O EMPALADOR DE PASSA RIOS
A primeira vez que vi Mário de Andrade, volumoso e
constrangido na prateleira metálica da casa de ensino, achei que ele tinha
pernas estúpidas. Para quem lia Castro Alves, eram canelas descobertas de
bermudas arregaladas, meias de cores distintas - roxas e amarelas – cobertas de
losangos, eram sapatos cinza e ouro, feito forno e inverno morno de um trotar
esquisito. Achei também que a cara parecia uma perna, tinha lá um nariz que não
era parnaso, que parecia um joelho, qualquer coisa de símbolo, qualquer coisa
de novo, mas, como é próprio do recém-nascido ter cara de rótula e a
bibliotecária tinha feito o parto não havia muito, deixei a surpresa como
articulação.
Segui.
Quando vi Mário de novo, nos corredores esguios
e intermitentes da Biblioteca Central, um formigueiro convulsionado de
labirintos e passagens, achei que a voz era muito mais velho que o resto do corpo,
a voz nasceu e ficou esperando quase uma década pelo resto. Mesmo depois de
Vinícius, as calças ainda aparentavam extravagancias, o passo imitava um
tortolento, o giro contornava em ângulo disposto. Era uma cantiga de meninos
velhos brincando de roda. Harmonia. Melodia. Ritmo. Um sei lá quê -. E
fofocaram tremendo do Mário. E falaram de muito. E a futriquice sem tamanho
começou com Cavalcanti Proença, passou por Silviano Santiago, por Oswald, pelo Tristão
de Ataíde, por João Ribeiro, por Nestor Vitor, por Florestan Fernandes, por Haroldo
de Campos e por Darcy e Lafetá e Candido e nossa...
o fuxico é do sem-fim de colher e colher
e colher e...
uma candonga cheia dos mexericos que me
levou a ficar cego, surdo e mudo. Assim foi que, da terceira vez, não vi mais
nada. Os céus se misturaram com a terra e a Noite escuro voltou a se mover
sobre a face das águas e não encontrei mais o Mário.
Por isso,
não me contem mais o rapaz, não me falem
mais das meias e das pernas e dos losangos coloridos nas meias das pernas do
rapaz. Não me descrevam Mario de Andrade, não mencionem Mario de Andrade, não
contornem Mário de Andrade. Quero aprendê-lo sem que me digam.
Na ponta dos pês,
cerrando os olhos,
esticar até o impossível da minha altura
e tentar o toque do fruto proibido, naquele jardim de fronteiras impraticáveis,
naquela árvore de mortalidade e medo. Provar o que não há de eterno. Pecar
contra a ordem dos mexeriqueiros e não contar nada a ninguém. Não desqualifico
o trabalho dos empaladores, mas não vou tramar contra a fluidez natural dos
rios, confabulando contra as águas e conspirando contra tudo o que segue,
percorre e passa.
Os empaladores, empalarão.
O empalador de mim, empalará.
Num dia claro, longe de São Paulo, longe
do Rio de Janeiro, longe da comoção, eu passarei despercebido pelos automóveis
que gritam, pelas casas, pelos homens. Num dia, é claro, me sentarei na
poltrona movediça de um ônibus. Todo o meu cansaço pousado sobre os braços
moveis da poltrona movediça. Lerei aquele poema absurdo, aquele de clarins
megafônicos, de trombetas furiosas e chifres e metal. Toparei com o Mário outra
vez. Levaremos tempo nessa toada. Conversaremos como dois estrangeiros. E
quando ele disser o que disse, quando – sossegado – me contar sobre aquilo e
sobre o que disse sobre aquilo,
prometo e juro:
Não
te
conto!
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