quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

NÃO MORRERÁS



       Nesta segunda-feira, dia 30 de dezembro de 2015, à tarde, em entrevista exclusiva ao jornal Estado de São Paulo, Charles Cosac anunciou que era morte. Que o desejo simples e puro não seria o suficiente para manter os olhos vivos. Ao meu lado, Tolstói, pasmo como eu, naturalmente pacífico, ficou inquieto. Ele que já estava em domínio público e ainda assim virou best-seller da casa pelo trato que teve, pelo gosto e pela capa e o trabalho e mais e... 
        Todos os funcionários souberam da notícia.
      O mundo se fez em Tunga e em Tunga acabará. No jardim das minhas flores, a rosa mais profunda sentiu - suspiro pesado como terra - o corpo de todas as apreciações emolduradas e a expectativa das entregas ocasionais de um livro gestado, a lembrança fortuita do desenrolo e as camadas borbulhantes do toque fresco na neurastênica angústia e na febre tênue da espera. E agora, 
        sinto-me irremediavelmente ausente.
       Junto dos filhos poucos que tenho dessa mãe de quase vinte anos, zelosa e coberta de caprichos. Todas as maravilhas de uma experiência física e espiritual nas impressões e além do que guardam as impressões residirão intocadas e cobertas de virtude. Porque ela se tornará Inês e conhecerá a morte antes da decadência - há de se tornar rainha muitas vezes pelo amor dos Pedros que a bem quiseram e pela lembrança dos filhos. Para que a noite jamais lhe encontre, a morte lhe foi dada. Um último presente do criador. Que a não queria ver devorada pela fome ou corroída pela enfermidade. De Steinbeck, a estrada de George para Lennie – ao fim de todas as coisas. Antes do entardecer, um coup de grâce para celebrarmos o paraíso. Não me ocorre, no entanto, de quem é o direito – se há direito. 
       É que já tínhamos um pé naquele coração 
      e o sentimento esculpido de que lutamos numa guerra absurda – que tomamos por armas os dentes e as unhas - que aceitamos por defesa o peito e a pele – que, como nas palavras de Florencia Ferrari ao Brasileiros, “a gente fez tudo o que pôde e não conseguiu”, surge parecendo, pelo campo de batalha, um passeio em busca de flores improváveis. A tristeza medonha de não encontrar um ramo verde no chão regado de carmim, entre arvores altas de copas fechadas e coralinas, buscando frutos acerejados sem perceber as sementes pela estrada. 
     Tenho a sensação de que morávamos todos juntos na Casa das Minúcias, no Palácio das Minudências, em cada detalhe de cada ponta e em cada projeto milimetricamente elaborado. Convivíamos no gosto pela excelência e o nosso nome era aquela dedicação iluminada que o seu caminho perseguia. Foi por não pensar no mal que acabamos por viver tão pouco, mas seria ainda pouco – fosse ainda mais, fossem muitos anos, fossem décadas a mais ou séculos ou milênios. Seria sempre muito pouco. Será sempre pouquíssimo para o que é notável. Um oásis no largo deserto de buscar e ter e ganhar - no amor pelas coisas belas - onde há engenho e arte. 
       De fora, alguns falam sobre a irresponsabilidade. Que diabo sei eu disso? O peso sobre os ombros de quem carrega parecerá sempre menor aos olhos do passante. É verdade que a lambada talhou fundo e, para mais que Urano, feriu Gaia e sua prole. É verdade também, Charles, que cabe a você a licença de puxar as cortinas e encerrar o espetáculo, mas, concordamos todos com o apelo de Noemi Jaffe, a verdade é que “a gente ama a Cosac”. Queremos a volta, por cima ou outra, mas que seja Permanecer. Caso tudo siga como parece, caso nenhuma prece seja capaz de afastar o declarado, que a ideia ressurja encarnada e que uma Geração Cosac Naify ganhe espaço - impulsionada pelo tsunami que a queda anunciada causará, porque, se o mundo cair, nós que aprendamos a levantá-lo, mas, mesmo que seja repouso, ainda que por vontade, o melhor seria que não houvesse queda. 
      Fica o Azevedo como um marido recém-casado que, ao ganhar o primeiro filho, perde a esposa. O Tunga, feito um homem rouco de vícios num bar em delírios – esperando a dose que fecha o momento, os olhos, o estabelecimento e a noite. Ficamos todos estáticos. Fica essa crônica sujeita a mil e seiscentos títulos diferentes e, para reerguer a fortaleza, finca-se, na hora disforme das pedras espalhadas nesse tempo de recolher, a mais incerta convicção, a mais enternecedora de todas as bofetadas – no intuito de avivar, animar e excitar bochechas, palmas e mãos. Fita-se o negrume sinistro do escape mais impensado e caliginoso. Firma-se o trato das viradelas na girata moribunda dos negociantes incrédulos. Fisga-se, no lago de Caronte, a ressurreição, aguardando que os corações em uníssono batam no momento da despedida e que o pulso em eco, voz distante e cavernosa, siga proferindo com firmeza, esperançosamente: não morrerás!

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