quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

PRESENÇA


Ela apertou os dedos, nervosa. A boca seca. Olhou-se no espelho. Os cabelos escorridos, os olhos enorme, fundos. Onde estava a bela moça que tinha sido? A menina inteligente, sempre rodeada de amigos, a alegria da festa?
Pela milésima vez, olhou pela janela. Dali podia ver a torre da Catedral, a Universidade Federal do Paraná, o Teatro Guaíra. 12 andares… e um único vôo, fatal.


Sempre fora medrosa... alguém um dia lhe convidara a saltar de paraquedas e ela na hora disse não. Tinha verdadeiro pavor de altura, mas agora não sentia medo. Seria apenas mais um passo e depois, nada mais.
O que era a morte, senão uma solução? Se isso era a vida, então ela dispensava, obrigada. Quantos dos que ela amava já se tinham ido? Talvez fosse encontrá-los agora...



Da vida o que levaria? Sonhos, só sonhos mal realizados ou nem sequer realizados. Quisera um dia ser atriz e mais do que isso, tinha talento, sabia que tinha. Por toda a sua vida, como uma vingança, representara. Ninguém, com exceção de sua mãe,  tinha  conhecido a sua verdadeira personalidade.  De sua mãe nada poderia esconder. Da mulher de quem herdara os olhos grandes, profundos, olhos verdadeiros. 

A mulher que sem ter estudado, que mal sabia assinar o nome, era sábia como poucos. A mulher, que tendo nascido humilde, era altiva como uma nobre, esbanjava elegância, mesmo vestida em trapos. Lágrimas pesadas vieram-lhe aos olhos ao lembrar-se da mãe.. a mãe que há poucos meses se fora, deixando-a sozinha. Pôr que, mãe, por que me deixou?


Há alguns anos perdera o pai, num acidente de ônibus, o pai, que viajava a semana toda para o interior, vendendo vassouras e nos finais de semana ficava com ela, sentado na cozinha, um copinho de pinga do lado e a voz mansa, tranqüila, a contar coisas da juventude. Como ela amara aquele pai. Como fora feliz com os dois.

A avó também vivia com eles, forte e alegre, sempre cantando, sempre vaidosa. Com quase oitenta anos, ainda pintava o cabelo de negro azulado e usava sempre um perfuminho. A avó se fora  primeiro, num dia qualquer. Sem avisar, sem sequer um aviso.  No dia anterior ainda estiveram juntas, ela sentada na beirada da cama, a avó deitada, sorrindo tranquila, a dizer-lhe (o que sempre dizia) “filha, você precisa arrumar um namorado”. Ela fora dormir tarde, pensando no conselho da avó. A verdade é que não tinha sorte para namorados. Os que se aproximavam, ou eram muito imaturos, ou eram muito espertos, só queriam um casinho.


Fora trabalhar mais cedo naquele dia, tinha muito serviço acumulado no banco. Às cinco horas, o telefonema, dizendo que a avó havia falecido. O choque. Brutal. Saíra rápido do banco, após explicar ao chefe. Não chorou naquele dia. Nem nos seguintes. Mas, dois anos depois, ao lembrar-se da avó, chorava. Quase todos os dias, na cama. Soluçava de madrugada, sentindo a saudade doída, saudade vital, saudade que lhe corroía a alma. Amava a avó. E ela se fora. Todos se foram, com o tempo. Só ela restara.


Todos os dias, ao voltar para casa, encontrava um silêncio perturbador. Não mais o canto suave da avó: "Eu vou embora para onde a lua vai, a lua vai e volta, eu vou não volto mais..." Nem o barulho da mãe na cozinha, fazendo os quitutes que ela apreciava. Era um silêncio traiçoeiro, só  o ruído da própria respiração. Num arroubo de desespero, ligava tudo, a TV, o rádio, o chuveiro. E acendia todas as luzes. Não de medo, mas para iludir-se que havia mais alguém. Há quase dois anos vivia assim. Agora era hora de acabar com isso. A vida nada lhe dera. E o que lhe dera, o pai, a mãe, a avó, lhe tirara cedo demais. Ainda não estava preparada para  ficar só. Odiava a solidão.




Um colega disse que ela devia arrumar um bichinho de estimação. Ela seguira o conselho e um dia, saindo mais cedo do trabalho, entrou num aviário e comprou um gato. O gato era lindo, com a beleza humilde dos que desconhecem a palavra beleza e o seu significado... Era de uma beleza etérea e  de uma altiva alegria, companheiro amoroso, silencioso e presente.

Quando o comprou já tinha ele dez meses, e o dono do aviário  comentara que com essa idade já era difícil para vender, as pessoas preferiam animais mais jovens. Mas ela gostara do bicho e o levara imediatamente para casa. Providenciara uma caixa com areia, um pote de ração e água fresca. Por último, escolhera o nome. 

Amigo. Ele a olhara profundamente, os grandes olhos azuis... Sim, havia gostado do nome. Durante alguns dias, tudo correra bem. Ela saía apressada do banco, o ônibus lotado, sempre com os espertinhos querendo se encostar. Suportava tudo com humilde alegria, pois sabia que alguém, em sua casa, a esperava. Chegava já chamando o gato, que respondia com um miado sonoro e forte. Miado alegre de saudade. E ficava o tempo todo a seu lado, contente da sua presença.


Aos poucos, fora recuperando a alegria de viver com a ajuda de Amigo. Vivera com ele e para ele. Mas  ninguém lhe avisou  que gatos gostam da perigosa liberdade da rua. Principalmente gatos machos, que movidos pelo instinto milenar da caça, gostam de sair a se aventurar.  Pois um belo dia seu Amigo escapara pela janela, que ela esquecera entreaberta e ao tentar atravessar a  rua fora atropelado, a cabeça marrom despedaçada, os belos olhos parados para sempre. Antes que entrasse em casa  sua vizinha lhe dera a notícia e num arroubo de bondade recolhera o pobre animal, deixando-o  numa caixa. 

Ela pegara a caixa, o coração arrebentando de dor, a sensação de ter sido traída novamente, de que algo que amava lhe fora arrancado para sempre. A revolta.  A dor. Somente quem já teve algum animal de estimação e o perdeu tragicamente conhece esse terrível sentimento de perda. Porque animal ama incondicionalmente. Sem fazer distinção. 
Então, cumprindo um doloroso ritual,  enterrou o  animal sob o limoeiro. Lembraria sempre dele, mas não o substituiria nunca. Só sabia que perdera de novo. Mais uma vez. E estava de novo sozinha no mundo...


Mas isso era passado.  Agora, nada mais interessava. Queria ela a liberdade. E a teria. Se fosse preciso se matar para obtê-la, assim seria. Olhou novamente a paisagem. Era uma bela cidade. Ali nascera e se criara. Fora tão feliz...


Já passava das dezoito e trinta, mas o sol ainda brilhava. Olhou de novo pela janela. Ficara de propósito após o expediente e subira até o 12.º andar para dali saltar. Saltar e esquecer. Tudo pensado, repensado e decidido.  Entrou novamente no banheiro, para se olhar  no espelho. Um trapo humano. Era o que restara dela. Não mais uma pessoa, mas uma sombra. Em breve o corpo não existiria, a vida não existiria, ela seria apenas uma lembrança. 

Para o dia de sua morte escolhera uma roupa sóbria. Um conjunto cinza-claro, elegante e discreto. Colocara no dedo o anel que havia ganho no aniversário de quinze anos e no pescoço a correntinha de ouro, com uma medalhinha de Nossa Senhora  que sua avó usara até o fim. Para morrer, não é preciso estar muito alinhada, pensou. Porém, num gesto inútil de vaidade, abriu a bolsa e tirou um batom marrom, discreto como tudo o que usava e pintou os lábios.




Olhou novamente o relógio. Quase sete horas. Voltou para a janela. Pensou em pular imediatamente, mas o computador em que estivera trabalhando ainda estava ligado. Então, cuidadosamente, o desligou. Guardou os relatórios na pasta, pois provavelmente necessitariam desse material no dia seguinte e ela não estaria mais ali. 

Não, não queria dar problema. Sempre fora uma funcionária eficiente e não era porque iria se jogar pela janela que iria deixar tudo desorganizado. Fechou as gavetas da mesa e respirou fundo. Lá embaixo, na portaria, o Seu Valdemar já havia entrado. Era o vigia da noite. Quase todos os dias saía depois das seis e se despedia do homem. Era um senhor simpático e educado. Mas, nesta noite não haveria despedidas...


Levantou-se e foi até a janela. Olhou para baixo e teve uma vertigem. Por um minuto, acovardou-se, sentiu vontade de pegar a bolsa e sair correndo, descer pelo elevador e fugir para casa. Então respirou fundo novamente e rezou pela última vez: "Santo Anjo do Senhor, meu zeloso guardador, se a ti me confiou..." Fechou os olhos e não era mais uma moça. Viu a mãe sorrindo para ela e  rezando junto. Agora era uma garotinha, que antes de dormir rezava para o Anjo Guardião.  Sentiu um beijo suave no rosto, o beijo que  a mãe lhe dava todas as noites, antes de dormir. Lágrimas grossas e quentes rolaram pelo seu rosto, mas ela não abriu os olhos. 

A mãe estava ali, com seu amor enorme, com sua presença forte e vigorosa. Tinha agarrado com força o parapeito da janela, as mãos doíam e sentiu sobre elas outras mãos; delicadas, macias e pequeninas, mãos da avó, que ela tanto amava. Sim, a avó também viera estar com ela. Quase sem se surpreender, ouviu seu nome ser sussurrado pela voz rouca do pai. Também ele viera. Todos estavam ali. E ela sentiu o amor envolvê-la como um manto. 


Não abriu os olhos, com medo de perder a maravilhosa sensação de aconchego. Não estava mais só. Eles vieram. Para aconselhá-la, orientá-la e ajudá-la. Como sempre faziam. Vieram para lhe mostrar que ela não estava só. Que de um jeito ou de outro, eles sempre estariam com ela. Entrou num choro convulsivo e ficou muito tempo ali. Os olhos fechados, sentindo a presença espiritual amorosa dos pais e da avó. Então, lentamente, foi se acalmando, até que abriu os olhos. Estava parada em frente à janela aberta, já era noite e algumas estrelas brilhavam no céu, junto com as luzes artificiais da cidade.


Entrou no banheiro novamente e lavou o rosto. De súbito compreendera que ainda tinha muita vida pela frente. As três pessoas que mais amara no mundo tinham voltado  para dizer isso a ela. Para evitar que se suicidasse. Ajeitou as roupas, pegou a bolsa, desligou as luzes da sala, fechou a porta e chamou o elevador. Sentiu uma pontada no estômago e deu-se conta de que não havia se alimentado ainda.


Lembrou-se que no caminho havia uma pastelaria e decidiu: seu jantar seria pastel de queijo  e café: doce e quente, como  a vida que ainda estava por vir...  




*Imagens retiradas da Internet sem fins comerciais.






Vanisse Simone é doutoranda em Educação pela UFPR, professora pela UNESPAR, co-editora da Contemporartes e colunista da Planetário. 

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