quarta-feira, 27 de abril de 2016

Assim




Abriu os olhos, a cabeça girando – um gosto amassado na boca. Vou levantar. Falta cinco. Só mais cinco. Fecha os olhos. Abre. Pisca. O calor – um calor. O ventilador de novo. Casa de ferreiro, espeto de pau. Poeira no eixo – cabelo, talvez. A hélice insiste – o motor esquenta. O quarto esquenta. Mais devagar. Lento. O suor começa. Dois minutos. Prega os olhos no teto. Se agora já tá assim... a coisa vai ser feia hoje. O despertador. Arremessa para fora da cama as pernas. Deixa bater no chão os pés. Tá na hora. A rua é noite. Arrasta o entulho do corpo até o banheiro – cheiro de mijo velho – completa o estoque. Descarga. Leva a mão na torneira do chuveiro. Calça a chinela – borracha. Roda, liga, morna. Água. Puxa a cortina. Lava o sono, a madrugada. Desliga. Toalha nova não enxuga. O jeans, a camisa azul do deputado. Café. O pó de resto. Ferve - demora.
          Lá fora,
o Til. Sai, brinca com o cachorro. Acende um cigarro. Espanta o cachorro. Troca a água. Volta. Passa o café - Água de poça. Engole. Merda.
Pega a bicicleta.         
         A rua inteira com o mesmo silêncio de todos os dias. Pedalando. O pneu cheio – cheio demais. Os paralelepípedos em solavancos. Agora o calor não era tanto – o sol começa primeiro na lembrança dos quartos para só depois chegar ao mundo. Descida. A brisa no rosto. E o buteco na meia porta, luz acesa. Pensa em parar. Vou parar. Não para. Na ponte, ninguém. Ninguém na outra rua. Começa a pensar no serviço. Tenta recapitular o que estava pronto. Já foi a metade. E tem aquela ducha na Dona Brumalva. E o mesmo gato gordo deitado no parapeito da janela. Olhando inquisitorialmente para a bicicleta que passa. O pelo bem cuidado, lambendo os restos da última refeição, lambendo as patas. Os olhos no passante.
O conforto que não tinha –
por mais que trabalhasse. Lutava dia após dia por uma coisinha ou outra, por um agrado, por um luxo qualquer, uma viagem – talvez – pra ver a tia Zefa no sítio lá da Beira. Era sempre apertado – a correria não folgava. As contas de sempre e as novas e as que vinham sem avisar não folgavam. Era um remédio pra minina, um médico no particular – porque no posto tava em falta, o médico e o remédio. Era um calçado melhor pro casamento da parente, uma roupinha mais ajeitada. E o barbeiro, mas esse não tinha problema ficar no fiado até chegar o troco.
          Agora é morro.
        Pequeno, mas em pé. Bota no prumo. A força pesa. Joga pra frente. Melhor não. Desce. Empurra. O vento pitou o cigarro. Para. Acende outro. Guarda o isqueiro. Passa um carro. Em algum lugar, alguém acordou e voltou a dormir. As rodas ganham embalo. A fumaça irrita. De repente – como um soluço no oco da cabeça: o embornal. Não é possível. Apoiou o pé no chão. Agora é voltar e pegar. Fez o caminho de volta com a metade do tempo que havia gastado na ida. Deu com a guimba pro canto da rua. Desceu. Pegou a bolsa.
        Passou pelo gato sem conferir se ainda estava lá. O celular tocou. Deve ser do serviço. Não vou atender. Não atendeu. Pedalou mais – três passadas. Leve demais. A corrente soltou. Tá de brincadeira. Era melhor terminar o caminho andando. Quando virou a rua do galpão e viu o dono do depósito parado na porta.
         Desculpa, Sr. António, é que a corrente soltou e tive que voltar em casa pra pegar umas ferramenta.
          O Sr. António era bom pagante, mas pão duro como só. Ninguém, vendo o homem na rua, julgaria que tem o que tem.
         Não, não. Não se incomode, eu acabei de chegar também. Você devia descansar hoje.
           Ein?
           Não precisava ter vindo hoje.
           Não?
          Admiro sua dedicação, mas não fará bem seguir nesse ritmo, rapaz. Vá por mim, o corpo não aguenta a mesma dança todo dia. Você é evangélico?
       Olhou pro homem de bigode grisalho, careca lustrosa e contorno ligeiramente arredondado. Nunca tivera trocado nenhuma palavra com o Sr. António, nem mesmo quando fora contratado. Um amigo acertou tudo e o chamou para terminar a parte elétrica. Sem gambiarras – a única coisa que ele ouvira antes dessa manhã.
            Não, Senhor.
            O velho fez beiço – como se estivesse surpreso – rugou as sobrancelhas, sacudiu a cabeça e voltou à difícil tarefa de acertar a chave do portão em meio a um molho enorme.
            Entra. Encosta o calango num canto. Confere o relógio. Volta para o andaime.
 O joelho estala.
 Chega no topo.
 Quatro metros de altura. Tira o canivete e a fita isolante. Descasca o fio. Talha o dedo. Pega o alicate – uma, duas, três voltas. Emenda. Será que tem quiabo hoje? Do outro lado do galpão, entretido com a TV, o Sr. António assiste um programa sobre carros. De pé, com os braços cruzados, feito um João Bobo. Gargalha baixo com a cena do patrão balançando para frente e para trás sem cair. A emenda feita. Acho que tá muito fino. Desce do andaime.
           O celular toca.
Depois de tudo, não era do serviço. Bate a mão no bolso de trás, no da frente. Atende o maço de cigarros. Alô. Merda. Procura no bolso da camisa – a camisa não tem bolso. Olha pros lados. No embornal. Chave de boca, bala, fenda. Aqui.
           Sandra? Ué!?! Alô?
           Uai, Beto. Onde você tá?
           Trabalhando!
           Desde que se lembrava, o trabalho era parte da rotina. Primeiro, com seu tio, depois, com o Inácio, e ai veio o lava-jato, a pastelaria, a entrega de frango, voltou pro tio e, agora, por conta própria. Trabalhar muito, ele sempre trabalhou. Levantar cedo, sempre levantou. Sempre esteve mais fora do que dentro de casa.
           Então agora você vai trabalhar até hoje?
          Seu próprio aniversário? Não, não era. O aniversário da irmã? Da sobrinha? Também não.
            E por que eu não trabalharia, Sandra?
            A irmã, num silêncio preocupado – incrédulo – respondeu calmamente.
            Hoje é feriado, lembra?

2 comentários:

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

Beto se esqueceu de se lembrar...

8 de maio de 2016 às 20:56

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