão determinar todo o seu curso) aparecem ainda pouco ligados às vontades determinantes dos deuses, parecendo brotar muito mais das vísceras dos próprios personagens; por outro lado, o comportamento destas figuras genialmente cunhadas mostra-se, no decurso do poema, crescentemente ligado às vontades divinasix (veja-se, por exemplo, as diversas cenas de deusas excitando os corações para a guerra, Atená abrandando os impulsos vingativos de Aquiles e Íris incutindo o “dulçor de rever parentes, pátria, esposo” em Helena).

 Esta ambiguidade fundamental mostra-se também no fato de que, por um lado, não há divindade que se assemelhe à Moira, a deusa do destino de cujos alvitres as causas não se deixam desvelar, enquanto que, por outro, não deixamos de entrever no meio de tamanho domínio divino discursos e inclinações que surgem das disposições singulares de cada homem ou mulher. Seja como for, junto com a vontade e manipulação dos deuses, também estas medidas peculiares do caráter e do temperamento de cada personagem tomam parte nas intensas oposições que abundam na Ilíada entre justiça e injustiça, coragem e temeridade, prudência e insensatez.

Medidas e desmedidas

Logo no Canto I salta aos olhos, nas cristalinas diferenças de caráter entre Aquiles e Agamêmnon, a síntese literária dessas complexas relações opositivas, uma vez que o conflito entre os dois heróis parece ser um lócus privilegiado de abordagem do valor do caráter humano. Mesmo com personalidades multifacetadas, os dois guerreiros têm bem demarcada a diferença que traz consigo o problema da medida da participação do humano no divino: predomina em Agamêmnon a arrogância e o destempero, enquanto que no discurso de Aquiles vigora a beleza e sensatez.

No entanto, embora ambos os personagens tenham grande status entre os seus, Agamêmnon é superior a Aquiles no âmbito secular da guerra: ele é o chefe supremo da coalizão dos numerosos exércitos e detentor do poder máximo, dentre todos os Aqueus, de convocar a ágora e arbitrar sobre os desdobramentos da batalha, sendo, além de tudo, da progênie do próprio Zeus. Por outro lado, Aquiles é o melhor e mais hábil de todos os milhares de guerreiros que se perfilam para a guerra, aquele a que todos os homens gostariam de se assemelhar – o mais belo, másculo e veloz dentre os maiores, e ainda, a um só tempo, rei dos Mirmidões e filho de uma deusa.




No entanto,o traço comum entre ambos – a superioridade bélica que em um caso é política e em outro é guerreira – contrasta com as diferenças de têmpera que já sensivelmente se delineiam, logo no Canto I, na cena que culmina no ataque de Agamêmnon a Aquiles:


...Caso os aqueus um dom, magnânimos, me deem,
grato a meu coração, por igual me compenso; caso não deem,
meu prêmio eu pessoalmente o tomo:
O quinhão que te coube, o de Odisseu, o de Ájax,
Termino por levar, deixando o dono em cólera!
(HOMERO, Ilíada, Canto I, v. 135-139)


Agamêmnon, forçado a devolver Criseide ao pai, ameaça tomar uma das mulheres dos demais guerreiros e acaba por apossar-se da amante do próprio Aquiles, o que já prenuncia a sua gana insaciável: “ó ávido de ganhos!”x diz-lhe o Peleide. O próprio discurso de Tersites em resposta à ameaça de Agamêmnon, embora sufocado na ágora,é também sintomático:


Filho de Atreu, de que reclamas, que te falta?
Tendas repletas de bronze, repletas de escravas,
fina flor, que os Aqueus te dão a primazia
da escolha.

...Queres outra cativa, para, a teu prazer,
apartá-la, possuí-la? Não te cabe, chefe
dos filhos dos Aqueus, cumulá-los de males!
(HOMERO, Ilíada, Canto I, v. 225-234)


Aquiles exalta ainda por duas vezes na Ilíada a danosa desmedida do Átrida:


... No tumulto da luta o legado mais duro
Compete às minhas mãos; quando vem a partilha,
Teu prêmio é bem maior; o meu, de pouco preço,
O prezo e levo às naus, cansado da batalha.
(HOMERO, Ilíada, Canto I, v. 165-168)


...Doze pólis minhas naus tomaram,
E onze apresei por terra em Ílion, férteis-plainos
A todas despojei de esplêndidos tesouros,
Copiosos, que a Agamêmnon como dom portava;
Permanecendo atrás, junto das naus velozes,
Ele os recolhia: muito para si, bem pouco
Para a partilha.
(HOMERO, Ilíada, Canto IX, v. 328-334)


Agamêmnon, o retrato homérico do puro descomedimento, também não hesita em desdenhar os méritos de Aquiles: “o valor que apregoas é favor divino”xi, diz-lhe. É emblemático, portanto, que seja ele quem provoca a primeira ofensa à divindade, e que homens e animais pereçam pelas ofensas ao sacerdote e ao próprio Apolo. Agamêmnon, diz Aquiles, não guarda gratidão pela solidariedade entre os reisxii, e por conta da grave ofensa causada a Aquiles– e da consequente ausência do herói na guerra – os Aqueus enfraquecem na batalha e morrem aos milhares. Tais excessos não deixam de ser repulsivos: é “a contragosto”xiii que Briseide é levada ao supremo, este que insiste na discórdiaxiv e transborda arrogância: “A mim não me dá pena /Desdenho teu rancor”xv, diz a Aquiles).

De outro lado, o retrato de Aquiles é o do herói injustiçado cujos ímpetos violentos e sanguináriosxvi mostram-se, por outro lado, intensamente afetivos – afetividade que, ultrajada, torna-se a causa da ira (ménis) que mais assustadoramente irrompe na Ilíada. O amor devotado a Pátroclo ressalta o valor excelso da philía no peito do herói, e o sofrimento pela desdita do amigo mantém-se na tensão com a fúria violenta e o desejo de vingança da sua honra. Note-se a força dramática da cena em que o guerreiro lamenta a morte de Pátroclo: a dor “nuvem-escura”


...eclipsou o herói. De ambas as mãos toma esfúmeas
cinzas e as lança sobre a cabeça, encardindo
o rosto belo; a túnica nectárea, tinta
de fuligem, sujou-se; jaz no pó, estendido,
grande, grande e espaçoso, arrancando os cabelos.
(HOMERO, Ilíada, Canto XVIII, v. 135-139)


E Aquiles não é somente o amigo devotado, mas também o filho saudoso do pai morto: “(...)e uma ânsia de pranto surgiu/no herói, que recordou o pai”xvii. Também é ele quem protege Calcas quando este vacila ante a fúria de Agamêmnonxviii, e que é ferido no ânimo pelo sequestro de Briseide:


...só das minhas retomou–
Cara ao meu coração – a esposa, e a goza agora
Na cama. Lutar contra os Tróicos, por quê: Por
Que o Atreide trouxe aqui seu exército? Não
Foi por Helena, lindos-cabelos? Atreides,
Eles, apenas, amam entre os mortais? Não!
Todo homem reto, merecedor do nome, ama
Sua esposa e a ampara, como eu de coração,amo
A minha, ainda que a tendo conquistado à lança.
(HOMERO, Ilíada, Canto IX, v. 336 a 344)


Em suma, Aquiles, capaz de grande fúria, é também o herói de grande sensibilidade afetiva. Essa têmpera concorda com a sua precisa medida: seu primeiro discurso já apresenta de cara a sua disposição para a justiça, quando tenta incitar Agamêmnon à reparação da ofensa à honra de Apolo. Além do mais, Aquiles recebe muitos favores divinos, é o que vê e ouve a divindade (e disso os exemplos são fartos), e o que se mantém na guerra por pura solidariedade aos Átridas – além disso, ele reconhece e respeita o poder do chefe supremo, mesmo sendo Agamêmnon muito frágil ante o “divino homicida”.

A justiça, a diplomacia e a afetividade de Aquiles contrastam, como se vê, com a desmedida e o egoísmo de Agamêmnon, cujo ímpeto ainda não foi freado no Canto I. No entanto, a oposição diametral entre os dos dois personagens não anula a sua composição em nível mais amplo, uma vez que o seu inimigo é comum e que, no plano maior do poema, seu objetivo comum é a conquista de Troia. Nesta composição essencialxix o que transparece é o lugar de proximidade e afastamento que ambos respectivamente ocupam em relação aos deuses, traduzido no tempero da phronesis xx e na qualidade da poíesisxxi respectiva. 

Estariam estas duas figuras emblemáticas ocupando, cada uma em um degrau existencial próprio, um arco que indica a aproximação possível entre o divino e o humano? Agamêmnon também tem estirpe divina e possui a virtude da palavra e da liderança, ou seja, é quase tão grande quanto o melhor dos melhores, mas a qualidade do seu relacionamento com os deuses está muito aquém da de Aquiles. Nesse âmbito o semideus plana mais acima de Agamêmnon, em cuja arrogância e cegueira se manifesta uma exuberante vaidade.

Aquiles precisa, então, restituir sua superioridade sobre o demasiadamente humano Agamêmnon. De fato, no frigir dos ovos, o Átrida obriga-se a admitir a sua inferioridade perante o semideus, suplicando o perdão do guerreiro supremo e reconhecendo a dependência da força aquílicaxxii e a própria arrogância (“[...] mutuamente nos ferimos. Eu comecei”xxiii).

A desmedida que caracteriza a humanidade de Agamêmnon é dominada, portanto, pelo poder magno de Aquiles –este que tem a prerrogativa da participação no divino. Poderia essa imagem dar azo à idéia de que ao divino cabe sempre o restabelecimento do domínio sobre esse resquício de caos que pulsa na desmesura e no desacordo do homem? No decurso da Ilíada, Aquiles acaba por fazer prevalecer sua superioridade sobre Agamêmnon e Heitor, aqueles que mexeram com a sua timéxxiv, perfazendo a restituição do seu lugar próprio, o lugar sempre altivo da superioridade divina do mais excelente dentre os melhores.

A tarefa da restituição, portanto, não é para muitos: não é acidental que as qualidades de Aquiles sejam únicas em meio às dos incontáveis hoplitas. Ele é o bom strategós – sabe esperar, jamais claudica e quando se levanta, é implacável; por outro lado exibe, de forma surpreendente, um delicado refinamento no caráter e no discursoxxv.

O guerreiro entre a guerra, a morte e o destemor

A glória do melhor dos guerreiros não se sustentaria sem um empenho incansável, fluente, e nem se não estivesse sempre no encalço do télosxxvi da obra glorificada e finalmente perfeita – no sentido daquilo que finalmente se perfaz. Essa glória é o ápice dos duros trabalhos da guerra, isto é, uma saciedade que é necessariamente frutificada de um labor: a guerra, nesse sentido, é tão boa quanto má, porque é só mediante a batalha atroz que a honra e a glória coroam o herói. 

       E, de fato, observamos Aquiles entregando-se de bom grado ao seu destino, decidindo mover-se, nos domínios do tabuleiro homérico, no sentido da glória e para a morte. Fora a própria Tétis, divindade marinha e mãe de Aquiles, quem comunicara ao filho as suas duas únicas escolhas possíveis: a vida longa e pacata das ovelhas ou a brevidade da vida que cumpre e plenifica a obra que precisa se efetivar. 



Ora, ao preferir justamente a luta à frouxidão de ânimo e ao retorno a Ftia, Aquiles sabe que a aceitação pacífica da própria humanidadexxvii – a vida corrente e adormecida para a qual a guerra é um fardo a ser refugado – só posterga a batalha. É neste exíguo ponto que o guerreiro se distingue radicalmente do homem médio, cujo lugar comum é sempre a fuga do elmo e da couraça, e não à toa, pois a guerra é mesmo só para uns poucos; é muito doloroso o que se vê ali. 

        As netas da Noite, filhas de Éris – Olvido, Dores, Massacres, Disputasxxviii – vicejam tanto no poema quanto em meio aos homens porque a guerra é sempre má, atroz, é o flagelo e o estrago-de-homensxxix, diz Homero; em contrapartida, Ájax fala da “alegria da guerra” e Paris lança-se à luta exultante, como também o fazem Diomedes e o próprio Aquiles. A guerra e a vida, sob esse aspecto, compartilham a ambiguidade da violência no sentido de que quanto maior o desafio, maior é o guerreiro que o enfrenta, e a melhor possibilidade nesse seu arco da strategía é a medida precisa do strategós que não precisa pensar para agir, como Aquiles com toda o seu frescor e velocidade sobre-humanos.


Da mesma forma, cabe ao bom guerreiro – como também ao filósofo, dirá Sócrates mais tarde – um corajoso convívio com a iminência da morte. Afinal, mesmo que os versos não revelem diretamente, Homero não deixa que o leitor se esqueça de que a brevidade da vida de Aquiles está pulsando a cada linha: sob esse ângulo, o valor mais suntuoso do guerreiro parece estar, de fato, na lembrança e no destemor da morte e do desconhecido – o que parece se traduzir na maior destreza de todas. 

Aquiles não é um suicida (veja-se a sua brava resistência ao rio Xantoxxx), mas também não hesita em enfrentar a morte inelutável; ao contrário, ele a encara fresca e ardentemente ao invés de decidir-se pela vida comum – na qual a desmedida preponderante é o medo da guerra (como obra) e o esquecimento da morte, isto é, da própria vida. Destarte, ao entregar-se à morte na guerra pela restituição da honra e da justiça, Aquiles encarna a chance da mobilidade para fora do lugar do erro e do desacordo tão próprios à condição humana. 




        A elevada posição dos degraus que o herói ocupa nessa escala da humanidade exalta a própria relação de oposição com o lugar naturalmente medíocre do homem, e então medo, esquecimento, cegueira e desacordo contrastam magnificamente com as áureas qualidades dos bons: intrepidez, lembrança, visão e audição, traduzidas na indizível superioridade que os mantêm nos píncaros.

A escolha pela morte certa e iminente, isto é, o destemor diante do desconhecido imensurávelxxxi é, ao que parece, a justa medida do mais hábil guerreiro e a maior excelência de Aquiles. Ora, se é assim, o esquecimento da morte em que recai o homem comum só pode ser, em contraste, reflexo do puro medo daquilo que se desconhece completamente, medo que mantém os homens entretecidos na ilusão de um pretenso saber e de uma pretensa independência daquilo que misteriosamente os transcende – o que parece ser concorde com Heráclito, que “(...) diz ser o cosmo, para os acordados, uno e igual, enquanto dos que estão deitados, cada qual se volta para seu cosmo particular”xxxii.

De qualquer modo, no contexto da Ilíada o descomedimento dos homens manifesta-se sempre como uma ofensa ao divino; o rapto de Helena (isto é, a violação da sagrada lei da hospitalidade) e as ameaças de Agamêmnon ao sacerdote de Apolo (a megalomania do rei que pensa igualar-se aos deuses) são os exemplos mais pujantes. Percebe-se, em contraste, a virtuosidade máxima da justiça, do remédio, porque enquanto a desmedida que se manifesta como injustiça faz o homem adormecer na ilusão de uma pretensa independência dos deuses, a perícia na medida abre à participação nos valores divinos. 

No entanto, esse tomar parte – enquanto possessão do homem pela divindade – nunca aparece como algo facilmente realizável. Para a tradição de pensamento grega, a participação nas augustas ordens divinais é natural e testificável, mas apenas para certos sacerdotes, poetas, iniciados e pitonisas – cujo papel não é secundário na tradição – capazes de tomar parte em um delírio extraordinário e divino, possuídos por palavras e sentimentos indescritíveis que não poderiam brotar da sua humana idiotiaxxxiii

O próprio Homero exibe claramente a sua parte ao suplicar às Musas: dizei através de mim, porque eu próprio não poderia dizerxxxiv. E Aquiles, enquanto guerreiro cuja excelência não está apenas na destreza, mas na justiça e na superioridade do temperamento, também contrasta (tanto quanto os aedos e pítias) com o homem radicalmente alijado da divindade, este que em nada se assemelha à raça cuja humanidade era banhada a ouro e que se mantém, desgraçadamente, apartado da chance do delírio e da possessão. Afinal, a crer em Hesíodo, a característica primordial da raça de ferro é um radical exílio do divino, isto é, uma estadia perene do homem na idiotia e na errância tão intrínsecas ao humano.




Ora, se o bom para os viventes é o que lhes dá capacidade de realização máxima, não é a vida corrente e comum que proporcionará essa realização: a obra é mais importante do que o apego à vida, e Aquiles efetiva essa justa avaliação ao entregar a vida para a obra. E embora a hýbris, a desmedida de Aquiles no que se refere à violência leve-nos a considerá-lo uma verdadeira besta, seu princípio (i.e., a sua arché) é sempre a medidaxxxv ou a justiça (a ira de Aquiles é a mesma de Apolo, ambos sedentos pelo triunfo sobre o feito injusto), e é por ela que ele oferece a sua vida e a sua morte. 

      O caráter intensamente trágico da Ilíada manifesta-se, por conseguinte, no fato de que a morte está no pescoço do semideus como uma segunda pele e o seu maior valor, não obstante, é um autêntico e destemor diante do desconhecido – o que parece ser de fato a aguda ponta da flecha iliádica: o caminho ideal do herói é sempre um fio de navalha especialmente cortantexxxvi entre a coragem e o que não se espera nem imagina.


 Se a honra e a excelência modelar do homem-medida são a glória épica do que fica dito e é digno de ser redito, o que parece nunca ser esquecido no poema é a trágica ideia de que o que se compõe com a vida, o tempo todo, é a mortexxxvii, e que a questão da medida da relação direta entre o caráter justo ou injusto da intenção humana e a proximidade ou afastamento daquilo que é tido como divino, áureo ou modelar manifesta-se não apenas como fio condutor da poesia homérica e hesiódica, mas principalmente como problema humano par excellence.



***



i Revisado por André Luiz Braga da Silva.
ii HESÍODO. Os Trabalhos e os Dias, v. 156-160. Tradução: Alessandro Rolim de Moura Curitiba: Segesta, 2012.
iii Ibidem, 118-119.
iv HOMERO. Ilíada, Canto I, v.126. Aquiles manifesta seu desagrado quando Agamêmnon anuncia que pretende tomar uma das mulheres dos guerreiros (conquistadas como espólio de guerra) para compensar a perda de Criseide.
v HOMERO. Ilíada, Canto I. V.218. AIlíada revela uma forte característica da cultura grega:os deuses confundem-se fortemente com a natureza. De cara, salta aos olhos o intenso protagonismo poético da natureza, que, incrivelmente, transpira discursos justamente ao vira ser o que é; note-se no poema as similitudes que aproximam (com grande riqueza literária) o humano e o natural. O seu caráter mágico manifesta-se com tal pujança que o encontro entre essa ideia de natureza divina e o nosso moderno espírito, tão instrumentalizador e utilitário, é sem dúvida chocante. A natureza não é plano de fundo, mas porta discursos que não se distinguem da própria carne divinal, já que ela não existe à parte, como objeto, mas sim na vivacidade do todo .
vi Não queremos, com isso, deixar de lado a questão da hýbris própria dos heróis que protagonizam as tragédias e poemas épicos gregos, Aquiles inclusive. Nesse ponto, seguimos Leite (Cf. LEITE, Isabela Fernandes Soares. Criação, Hybris e Transgressão na Mitologia Heróica. Anais do XVIII Congresso da AJB. Curitiba-PR, 2010), que entende que a hýbris é a transgressão que resulta da canalização de forças divinas e que possibilita a renovação e a criação. Buscamos aqui afastar-nos de uma leitura maniqueísta (Cf. nota 18) que retire a desmedida do caráter de Aquiles, apenas propondo, ao contrário, que há diferenças qualitativas entre a hýbris de Aquiles e de Agamêmnon. Defendemos (embora não haja espaço para tal defesa) que a desmedida como consequência da restituição da justiça, em oposição à desmedida enquanto resultado do desejo pelo prazer individual, deixa de ser um descomedimento (enquanto resultado de uma afetação ou impudência) para se tornar a própria medida legítima e imprescindível à reparação da injustiça pelo herói. Quanto a isso seguimos Junito Brandão, em relação a Hesíodo: “Lendo-se com atenção o que diz Hesíodo acerca dos heróis, nota-se logo que os mesmos formam dois escalões: os que, como os homens da idade de bronze, se deixaram embriagar pela hýbris, pela violência e pelo desprezo pelos deuses e os que, como guerreiros justos, reconhecendo seus limites, aceitaram submeter-se à ordem superior da díke (justiça)” (BRANDÃO, J. Mitologia Grega. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 176. Vol. I). Cf. também a tragédia de Ésquilo, Os Sete contra Tebas.
vii A areté é a “virtude” no sentido propriamente grego de excelência e de perfeição ou cumprimento do propósito a que algo ou alguém se destina.
viii Falta que também se manifesta, em menor medida, mas de forma igualmente fundamental para a poíesis aquílica, na distância da amante e na saudade do pai.
ix Em Homero, como na cultura grega de modo geral, o divino não é só o que se traduz para o homem como o agradável; contenda, batalha e disputa são deusas (o que é surpreendente para o pensamento judaico-cristão). Deuses que pregam peças nos homens e que se fantasiam à vontade das formas mais inusitadas e fantásticas parecem carrear consigo a ideia de que todo acontecimento é divino, não no sentido de uma sempre longínqua e perene providência, mas de que as divindades literalmente aparecem nos acontecimentos e estão também à mercê do temperamento, na palavra e na ação. Cf. frase atribuída a Tales, “tudo está cheio de deuses”. (ARISTÓTELES, De Anima, A 5, 41 1a7-8).
x Ibidem. Canto I. v.149.
xi Ibidem. Canto I. v.178.
xii Ibidem, Canto I, v152-153 e158-160: “Até aqui não vim guerrear os Troianos / Lanceiros excelentes. Não me queixo deles (...) /Sem–Pudor, olho-de-cão, viemos / Seguir, satisfazer, salvar a honra em Troia, /E a Menelau. Não cuidas disso, não te ocorre”.
xiii Ibidem, Canto I, v. 347-348: “E os dois, de volta, junto /às naves – e a mulher a contragosto – vão”.
xiv Ibidem, Canto I, 319-325: “Agamêmnon insiste na discórdia e chama/Euríbates, Taltíbio, e a ambos, seus arautos,/Prestimosos acólitos, ordena: “Ide/À tenda do Peleio Aquiles; pela mão/Tomai Briseida, belo rosto. Se por bem/Não lhes for dada, eu próprio a tomarei, eu com/Meus homens: isso vai-lhe dar mais calafrios!”
xv HOMERO. Ilíada, Canto I, v. 181.
xvi Homero assim descreve a ingenuidade de Alastóride Trós,que suplica pra que Aquiles o poupe da morte:/“(...)Tonto! Não sabia /Que o herói não/lhe daria ouvidos; não era homem/De coração-de-açúcar, compassivo de ânimo,/Mas tomado de fúria. Abraçava-lhe os joelhos,/Súplice. Mas Aquiles, no fígado, enterra-lhe/A espada e o extirpa; sangue negro o peito inunda-lhe(...).” (Canto XX, v. 466-472).
xvii Ibidem. Canto XXIV, v.507-508.
xviii Ibidem,Canto I, v.80-84: “Furioso contra um fraco um rei se excede em força:/Se no momento engole a cólera e a cozinha,/Perdura-lhe o rancor, até que se sacie,/Concentrado no peito. Diz que me proteges”.
xix Note-se como Agamêmnon e Aquiles são tipos que transitam, embora em níveis diferentes, pelo jogo de oposições que definem suas personalidades caleidoscópicas; qualquer interpretação pretensamente maniqueísta dessas figuras seria rasa e improfícua, assim como o seria no tratamento da relação entre pureza e impureza no contexto mitológico grego. Para isso, Cf. VERNANT, J.P. 1999. Mito e Sociedade na Grécia Arcaica. Rio de Janeiro, José Olympio, P 110: “Há, ao lado do sagrado essencialmente puro, um sagrado radicalmente impuro. Aliás, não há deuses do sagrado puro, e outros do sagrado impuro. Os mesmos deuses, segundo as circunstâncias e os lugares, reinam sobre as máculas ou sobre as impurezas (...). É o mesmo Apolo quem cura e quem causa a doença, quem purifica e que macula. Esse duplo aspecto (...) traduz a presença, no divino, de duas qualidades opostas, experimentadas como complementares”.
xx “Sensatez”, “prudência”, “compreensão”.
xxi Poíesis é o substantivo que denota a ação relativa ao verbo poieîn. Portanto, ao passo que poieîn significa “fazer”, “executar”, “produzir”, poíesis significa “execução”, “produção”, e, num sentido mais específico, “produção literária” ou “poesia”.
xxii Ibidem, Canto II. 379-380: “(...)se “[...] nos unirmos, Troia nem por um átimo terá descanso.”
xxiii HOMERO. Ilíada, Canto II. V.378-379.
xxiv “Honra”, “valor”, “dignidade”.
xxv Disso, aliás, a guerra na Iliada é plena: sobeja o contraste extraordinário entre os requintes de crueldade e de cavalheirismo; diálogos respeitosíssimos se dão entre adversários prestes a matarem-se e discursos incríveis, cheios de genealogias valiosas, são pronunciados no entretempo de um ataque e outro. De fato, tamanha reverência à honra é de saltar aos olhos. O espelhamento homérico e a questão da medida aí se refletem todo o tempo, uma vez que o respeito ao valor da honra do opositor é vertebral tanto na ágora humana quanto na divina.
xxvi No sentido mais amplo do que leva “(...)à plenitude. (...) Com muita frequência, traduz-se télos por “fim”, entendido como meta, e também por “finalidade”, entendida como propósito, interpretando-se mal essa palavra grega”. InHEIDEGGER, Martin. A Questão da Técnica. In: Ensaios e Conferências.Petrópolis: Vozes, 2002, p.14.
xxvii Veja-se, sobre isso, o Fr. DK 29 de Heráclito: “Uma só coisa dentre todas as outras escolhem os melhores, a glória eterna dos mortais; a massa está empanzinada como os animais”.
xxviii Cf. HESIODO, Teogonia. Trad. J.A.A. Torrano (com modificações). São Paulo: Iluminuras, 1995.
xxix HOMERO. Ilíada. Canto XIV, v.43.
xxx O rio Escamandro (o seu epíteto Xanto significa “louro, avermelhado”) é mais importante deus-rio de Troia. Farto pelo excesso de cadáveres mortos por Aquiles, quis lutar com o herói, ameaçando afogá-lo.
xxxi Veja-se, a título de exemplo, o discurso de Idomeneu: “Furta-cor, o vil/Muda sempre de cor; trêmulo, o coração/O infirma e faz dobrar o joelho; ora num pé,/ora noutro recai; palpita forte o peito,/Ao pressentir a Moira (...)” (Canto XIII, v. 278).
xxxii Conforme fragmento DK 89 de Heráclito, in COSTA, Alexandre. Heráclito:Fragmentos Contextualizados. RJ: Difel, 2002, p.137.
xxxiii A palavra “idiotia” é aqui utilizada no sentido estrito do termo grego ídios (“individual”, “privado”).
xxxiv E também em Hesíodo: “Musas um dia a Hesíodo ensinaram belo canto quando pastoreava ovelhas ao pé do Hélicon divino.(Cf. TORRANO, J. A. A.O conceito de Mito em Homero e Hesíodo. In: Boletim do Centro de Pensamento Antigo – Revista de Estudos Filosóficos e Históricos da Antiguidade, no. 4 [1997], p. 29).
xxxv Cf. nota n. 5.
xxxvi Cf. HOMERO. Ilíada, Canto XXIV, v. 525-526:“Assim os deuses urdem o fadário dos infaustos mortais: um viver agoniado (...)”.
xxxvii Em muitos momentos encontramos o princípio de ambiguidade (tão caro a essa tradição poética e trágica) traduzido nas formas literárias de Homero; sem dúvida, a mais eloquente dessas imagens é a da ambiguidade do lugar ocupado pelo herói homérico, nesta sua medida muito equilibrada de proximidade e de afastamento de ambos os domínios, já que ele é a um só tempo semideus e semi-homem. 


Obs.: As imagens aqui postadas, são representações da obra Ilíada feita por artistas clássicos, e foram retiradas da internet para ilustração, sem finalidade comercial.


                                                       ***


*Yasmin Tamara Jucksch possui bacharelado e licenciatura pela Universidade Federal do Paraná desde 2012, e é mestranda na área de Filosofia Antiga na Universidade Federal Fluminense. Atualmente é professora de Filosofia pela Secretaria de Estado de Educação do Paraná.

1 comentários:

Francisco Cezar de Luca Pucci disse...

Comentar um trabalho dessa profundidade e rigor em poucas palavras seria cometer uma injustiça imperdoável pelos deuses. Limito-me a parabenizar a autora e a ensejar que outros trabalhos sigam-se a esse. Afinal, como já afirmou Campbell, o mito é mais verdadeiro que a História.

30 de novembro de 2015 às 12:47

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