quinta-feira, 9 de junho de 2016

Era ainda muito cedo




Há um terror imenso em partir e um terror imenso em ficar. É a distância enorme e externa pra quem vai e a distância enorme e interna pra quem fica. Não acho que a sua dor seja menor que a minha. Você sofre por estar onde sempre esteve, eu sofro por querer estar onde estava e estive, mas – ambos – sofremos. E essa dor é como o frio mais intenso, que dói até os ossos, e o calor mais intenso, queimando a superfície de tudo.  
Epidermicamente.
Concretamente.
E a noite traz os nossos problemas e quando vem o dia tudo é noite, porque tudo parece assombrado e nada esclarecido, porque é sombra o que ficou depois da passagem do escuro, quando a escuridão é já outra coisa e a claridade finge não ter amanhecido com os objetos e as pessoas que parecem agora mais visíveis e menos reais.
Depois de ontem,
depois de não entender o seu nervosismo, saí pra correr de manhã. “Entender” aqui é apenas participar - o máximo possível - de uma tempestade que, apesar do ribombo e dos trovões em você, chove em mim, criando uma enxurrada que nos passeia e se tornando um dilúvio que nos toma e afoga. “Entender” é tentar – o máximo que posso – construir a nossa arca, para que possamos esperar juntos o primeiro vestígio de terra seca.
Saí para correr,
era ainda muito cedo. A feira já havia começado. Sábado é dia de feira na rua de baixo - essa rua estranha que, vista de cima, se parece com uma imensa língua de cobra, bifurcando na altura da igreja, quando se transforma em duas outras ruas e segue serpenteando. Caminhei até a ciclovia. Faz frio. Chove. Fazia frio. A mata do lado esquerdo e a estrada do direito. O bosque imenso no lado esquerdo do meu peito cavernoso esperando que um abraço seu encha de coração e pulso o que é espaço e silêncio. O cheiro de terra molhada. Acelerei o passo. Passavam algumas pessoas. Algumas bicicletas. Alguns minutos. Cheguei ao campo do Fluminense. Amarraram numa arvore antiga, com uma cabo de aço, a estrutura frágil de um poste que inclinava. Os postes são arvores incompetentes.
Havia jogo.
Ao longo do muro, gente se pendurava para assistir à partida. Eu corro. Corria. Virei para a vila, depois do ponto de ônibus. Casas com jardins, um cachorro, uma senhora que passa e leva consigo um cachorro e uma bolsa. Lá em casa a campainha é dentro da varanda, a pessoa chama e já tá dentro! – disse uma dona para o dono do bar.
Sigo correndo. Seguia.
Uma praça da vila, uma quadra. Frio. Fazia frio. Faz. Já não chove. Choveu. Chovia. A biblioteca pública Ferreira Gullar está fechada. Estava, esteve. Um outra senhora passa carregando as compras. Viro para o quiosque do balanço. O som do cascalho. As pedras contando – em cada passo – a lembrança da chuva. De cima do muro, um gato marrom cappuccino descansa e observa. Eu passo. Ele me olha. Olhamos. Um rapaz - com uma perna mecânica - caminha com alguns meninos. A escola paroquial. Um carro que parece abandonado, com um lençol tapando a janela, mas que não está abandonado. O dono está dentro, sentado na poltrona, ouvindo uma canção antiga do Roberto Carlos. O rapaz que passava correndo também parecia abandonado, com um lençol tapando a janela, mas tinha o dono dentro, sentado na poltrona, ainda que não ouvisse uma canção antiga do Roberto. Nessa parte da estrada, a memória dá um nó. Não se conhece nada, não se percebe nada e nada parece fazer sentido. A rua que aparece é outra, mas é a mesma de antes – de antes do Fluminense e da árvore que sustenta o despreparo do poste. Atravesso a ponte. Chego na ciclovia. Cheguei na ciclovia.
Antes. Agora.
As nuvens fechadas. Os últimos raios de sol se alojaram nas plantas menores. O verde das folhas e dos brotos são – não exagero – quase incandescentes. Se a sombra viesse agora, antes da claridade anoitecer, elas brilhariam, como estrelas terrestres e terrenas, largas constelações sem batismo, sem nome, sem ligação. Se a sombra viesse agora, antes da claridade anoitecer, traria os nosso problemas e os sonhos e as esperanças seriam – serão - são como folhas e brotos incandescentes que alojaram os últimos raios de sol, quando, nos dias claros, plantamos a semente da nossa vontade - sem pensar na madrugada e nos momentos assombrados.
De forma alguma,
não acho que a sua dor seja menor que a minha. Você sofre por estar onde sempre esteve, eu sofro por querer estar onde estava e estive, mas – ambos – sofremos.
Cheguei no fim da ciclovia.
Eu havia chegado no fim da ciclovia
e, enquanto corria, enquanto corro, escrevo essa carta de cabeça. Passo os dias assim, te escrevendo cartas sem nunca escrever, te contando as coisas sem me dar conta, te narrando as fábulas estrangeiras desse lugar substituído. E aquele seu cabelo ruivo no meu travesseiro branco é o último raio de sol de um dia iluminado. Depois de ontem, depois de não entender o seu nervosismo, saí pra correr de manhã.
Era ainda muito cedo.

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