quinta-feira, 31 de março de 2016

Com o perdão da Palavra



Não ouvirei centenas de vezes a mesma música, não verei milhares de vezes o mesmo filme, não falarei – como sugeriu Drummond – todos os dias do ano, todos os dias da vida, de meia em meia hora, de cinco em cinco minutos: Eu te amo.
Não repetirei até a exaustão a sua alma externa. Não te invocarei de forma irresponsável até que os meus estímulos todos entendam o vital como desimportante. Não barrarei a sua passagem pelo córtex, não criarei atropelos, não pedirei novas chaves, não colocarei pedras no caminho, não seguirei por estradas de pedras íngremes e desajustadas.
Não.
Eu te darei um castelo na região da memória, uma torre na consciência, um campo de atenção e três pomares inteiros de linguagem, percepção e pensamento. Não te resumirei em barulho, em zumbido e em torrente, som semproso e murmurento, ou em lamento bobo e sem razão. Não gastarei a sua forma, o seu corpo, com a minha vaidade e medo.
Prometo não profanar a sua pintura, nem dar um mono-tom em caráter de cinza ou abstrair num preto e branco a sua veracidade. Juro que não velarei a sua medida até o esgotamento, nem converterei em trapo a sua vestimenta fina. Controlarei a minha astenia débil de querer-te sempre, a minha fadiga na sua falta, o meu cansaço e desespero frente à fragilidade do afastamento. Não ignorarei a sua essência em detrimento de uma volta qualquer, não rejeitarei o seu nascimento pelo ato de nascer, não evitarei a sua morte pelo ato de morrer, não desmerecerei a sua verdade na minha ausência reforçosa e inútil. Não tomarei a foto pelo fotografado, não darei ao símbolo um valor maior que o de passagem e ponte e meio.
Por outro lado,
não digo que não farei para mim forma de escultura. Sei bem que essa matéria evocada é imagem de fundição que ensina mentira e que é um ídolo mudo, um herói morto e um manipanso. No entanto, esse objeto-em-letra guarda no seu aspecto físico e mundano a lembrança distante da uma grandeza inatingível, de um sentido inenarrável. Não se preocupe, não permitirei que a beleza dos contornos me distraia para a imensidão sublime da sua alma interna.
Por tantas vezes banalizar a sua morada tomando a casca pelo fruto e o fruto pela casca, por ter surrado a sua presença, sovado a sua aparição e interpretado como esmola o presente mais valioso e como migalha o mais exuberante dos banquetes, por ter dito o vosso santo nome em vão, vulgarizando o que me era caro, levando o precioso como trivial e o suntuoso como pueril, peço que me desculpe. Agora, depois e antes de tudo, percebo que o mal não está na alcunha redita ou no dono do apelido, mas no próprio repetidor que, repisando consecutivas vezes o mesmo vocábulo, se perde num abismo de sons arremedados, no limbo parodiado de significantes desabitados, num cemitério de sopros e timbres e vozes sem sentido, no ermo das burburinhos infecundos.
Deixe-me voltar ao Éden daquele jardim onde as flores desabrocham caladas. Permita-me, mais uma vez, ouvir o silêncio contínuo das coisas  inexprimíveis, que a única forma de retorno é o retirar-se, que a única forma de haver chegada é o partir e o único reencontro, a separação. Palavra, preciso do seu perdão, da sua indulta. Esses corpos que eu ensaio serão a minha pedra filosofal, o meu exercício diário de converter chumbo em ouro, serão a minha vontade e o meu eterno retorno, a minha busca. Se me conceder o perdão, direi a todos que passarem e aos meninos na rua e aos animais de esquina que estou vivo, porque tive a sua misericórdia, e que sigo escrevendo, porque aprendi o respeito pelas coisas do inexprimível, e eles saberão que tudo faz mais sentido e nos parece melhor com o perdão da Palavra.

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