quinta-feira, 21 de julho de 2016

O EMPALADOR DE PASSA RIOS






A primeira vez que vi Mário de Andrade, volumoso e constrangido na prateleira metálica da casa de ensino, achei que ele tinha pernas estúpidas. Para quem lia Castro Alves, eram canelas descobertas de bermudas arregaladas, meias de cores distintas - roxas e amarelas – cobertas de losangos, eram sapatos cinza e ouro, feito forno e inverno morno de um trotar esquisito. Achei também que a cara parecia uma perna, tinha lá um nariz que não era parnaso, que parecia um joelho, qualquer coisa de símbolo, qualquer coisa de novo, mas, como é próprio do recém-nascido ter cara de rótula e a bibliotecária tinha feito o parto não havia muito, deixei a surpresa como articulação.
Segui.
Quando vi Mário de novo, nos corredores esguios e intermitentes da Biblioteca Central, um formigueiro convulsionado de labirintos e passagens, achei que a voz era muito mais velho que o resto do corpo, a voz nasceu e ficou esperando quase uma década pelo resto. Mesmo depois de Vinícius, as calças ainda aparentavam extravagancias, o passo imitava um tortolento, o giro contornava em ângulo disposto. Era uma cantiga de meninos velhos brincando de roda. Harmonia. Melodia. Ritmo. Um sei lá quê -. E fofocaram tremendo do Mário. E falaram de muito. E a futriquice sem tamanho começou com Cavalcanti Proença, passou por Silviano Santiago, por Oswald, pelo Tristão de Ataíde, por João Ribeiro, por Nestor Vitor, por Florestan Fernandes, por Haroldo de Campos e por Darcy e Lafetá e Candido e nossa...
o fuxico é do sem-fim de colher e colher e colher e...
uma candonga cheia dos mexericos que me levou a ficar cego, surdo e mudo. Assim foi que, da terceira vez, não vi mais nada. Os céus se misturaram com a terra e a Noite escuro voltou a se mover sobre a face das águas e não encontrei mais o Mário.
Por isso,
não me contem mais o rapaz, não me falem mais das meias e das pernas e dos losangos coloridos nas meias das pernas do rapaz. Não me descrevam Mario de Andrade, não mencionem Mario de Andrade, não contornem Mário de Andrade. Quero aprendê-lo sem que me digam.
Na ponta dos pês,
cerrando os olhos,
esticar até o impossível da minha altura e tentar o toque do fruto proibido, naquele jardim de fronteiras impraticáveis, naquela árvore de mortalidade e medo. Provar o que não há de eterno. Pecar contra a ordem dos mexeriqueiros e não contar nada a ninguém. Não desqualifico o trabalho dos empaladores, mas não vou tramar contra a fluidez natural dos rios, confabulando contra as águas e conspirando contra tudo o que segue, percorre e passa.
Os empaladores, empalarão.
O empalador de mim, empalará.
Num dia claro, longe de São Paulo, longe do Rio de Janeiro, longe da comoção, eu passarei despercebido pelos automóveis que gritam, pelas casas, pelos homens. Num dia, é claro, me sentarei na poltrona movediça de um ônibus. Todo o meu cansaço pousado sobre os braços moveis da poltrona movediça. Lerei aquele poema absurdo, aquele de clarins megafônicos, de trombetas furiosas e chifres e metal. Toparei com o Mário outra vez. Levaremos tempo nessa toada. Conversaremos como dois estrangeiros. E quando ele disser o que disse, quando – sossegado – me contar sobre aquilo e sobre o que disse sobre aquilo,
prometo e juro:
Não
te
conto!

0 comentários:

Postar um comentário

Seja educado. Comentários de teor ofensivo serão deletados.