sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

Não há nada mais perigoso do que escrever madrugadas



Olho para os três macacos do meu pai. Vou copiar Photomaton & Vox. Olho para os três macacos: tenho chumbo nos olhos – e os fios da cabeça como pregos enterrados no crânio e as mãos cansadas e a coluna em esquina. Não há nada mais perigoso do que escrever madrugadas. Noto que as coisas estão distantes e que o ventilador – atrás de mim – sopra com a mesma força antiga dos ventiladores ancestrais. O som chuvoso das hélices de plástico, o sopro enternecedor dos motores cobertos de pó, a casa grande da minha infância – a interminável casa grande dos dias passados em correria, na varanda larga como duas varandas, no jardim ou atrás do galpão, vendo peixes de bigode dançando rabadas na caixa d’água do jardim. E o meu avô – que eternamente estará como uma vista arbórea naquelas tardes. Não há nada mais perigoso do que escrever madrugadas. Os pássaros verdes, os macacos da matinha e o sexto de brinquedos. Se pudéssemos, compraríamos ainda um pão com salame e partiríamos em dois e comeríamos com a soberania dos que saboreiam a última refeição, mas encolemos e o balcão é alto demais e o sabor se perdeu entre os afazeres diários – no ruído constante das coisas que moram dentro e afagam inúteis os planos futuros. Pudéssemos, jantaríamos ainda vendo um qualquer na TV suspensa. Pudéssemos, seria leite em lugar de café, seria ação em lugar de fé e joelho no chão da calçada. Um pião de cabiúna – lançado sem dó – de finco na ponta e feito no torno. Seria a Darkinha viva, os gelados da Dora, as pizzas de nunca em nunca. Seria misto-quente em lata unitária, mexido de mãe e o mercadinho de tudo. Não há nada mais perigoso do que escrever madrugadas. Antes do corredor – antes daquela casa – antes dos meus irmãos. Quase não me lembro do mundo. Quase não quero me lembrar. Não faz vontade, entende? Tinha um porquinho da índia, cenouras – eu me lembro das cenouras – um jardim – sempre houve um jardim – morangos, uma calha enorme para o meu tamanho e carros de minério. A rua de baixo e a escolinha – tão Inha que fico de drama quando penso – tão Inha que navego a vista só de pensar. E Pasteis e guaraná nos intervalos. O trilho do trem perto da rodoviária. O rio das velhas. Os túneis fantasiados do morro velho. E quantos desabamentos, meu Deus. E aquela professora que tirou lascas de um batom querendo me convencer que eram comprimidos. E a minha resistência eterna em permanecer nas escolas, nas salas, nas aulas. E depois – já com eles – a vida era mais viva e cheia de vicissitudes. Cheia de arvores e lugares inexplorados e esbarrões e ralados e ferpas. Não há nada mais perigoso do que escrever madrugadas. Agora há pouco um barulho fingiu presença no portão que dá para rua. Fingiu porque não conferiram e não conferiremos. Fingiu porque a temperatura tem dessas mentiras em casa de madeira – o calor tem dessas tramoias. Todos estão dormindo – todos dormem. Um grilo reza o hino verde dos insetos que sonham folhas, as formigas marcham relatando os pingos da chuva que não caiu e não cai, os morcegos assoviam e as corujas observam e as janelas estão fechadas e as luzes estão acesas e os reflexos estão armados e os olhos não podem ver. A rua inteira é uma riacho de murmúrios calmos na mansidão escura e não há nada mais perigoso do que escrever madrugadas. Os caros repousam sua existência de rodas, as bicicletas ausentam-se, as carroças ausentam-se, as charretes ausentam-se e os burros e cavalos e afins. Hora ou outra passa alguém – movido por obrigação ou cachaça – e berra duas meias de palavra ou cala e passa como soldado para guerra. A ponte não mudou. O mercado e a colina estão em pausa. E as coisas todas parecem compor o mundo estrangeiro dos retratos na vista interna e emoldurada das fotografias. Que habito incomum tem a bigorna na forja da noite - esculpindo coisas vivas na pedra amorfa da realidade. Estala o teto e os vidros no quarto. Blefe das curvas sem temperamento. O ventilador gira com alguma dificuldade. É melhor apagar a luz – é melhor me levantar e apagar a luz e me deitar no escuro. É melhor assim. Correm já mosquitos pelo tempo e mesmo o grilo parou de cantar. É melhor apagar a luz. Não há nada mais perigoso do que escrever madrugadas.

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