Quando morrer aquele diabo
Quando morrer aquele diabo e os jornais
todos anunciarem, será como foi com Herberto Helder, “a voz mais fulgurante da
poesia portuguesa”. _Faça-me um favor e
deixe de meninices! Posso ouvi-lo. _Seu
parvo! E não vou mais contar manhãs em crônicas. O meu Tributo – onde tenho lido uma manhã por texto. Quando ele morrer,
não saberei mais agredir meus dedos contra o teclado; quando ele for e já não
for, serei um cordeiro sem lobo – na eterna mansidão dos pastores, acompanhado
de um vasto campo de ternura e tédio. Aquele diabo de tantos livros. Às vezes me
conta sobre a infância, às vezes exercita a autodescrição – eu escuto. Sento-me
ao pé dele, perto da raiz
(que é uma mentira
minha)
e ouço o sotaque
lusitano diluído na imaginação dos meus ouvidos brasileiros, no cavernoso fundo
de orelhas mineiras do interior.
Ah! Quando morrer
aquele diabo e as coisas todas voltarem ao seu estado natural. Quando o corpo ceder
ao tempo, contrariando a vontade da última frase, de mais uma letra, mais um ou
dois ou três pontos. Aquele diabo...
E se parece tanto com o
meu avô.
O meu avô de quem sei
tão pouco, de quem tanto me contam. Vejo-o ainda caminhar insistentemente pelo
corredor, antes da doença e ainda um pouco depois. Sua voz firme, um pouco
vazada pela velhice, um pouco marcada pela memória. Seus chinelos, suas mãos –
e não sabia que me lembrava dos dedos, mas lembro-me dos dedos. Uma canela que
despontava algumas varizes. O cabelo feito - pouco, a barba feita. Não me recordo
daquele bigode, aquele prolongado que varria com esmero a suas palavras de
pouca umidade. Só de foto, conheço o bigode. Os braços para trás, as mãos, na
base da coluna, cerrando um elo. Sua boina no alto da estante alta. O arrastar
prolongado das solas contra o chão. As balas de menta, os doces de leite. A
cômoda e as gavetas de onde as guloseimas brotavam. A cadeira de balanço. O meu
diagnostico menino de um leve cheiro a peido no assento – que não me recordo,
mas garantem que fiz. O meu avô na cadeira assistindo o futebol, o jornal, uma
coisa que me escapa.
Dá
bença aqui, Menino!
Não sei o meu nome
naquele timbre antigo, na língua tão própria do meu avô quando dizia:
Essa
é a mão de limpar a bunda! A mão da bença é a outra!
E eu dava a mão da
bença. Deus te abençoe! E a sua
coleção de latas e os potes intermináveis cheios de anéis de latas e as
galinhas no quintal e as frutas nas árvores do quintal. Aquele cômodo que sei –
por intermédio – era o banheiro antigo. O cheiro marcado quando, depois da cozinha,
seguindo pelo corredor, descia-se a escada de degraus largos e chegava-se aos
fundos. A sua calvície, as trincheiras que o tempo cavou no seu rosto para
plantar os anos e o peso dos anos.
Sei que foi à guerra.
Era outra época. É
fácil esquecer do segredo nas suas idades, mas eu não. Imagino o medo e a honra
– se havia – tentando cobrir o receio e a saudade. O exército no senhor. Todas
as coisas militares no senhor. O fim da guerra. A volta para casa. O caminhão
de fretes. Em algum lugar, uma livraria. A oficina. Motorista, o senhor. Os
seus filhos e a sua esposa e o pai e as irmãs e o irmão da sua esposa. Os seus
filhos.
Que haveria de passar
na sua cabeça, Vô?
Aqueles olhinhos
miúdos. Aquelas crias todas a crescer e a subir mundo acima. Um brincalhão, um
responsável, outro muito sério. Uma brincalhona, uma responsável, outra muito
cheia dos modos. Na sua cabeça, na gruta daquele menino crescido sem mãe, moço
único de algumas irmãs. E a sua mulher sempre a te ensinar tanto. Que conversas
vocês? Que vergonha você sentiu? Quando sentiu? Que espantos teve? Quantas
novidades o coração te contou e, sabendo, preferiu não dizer? Quando o primeiro
neto te fez, pela primeira vez, avô e não pai – nunca mais pai – o que a noite
e o silêncio contaram?
O
senhor e o cafofu em construção.
O
senhor e o cuidado com as filhas e o trato com os filhos. O senhor e a secura
com eles e com as coisas deles e com as maneiras de cada um. O senhor e as
várias histórias e os casos do senhor agora, depois de tudo, quando as formas
ganham número e a integridade dos episódios parece cheia de realidade. O senhor
na memória dos mais velhos, na memória dos mais novos, nas memórias conjugadas.
O senhor, meu avô, que nunca foi pai de ninguém.
Talvez,
com
certo espanto,
eles entendam – um dia
ou depois – que aquele pai, nunca foi o meu avô. Que o meu avô, talvez, nem se
quer tenha sido parente deles. O meu avô era um senhorzinho que percorria
continuamente um corredor de retratos emoldurados, passando pela estante das
Barsas, chegando ao pé da escada e voltando – em patrulha, resguardando a porta
da cozinha, do banheiro e a entrada dos quartos. O meu avô era o menino antigo
a gangorrear numa cadeira cheia de almofadas. Era um senhor de bermuda e
sandálias, de braços para as costas e mãos enlaçadas, que tratava-me bem –
muito bem, que dava-me balas e bênçãos, que chamava a minha avó pelo segundo
nome – nunca “avó” ou “dona”, que era sério - isso é verdade - mas que não
economizava sorrisos moderados – com o rasgo fino da boca, com os olhos
forrados, com o posto que ocupava.
Quando morrer aquele
diabo e os jornais todos anunciarem, vou me lembrar do meu avô. Quando ele
morrer, aquele diabo de tantos livros, vou me lembrar desse texto, dessa coisa
pequena sem nome no corpo – nem crônica, nem conto,
nem sei.
Quando
morrer aquele diabo, direi a um conhecido: ele se parecia tanto com o meu avô.
Que avô? Dirá o conhecido. O que – dizem, por um engano comum – foi pai dos
meus tios e do meu pai e das minhas tias. O seu avô por parte de pai? Dirá o
conhecido. Não, meu avô por minha parte e avô também dos meus primos e das
primas dos meus primos. Por parte nossa, o nosso avô.
Essas linhas deveriam
ser para
o escritor português António
Lobo Antunes,
mas
ele se parece tanto com
o meu avô.
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