quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Quando morrer aquele diabo




Quando morrer aquele diabo e os jornais todos anunciarem, será como foi com Herberto Helder, “a voz mais fulgurante da poesia portuguesa”. _Faça-me um favor e deixe de meninices! Posso ouvi-lo. _Seu parvo! E não vou mais contar manhãs em crônicas. O meu Tributo – onde tenho lido uma manhã por texto. Quando ele morrer, não saberei mais agredir meus dedos contra o teclado; quando ele for e já não for, serei um cordeiro sem lobo – na eterna mansidão dos pastores, acompanhado de um vasto campo de ternura e tédio. Aquele diabo de tantos livros. Às vezes me conta sobre a infância, às vezes exercita a autodescrição – eu escuto. Sento-me ao pé dele, perto da raiz
(que é uma mentira minha)
e ouço o sotaque lusitano diluído na imaginação dos meus ouvidos brasileiros, no cavernoso fundo de orelhas mineiras do interior.
Ah! Quando morrer aquele diabo e as coisas todas voltarem ao seu estado natural. Quando o corpo ceder ao tempo, contrariando a vontade da última frase, de mais uma letra, mais um ou dois ou três pontos. Aquele diabo...
E se parece tanto com o meu avô.
O meu avô de quem sei tão pouco, de quem tanto me contam. Vejo-o ainda caminhar insistentemente pelo corredor, antes da doença e ainda um pouco depois. Sua voz firme, um pouco vazada pela velhice, um pouco marcada pela memória. Seus chinelos, suas mãos – e não sabia que me lembrava dos dedos, mas lembro-me dos dedos. Uma canela que despontava algumas varizes. O cabelo feito - pouco, a barba feita. Não me recordo daquele bigode, aquele prolongado que varria com esmero a suas palavras de pouca umidade. Só de foto, conheço o bigode. Os braços para trás, as mãos, na base da coluna, cerrando um elo. Sua boina no alto da estante alta. O arrastar prolongado das solas contra o chão. As balas de menta, os doces de leite. A cômoda e as gavetas de onde as guloseimas brotavam. A cadeira de balanço. O meu diagnostico menino de um leve cheiro a peido no assento – que não me recordo, mas garantem que fiz. O meu avô na cadeira assistindo o futebol, o jornal, uma coisa que me escapa.
Dá bença aqui, Menino!
Não sei o meu nome naquele timbre antigo, na língua tão própria do meu avô quando dizia:
Essa é a mão de limpar a bunda! A mão da bença é a outra!
E eu dava a mão da bença. Deus te abençoe! E a sua coleção de latas e os potes intermináveis cheios de anéis de latas e as galinhas no quintal e as frutas nas árvores do quintal. Aquele cômodo que sei – por intermédio – era o banheiro antigo. O cheiro marcado quando, depois da cozinha, seguindo pelo corredor, descia-se a escada de degraus largos e chegava-se aos fundos. A sua calvície, as trincheiras que o tempo cavou no seu rosto para plantar os anos e o peso dos anos.       
Sei que foi à guerra.
Era outra época. É fácil esquecer do segredo nas suas idades, mas eu não. Imagino o medo e a honra – se havia – tentando cobrir o receio e a saudade. O exército no senhor. Todas as coisas militares no senhor. O fim da guerra. A volta para casa. O caminhão de fretes. Em algum lugar, uma livraria. A oficina. Motorista, o senhor. Os seus filhos e a sua esposa e o pai e as irmãs e o irmão da sua esposa. Os seus filhos.
Que haveria de passar na sua cabeça, Vô?
Aqueles olhinhos miúdos. Aquelas crias todas a crescer e a subir mundo acima. Um brincalhão, um responsável, outro muito sério. Uma brincalhona, uma responsável, outra muito cheia dos modos. Na sua cabeça, na gruta daquele menino crescido sem mãe, moço único de algumas irmãs. E a sua mulher sempre a te ensinar tanto. Que conversas vocês? Que vergonha você sentiu? Quando sentiu? Que espantos teve? Quantas novidades o coração te contou e, sabendo, preferiu não dizer? Quando o primeiro neto te fez, pela primeira vez, avô e não pai – nunca mais pai – o que a noite e o silêncio contaram?
            O senhor e o cafofu em construção.
            O senhor e o cuidado com as filhas e o trato com os filhos. O senhor e a secura com eles e com as coisas deles e com as maneiras de cada um. O senhor e as várias histórias e os casos do senhor agora, depois de tudo, quando as formas ganham número e a integridade dos episódios parece cheia de realidade. O senhor na memória dos mais velhos, na memória dos mais novos, nas memórias conjugadas. O senhor, meu avô, que nunca foi pai de ninguém.
            Talvez,
            com certo espanto,
eles entendam – um dia ou depois – que aquele pai, nunca foi o meu avô. Que o meu avô, talvez, nem se quer tenha sido parente deles. O meu avô era um senhorzinho que percorria continuamente um corredor de retratos emoldurados, passando pela estante das Barsas, chegando ao pé da escada e voltando – em patrulha, resguardando a porta da cozinha, do banheiro e a entrada dos quartos. O meu avô era o menino antigo a gangorrear numa cadeira cheia de almofadas. Era um senhor de bermuda e sandálias, de braços para as costas e mãos enlaçadas, que tratava-me bem – muito bem, que dava-me balas e bênçãos, que chamava a minha avó pelo segundo nome – nunca “avó” ou “dona”, que era sério - isso é verdade - mas que não economizava sorrisos moderados – com o rasgo fino da boca, com os olhos forrados, com o posto que ocupava.
Quando morrer aquele diabo e os jornais todos anunciarem, vou me lembrar do meu avô. Quando ele morrer, aquele diabo de tantos livros, vou me lembrar desse texto, dessa coisa pequena sem nome no corpo – nem crônica, nem conto,
nem sei.
            Quando morrer aquele diabo, direi a um conhecido: ele se parecia tanto com o meu avô. Que avô? Dirá o conhecido. O que – dizem, por um engano comum – foi pai dos meus tios e do meu pai e das minhas tias. O seu avô por parte de pai? Dirá o conhecido. Não, meu avô por minha parte e avô também dos meus primos e das primas dos meus primos. Por parte nossa, o nosso avô.

Essas linhas deveriam ser para
o escritor português António Lobo Antunes,
mas
ele se parece tanto com o meu avô.

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