PRESENÇA
Ela apertou os dedos, nervosa. A boca seca.
Olhou-se no espelho. Os cabelos escorridos, os olhos enorme, fundos. Onde
estava a bela moça que tinha sido? A menina inteligente, sempre rodeada de
amigos, a alegria da festa?
Pela milésima vez, olhou pela janela. Dali
podia ver a torre da Catedral, a Universidade Federal do Paraná, o Teatro
Guaíra. 12 andares… e um único vôo, fatal.
Sempre fora medrosa... alguém um dia lhe
convidara a saltar de paraquedas e ela na hora disse não. Tinha verdadeiro
pavor de altura, mas agora não sentia medo. Seria apenas mais um passo e
depois, nada mais.
O que era a morte, senão uma solução? Se
isso era a vida, então ela dispensava, obrigada. Quantos dos que ela amava já
se tinham ido? Talvez fosse encontrá-los agora...
Da vida o que levaria? Sonhos, só sonhos
mal realizados ou nem sequer realizados. Quisera um dia ser atriz e mais do que
isso, tinha talento, sabia que tinha. Por toda a sua vida, como uma vingança,
representara. Ninguém, com exceção de sua mãe,
tinha conhecido a sua verdadeira
personalidade. De sua mãe nada poderia
esconder. Da mulher de quem herdara os olhos grandes, profundos, olhos
verdadeiros.
A mulher que sem ter estudado, que mal sabia assinar o nome, era sábia como poucos. A mulher, que tendo nascido humilde, era altiva como uma nobre, esbanjava elegância, mesmo vestidaem trapos. Lágrimas
pesadas vieram-lhe aos olhos ao lembrar-se da mãe.. a mãe que há poucos meses
se fora, deixando-a sozinha. Pôr que, mãe, por que me deixou?
A mulher que sem ter estudado, que mal sabia assinar o nome, era sábia como poucos. A mulher, que tendo nascido humilde, era altiva como uma nobre, esbanjava elegância, mesmo vestida
Há alguns anos perdera o pai, num acidente
de ônibus, o pai, que viajava a semana toda para o interior, vendendo vassouras
e nos finais de semana ficava com ela, sentado na cozinha, um copinho de pinga
do lado e a voz mansa, tranqüila, a contar coisas da juventude. Como ela amara
aquele pai. Como fora feliz com os dois.
A avó também vivia com eles, forte e
alegre, sempre cantando, sempre vaidosa. Com quase oitenta anos, ainda pintava
o cabelo de negro azulado e usava sempre um perfuminho. A avó se fora primeiro, num dia qualquer. Sem avisar, sem
sequer um aviso. No dia anterior ainda
estiveram juntas, ela sentada na beirada da cama, a avó deitada, sorrindo
tranquila, a dizer-lhe (o que sempre dizia) “filha, você precisa arrumar um
namorado”. Ela fora dormir tarde, pensando no conselho da avó. A verdade é que
não tinha sorte para namorados. Os que se aproximavam, ou eram muito imaturos,
ou eram muito espertos, só queriam um casinho.
Fora trabalhar mais cedo naquele dia, tinha
muito serviço acumulado no banco. Às cinco horas, o telefonema, dizendo que a
avó havia falecido. O choque. Brutal. Saíra rápido do banco, após explicar ao
chefe. Não chorou naquele dia. Nem nos seguintes. Mas, dois anos depois, ao lembrar-se
da avó, chorava. Quase todos os dias, na cama. Soluçava de madrugada, sentindo
a saudade doída, saudade vital, saudade que lhe corroía a alma. Amava a avó. E
ela se fora. Todos se foram, com o tempo. Só ela restara.
Todos os dias, ao voltar para casa,
encontrava um silêncio perturbador. Não mais o canto suave da avó: "Eu vou
embora para onde a lua vai, a lua vai e volta, eu vou não volto mais..."
Nem o barulho da mãe na cozinha, fazendo os quitutes que ela apreciava. Era um
silêncio traiçoeiro, só o ruído da
própria respiração. Num arroubo de desespero, ligava tudo, a TV, o rádio, o
chuveiro. E acendia todas as luzes. Não de medo, mas para iludir-se que havia
mais alguém. Há quase dois anos vivia assim. Agora era hora de acabar com isso.
A vida nada lhe dera. E o que lhe dera, o pai, a mãe, a avó, lhe tirara cedo
demais. Ainda não estava preparada para
ficar só. Odiava a solidão.
Um colega disse que ela devia arrumar um
bichinho de estimação. Ela seguira o conselho e um dia, saindo mais cedo do
trabalho, entrou num aviário e comprou um gato. O gato era lindo, com a beleza humilde dos
que desconhecem a palavra beleza e o seu significado... Era de uma beleza
etérea e de uma altiva alegria,
companheiro amoroso, silencioso e presente.
Quando o comprou já tinha ele dez meses, e
o dono do aviário comentara que com essa
idade já era difícil para vender, as pessoas preferiam animais mais jovens. Mas
ela gostara do bicho e o levara imediatamente para casa. Providenciara uma
caixa com areia, um pote de ração e água fresca. Por último, escolhera o nome.
Amigo. Ele a olhara profundamente, os grandes olhos azuis... Sim, havia gostado do nome. Durante alguns dias, tudo correra bem. Ela saía apressada do banco, o ônibus lotado, sempre com os espertinhos querendo se encostar. Suportava tudo com humilde alegria, pois sabia que alguém, em sua casa, a esperava. Chegava já chamando o gato, que respondia com um miado sonoro e forte. Miado alegre de saudade. E ficava o tempo todo a seu lado, contente da sua presença.
Amigo. Ele a olhara profundamente, os grandes olhos azuis... Sim, havia gostado do nome. Durante alguns dias, tudo correra bem. Ela saía apressada do banco, o ônibus lotado, sempre com os espertinhos querendo se encostar. Suportava tudo com humilde alegria, pois sabia que alguém, em sua casa, a esperava. Chegava já chamando o gato, que respondia com um miado sonoro e forte. Miado alegre de saudade. E ficava o tempo todo a seu lado, contente da sua presença.
Aos poucos, fora recuperando a alegria de
viver com a ajuda de Amigo. Vivera com ele e para ele. Mas ninguém lhe avisou que gatos gostam da perigosa liberdade da
rua. Principalmente gatos machos, que movidos pelo instinto milenar da caça,
gostam de sair a se aventurar. Pois um
belo dia seu Amigo escapara pela janela, que ela esquecera entreaberta e ao
tentar atravessar a rua fora atropelado,
a cabeça marrom despedaçada, os belos olhos parados para sempre. Antes que
entrasse em casa sua vizinha lhe dera a
notícia e num arroubo de bondade recolhera o pobre animal, deixando-o numa caixa.
Ela pegara a caixa, o coração arrebentando de dor, a sensação de ter sido traída novamente, de que algo que amava lhe fora arrancado para sempre. A revolta. A dor. Somente quem já teve algum animal de estimação e o perdeu tragicamente conhece esse terrível sentimento de perda. Porque animal ama incondicionalmente. Sem fazer distinção.
Ela pegara a caixa, o coração arrebentando de dor, a sensação de ter sido traída novamente, de que algo que amava lhe fora arrancado para sempre. A revolta. A dor. Somente quem já teve algum animal de estimação e o perdeu tragicamente conhece esse terrível sentimento de perda. Porque animal ama incondicionalmente. Sem fazer distinção.
Então, cumprindo um doloroso ritual, enterrou o
animal sob o limoeiro. Lembraria sempre dele, mas não o substituiria
nunca. Só sabia que perdera de novo. Mais uma vez. E estava de novo sozinha no
mundo...
Mas isso era passado. Agora, nada mais interessava. Queria ela a
liberdade. E a teria. Se fosse preciso se matar para obtê-la, assim seria.
Olhou novamente a paisagem. Era uma bela cidade. Ali nascera e se criara. Fora
tão feliz...
Já passava das dezoito e trinta, mas o sol
ainda brilhava. Olhou de novo pela janela. Ficara de propósito após o
expediente e subira até o 12.º andar para dali saltar. Saltar e esquecer. Tudo
pensado, repensado e decidido. Entrou
novamente no banheiro, para se olhar no
espelho. Um trapo humano. Era o que restara dela. Não mais uma pessoa, mas uma
sombra. Em breve o corpo não existiria, a vida não existiria, ela seria apenas
uma lembrança.
Para o dia de sua morte escolhera uma roupa sóbria. Um conjunto cinza-claro, elegante e discreto. Colocara no dedo o anel que havia ganho no aniversário de quinze anos e no pescoço a correntinha de ouro, com uma medalhinha de Nossa Senhora que sua avó usara até o fim. Para morrer, não é preciso estar muito alinhada, pensou. Porém, num gesto inútil de vaidade, abriu a bolsa e tirou um batom marrom, discreto como tudo o que usava e pintou os lábios.
Para o dia de sua morte escolhera uma roupa sóbria. Um conjunto cinza-claro, elegante e discreto. Colocara no dedo o anel que havia ganho no aniversário de quinze anos e no pescoço a correntinha de ouro, com uma medalhinha de Nossa Senhora que sua avó usara até o fim. Para morrer, não é preciso estar muito alinhada, pensou. Porém, num gesto inútil de vaidade, abriu a bolsa e tirou um batom marrom, discreto como tudo o que usava e pintou os lábios.
Olhou novamente o relógio. Quase sete
horas. Voltou para a janela. Pensou em pular imediatamente, mas o computador em
que estivera trabalhando ainda estava ligado. Então, cuidadosamente, o
desligou. Guardou os relatórios na pasta, pois provavelmente necessitariam
desse material no dia seguinte e ela não estaria mais ali.
Não, não queria dar problema. Sempre fora uma funcionária eficiente e não era porque iria se jogar pela janela que iria deixar tudo desorganizado. Fechou as gavetas da mesa e respirou fundo. Lá embaixo, na portaria, o Seu Valdemar já havia entrado. Era o vigia da noite. Quase todos os dias saía depois das seis e se despedia do homem. Era um senhor simpático e educado. Mas, nesta noite não haveria despedidas...
Não, não queria dar problema. Sempre fora uma funcionária eficiente e não era porque iria se jogar pela janela que iria deixar tudo desorganizado. Fechou as gavetas da mesa e respirou fundo. Lá embaixo, na portaria, o Seu Valdemar já havia entrado. Era o vigia da noite. Quase todos os dias saía depois das seis e se despedia do homem. Era um senhor simpático e educado. Mas, nesta noite não haveria despedidas...
Levantou-se e foi até a janela. Olhou para
baixo e teve uma vertigem. Por um minuto, acovardou-se, sentiu vontade de pegar
a bolsa e sair correndo, descer pelo elevador e fugir para casa. Então respirou
fundo novamente e rezou pela última vez: "Santo Anjo do Senhor, meu zeloso
guardador, se a ti me confiou..." Fechou os olhos e não era mais uma moça.
Viu a mãe sorrindo para ela e rezando junto.
Agora era uma garotinha, que antes de dormir rezava para o Anjo Guardião. Sentiu um beijo suave no rosto, o beijo
que a mãe lhe dava todas as noites,
antes de dormir. Lágrimas grossas e quentes rolaram pelo seu rosto, mas ela não
abriu os olhos.
A mãe estava ali, com seu amor enorme, com sua presença forte e vigorosa. Tinha agarrado com força o parapeito da janela, as mãos doíam e sentiu sobre elas outras mãos; delicadas, macias e pequeninas, mãos da avó, que ela tanto amava. Sim, a avó também viera estar com ela. Quase sem se surpreender, ouviu seu nome ser sussurrado pela voz rouca do pai. Também ele viera. Todos estavam ali. E ela sentiu o amor envolvê-la como um manto.
A mãe estava ali, com seu amor enorme, com sua presença forte e vigorosa. Tinha agarrado com força o parapeito da janela, as mãos doíam e sentiu sobre elas outras mãos; delicadas, macias e pequeninas, mãos da avó, que ela tanto amava. Sim, a avó também viera estar com ela. Quase sem se surpreender, ouviu seu nome ser sussurrado pela voz rouca do pai. Também ele viera. Todos estavam ali. E ela sentiu o amor envolvê-la como um manto.
Não
abriu os olhos, com medo de perder a maravilhosa sensação de aconchego. Não
estava mais só. Eles vieram. Para aconselhá-la, orientá-la e ajudá-la. Como
sempre faziam. Vieram para lhe mostrar que ela não estava só. Que de um jeito
ou de outro, eles sempre estariam com ela. Entrou num choro convulsivo e ficou
muito tempo ali. Os olhos fechados, sentindo a presença espiritual amorosa dos
pais e da avó. Então, lentamente, foi se acalmando, até que abriu os olhos. Estava
parada em frente à janela aberta, já era noite e algumas estrelas brilhavam no
céu, junto com as luzes artificiais da cidade.
Entrou no banheiro novamente e lavou o
rosto. De súbito compreendera que ainda tinha muita vida pela frente. As três
pessoas que mais amara no mundo tinham voltado
para dizer isso a ela. Para evitar que se suicidasse. Ajeitou as roupas,
pegou a bolsa, desligou as luzes da sala, fechou a porta e chamou o elevador. Sentiu uma pontada no estômago e deu-se
conta de que não havia se alimentado ainda.
Lembrou-se que no caminho havia uma
pastelaria e decidiu: seu jantar seria pastel de queijo e café: doce e quente, como a vida que ainda estava por vir...
*Imagens retiradas da Internet sem fins
comerciais.
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