quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Aos cuidados do Sr. Reis

Para o inferno, Ricardo, não vou mais me sentar à beira daquele riacho, daquele minguo d’água, miúdo como só, passando com esforço pelo calor, entre os copos e as embalagens e os restos de tudo. Que o meu sossego correu com a enxurrada e foi-se. Já não aguento o cheiro pesado daquele lugar que somos nós à borda de nós mesmos. Não é preciso aprender que a vida passa, porque ela passa e não a podemos apreender. Criança adulta, você não sabe, talvez nunca saiba, mas para enlaçarmos as mãos é preciso muito mais do que o laço e os dedos e os nós e as palmas sufocadas.
Como haveríamos de desenrolar as mãos, quando nunca tivemos as mãos enroladas, Ricardo? Como, se afogamos - secos - as linhas do destino e do coração - uma contra as outra - sem jamais permitir que os filetes desaguassem, se jamais permitimos que a correnteza transladasse as margens e fosse, por um segundo ao menos, dar naquele mar distante, mais longe que os deuses todos, além de qualquer cosmogonia e de qualquer entendimento?
Se acha mesmo que é assim, que o rio passa silenciosamente e sem grandes desassossegos, o que te falta são os olhos e um bocado de vista. Escapou da sua paciência um espiar mais cuidado do rio, porque não é assim que as águas vão. Talvez, saindo em dias amenos e sempre nos mesmos horários,
como são amenas e pontuais as suas coisas,
tenha lido no rio apenas o rio que te convinha ler. Da última vez que te vi, naquele bar com a Neera, eu desci a rua de sempre, a chuva caiu como se Urano, sem jeito e podado, quisesse ter com Gaia outra vez, e cada gota era um oceano inteiro e eu velejava, muito roída por dentro, entre a tormenta, o vento sacudindo as árvores e cantando as esquinas. O rio, Ricardo, corria furioso, arrastava tudo, consumindo as margens, era fechado como a noite, nada se via daquele fundo antigo e verde, era só um destempero sem normas, uma força na força que tinha, tragando as folhas e as cobras e as formigas e o mato.
Nada se refletia sobre a superfície,
nada se mostrava na fundura, era só violência engolindo o que o céu despejava.
Houve uma vez, você não estava aqui, a chuva faltou durante alguns meses. O rio, de tão diminuto, acabrunhaou-se, fechou-se para dentro da terra, e sumiu. As margens tomaram conta de tudo e era tudo margem, sem rio. As flutuações desceram a ladeira e, depois da beira - que já não era - tudo se assentou e o fundo deixou de ser fundo, e a superfície era superfície absoluta. O rio passava ainda, mas não se via o rio passar. Dessa maneira, se acha mesmo que é sossego e silêncio o que reside ali, o que te falta é vivência de rio, é aceitar que há de tudo no correr das águas.
Ricardo,
nas manhãs de quinta, quando a semana é quase inteira e o cansaço já encontra razão nas menores coisas, o rio corre de amores; às vezes, às segundas, se a rotina começa colhendo um ramalho no pé-d’água, retirando de leve uma garoa fina, o rio ensaia ódio e crispa; se continua, no sábado, é um dilúvio, as moradias de perto são possuídas, a paixão liquefeita toma os corpos da beira e a voz da corrente se altera; o rio, deixando de lado a promessa de um oceano para lá do desemboque, vira mar, ganha onda e convoca embarcações de grande porte.
Se te serve esse amor de “poder” sem nunca encontrar, sem nunca poder, se te parece assim o movimento das águas, mal reconhecerá o que é mover-se ou estar parado. Não é possível, para mim, que sentemos um ao pé do outro e, assim, fiquemos vendo e ouvindo o rio. Eu tenho de trabalhar e comer e morar, tenho de correr atrás de uma largura maior que a minha, um descampado aberto e vasto - uma outra margem.
Ou nos largamos,
e vamos cada um ter com o próprio curso,
ou nos enlaçamos, e vamos ter - caudalosamente - um no curso do outro, correndo juntos para um mar impossível de beiras impraticáveis, sabendo ainda que somos dois a disparar como um.
Tem ainda aquilo das “flores”.
Não vou pegar nas “flores”, nem “deixá-las” sobre o meu colo. Essa história de não crermos em nada é inteira uma batota, um jeito seu de escorregar. Eu acreditei em muitas coisas, em coisas demais, e você, ainda que não acreditasse em nada, acreditava que não acreditava em nada e na crença de que ia me ter alí, menina moça na beira, confinante e confidente, rente - sempre - da sua falta de ânimo e de ação.
Éramos pagãos, sim,
somos,
mas a inocência era inteira minha, você fazia de insuspeito e virtuoso.
Você, no futuro, não será sombra de antes, porque foi sombra, sempre se manteve no indício, sem um passo que te desse contorno, sem uma passada que fugisse ao vulto - a todo momento assombrado e nunca esclarecido. Na lembrança, você arderá como as centopeias, queimando sem que a chama se apresente, com todos os passos na ferida, lacerando e se movendo. Será um traço cada vez mais apagado sobre a minha pele, sobre a capa dos meus dias, porque nunca atamos a face, nunca amarramos com os braços o corpo, cingindo o ventre na fome da tempestade. “Nem nos beijamos”, você diz, mas já éramos mais do que crianças e não se deve, sendo árvore, agir como broto, negando o fruto de abrasar, se a flor em botão arma - ignescente - um gesto de alvorada.
Se a morte - essa que você tanto evita e contorna - vier primeiro aqui, se ela me encontrar já velha, ou moça ainda, riremos juntas da sua desgraça, que é ser um péssimo leitor das águas, que é encenar mal o papel dos rios, ator fajuto, menino velho, doutor sem remédio. Você não sofrerá, ou, na covardia imensa de não nascer, dirá que não sofre para não sofrer - como é, de fato, a sua maneira de parir o mundo.
Pobre Ricardo,
tão senhor da própria desventura,
poeta cego escrevendo as guerras e a viagens de antes, impossibilitado de meter os olhos na crueza do agora, no cavalo de madeira que adentra os muros do corpo - quando a noite tomba - travestido de regalo, embrulhado no mimo e nas intenções. Você verá, cedo ou tarde, Sr. Reis, que o rio - mesmo ele - leva consigo as flores e os detritos, os frutos e os ciscos, as sementes e os sedimentos; que, no passeio, mesmo ele, carrega enquanto passa. Só então entenderá,
talvez,
que os passos em volta, essa maneira sua de falar em ciranda, não é mais que uma ilusão de estar parado: um corpo que, sendo levado pela correria, tem a impressão de que não se move e de que assiste, nas margens, o mundo correr.

Fique bem.
Da “pagã triste”,
Lídia

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