Com o perdão da Palavra
Não ouvirei centenas de
vezes a mesma música, não verei milhares de vezes o mesmo filme, não falarei –
como sugeriu Drummond – todos os dias do ano, todos os dias da vida, de meia em
meia hora, de cinco em cinco minutos: Eu te amo.
Não
repetirei até a exaustão a sua alma externa. Não te invocarei de forma
irresponsável até que os meus estímulos todos entendam o vital como desimportante.
Não barrarei a sua passagem pelo córtex, não criarei atropelos, não pedirei
novas chaves, não colocarei pedras no caminho, não seguirei por estradas de
pedras íngremes e desajustadas.
Não.
Eu
te darei um castelo na região da memória, uma torre na consciência, um campo de
atenção e três pomares inteiros de linguagem, percepção e pensamento. Não te
resumirei em barulho, em zumbido e em torrente, som semproso e murmurento, ou
em lamento bobo e sem razão. Não gastarei a sua forma, o seu corpo, com a minha
vaidade e medo.
Prometo
não profanar a sua pintura, nem dar um mono-tom em caráter de cinza ou abstrair num preto e branco a sua veracidade. Juro que não velarei a sua
medida até o esgotamento, nem converterei em trapo a sua vestimenta fina.
Controlarei a minha astenia débil de querer-te sempre, a minha fadiga na sua
falta, o meu cansaço e desespero frente à fragilidade do afastamento. Não
ignorarei a sua essência em detrimento de uma volta qualquer, não rejeitarei o
seu nascimento pelo ato de nascer, não evitarei a sua morte pelo ato de morrer,
não desmerecerei a sua verdade na minha ausência reforçosa e inútil. Não
tomarei a foto pelo fotografado, não darei ao símbolo um valor maior que o de passagem
e ponte e meio.
Por
outro lado,
não
digo que não farei para mim forma de escultura. Sei bem que essa matéria
evocada é imagem de fundição que ensina mentira e que é um ídolo mudo, um herói
morto e um manipanso. No entanto, esse objeto-em-letra guarda no seu aspecto
físico e mundano a lembrança distante da uma grandeza inatingível, de um
sentido inenarrável. Não se preocupe, não permitirei que a beleza dos contornos
me distraia para a imensidão sublime da sua alma interna.
Por
tantas vezes banalizar a sua morada tomando a casca pelo fruto e o fruto pela
casca, por ter surrado a sua presença, sovado a sua aparição e interpretado
como esmola o presente mais valioso e como migalha o mais exuberante dos
banquetes, por ter dito o vosso santo nome em vão, vulgarizando o que me era
caro, levando o precioso como trivial e o suntuoso como pueril, peço que me
desculpe. Agora, depois e antes de tudo, percebo que o mal não está na alcunha
redita ou no dono do apelido, mas no próprio repetidor que, repisando
consecutivas vezes o mesmo vocábulo, se perde num abismo de sons arremedados, no
limbo parodiado de significantes desabitados, num cemitério de sopros e timbres
e vozes sem sentido, no ermo das burburinhos infecundos.
Deixe-me
voltar ao Éden daquele jardim onde as flores desabrocham caladas. Permita-me,
mais uma vez, ouvir o silêncio contínuo das coisas inexprimíveis, que a única forma de retorno é
o retirar-se, que a única forma de haver chegada é o partir e o único
reencontro, a separação. Palavra, preciso do seu perdão, da sua indulta. Esses
corpos que eu ensaio serão a minha pedra filosofal, o meu exercício diário de
converter chumbo em ouro, serão a minha vontade e o meu eterno retorno, a minha
busca. Se me conceder o perdão, direi a todos que passarem e aos meninos na rua
e aos animais de esquina que estou vivo, porque tive a sua misericórdia, e que
sigo escrevendo, porque aprendi o respeito pelas coisas do inexprimível, e eles
saberão que tudo faz mais sentido e nos parece melhor com o perdão da Palavra.
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