Dizer que alguém é neurótico talvez não soe como um elogio, mas ter consciência de que se é um e saber usar esse “estereótipo” a seu favor, ora... aí sim é genialidade. Assim parece ser Woody Allen, um neurótico incorrigível que esbanja alteregos pelas suas centenas de personagens. Recentemente em Cannes ele se descreveu dessa forma: “As pessoas sempre se enganam em duas coisas sobre mim: pensam que sou um intelectual (porque uso óculos) e que sou um artista (porque meus filmes sempre perdem dinheiro)".
Simpatizando ou não com esse senhor de quase 75 anos, ninguém pode negar que Allen tem um currículo invejável, ganhou muitos prêmios e construiu uma carreira de grande projeção no cinema mundial. Vejam os números: 48 filmes, entre 1965 até 2010; 12 livros, entre 1965 até 2007 e em média 80 premiações ou indicações das mais diversas possíveis.
Lembro-me bem de quando fui ao cinema assistir The Purple Rose of Cairo, 1985, (A Rosa Púrpura do Cairo): em poucos minutos de filme senti que estava diante de algo especial, ousado e de grande espirituosidade. Logo de cara comprei a idéia de Allen, viajei com ele na inusitada história de amor, ocorrida na época da Grande Depressão nos Estados Unidos, entre Cecília, uma ex-garçonete desiludida, e o protagonista do filme. Cecília, logo após perder o emprego, adquire o hábito de freqüentar o cinema sempre para assistir o mesmo filme. Na quinta vez que ela está no cinema, o protagonista do filme a percebe, sai da tela e em seguida lhe faz uma proposta totalmente nonsense: a de entrar na história com ele para viver novas sensações. O ilusório e imaginário é desmontado, as espacialidades e as temporalidades se unem em um momento sublime do cinema. Fato semelhante já havia sido vivenciado em Les Carabiniers, 1963, de Godard.
Esse desejo de entrar em um filme não parece ser somente um fetiche de Cecília. E é por esse viés que Allen faz esse absurdo fazer algum sentido. Desde os experimentos de Méliès e a consagração dos irmãos Lumière, que os espectadores das salas escuras (atuais cinemas), possuem esse desejo utópico e fascinante de viver as emoções dentro, literalmente, do filme. Como na alegoria da caverna de Platão, onde a projeção dos desejos e inquietudes do homem prisioneiro eram projetadas por um pequeno feixe de luz na parede escura de onde se apresentava o mundo paralelo. Essa projeção tinha o poder de amenizar as mazelas do corpo e da alma, liberando o homem, momentaneamente, das suas prisões internas; metáfora da escravidão da humanidade pela ignorância. Cecília, a personagem do filme de Allen, vivia aprisionada num casamento frustrado, sem emprego e sem amor. O cinema era o mundo mágico no qual ela podia vivenciar momentos de transposição, de sua medíocre realidade para a grande magia da tela. A cada ida de Cecília ao cinema era uma oportunidade de invadir esse outro espaço, esse outro tempo e inserir-se em uma outra história, menos torpe que a sua.
O ato de derrubar a quarta parede pressupõe uma nova relação com o espetáculo, instigando o espectador, tornado-o atento e participativo para interferir no espetáculo. Esse formato se contrapunha à idéia do puro ilusionismo, como o exposto na teoria do drama de Konstantin Stanislavski. Bertold Brecht trabalhava no sentido de acordar o espectador de sua passividade de mero expectante. O distanciamento brechtiano propunha esse novo exercício do olhar, o de estranhar o comum, o óbvio, oferecendo no lugar do conformismo uma indagação, um conflito que evidenciaria em um novo fôlego para encarar as situações desgastantes do cotidiano. Brecht, costumava parar suas encenações para conversar com o público a respeito de algumas passagens das cenas, chamando-os à ação, distanciando-os da mesmice para aprenderem o olhar amplo, de novos ângulos, menos sentimentais e mais racionais. Cecília, a personagem de A Rosa Púrpura, vive a derrubada da quarta parede. Em, Whatever Works, 2009 (Tudo Pode Dar Certo), o filme de Allen em cartaz no Brasil, o distanciamento ocorre, principalmente, pela narração da personagem protagonista Boris Yellnikoff (Larry David), um velho rabugento, sistemático, hipocondríaco e realista que acredita que nada no mundo tem jeito. Após separar-se da mulher, vive sozinho com seu mal humor, até que um dia, voltando para casa, conhece Melodie (Evan Rachel Wood), uma jovem bonita, sulista, que aparece perdida em Nova York e lhe pede abrigo por um dia. Um dia vira um mês e esse convívio inusitado expõe, ao mesmo tempo, todas as neuroses de Boris em contrapartida a ingenuidade e limitações de Melodie. A jovem passa a admirá-lo e amá-lo pela sua genialidade racional, que para ela soa como uma possibilidade de mudança de sua antiga e pacata vida de interiorana para algo surpreendente.
Woody Allen admirava o cineasta italiano Federico Fellini e é possível ver traços de semelhanças entre as personagens de Allen e as do diretor italiano. Em A Rosa Púrpura do Cairo, a desiludida Cecília tem a chance de viver intensamente uma história de amor com uma personagem de um filme; em Lo Sceicco Bianco, 1952, de Fellini, Wanda tem um desejo secreto de ir a Roma para conhecer pessoalmente o personagem principal de uma fotonovela por quem guarda uma grande paixão. Wanda, durante sua lua de mel em Roma, desconsidera seu recém marido e foge sozinha em busca do personagem da fotonovela. Após uma aventura sem sentido, ela retorna arrasada e decepcionada ao perceber que o Sheik é somente uma personagem interpretada por Fernando Rivoli, um ator, um ser humano dotado de conflitos, medos e limitações. o Sheik Branco é desmistificado por Wanda. A relação desses pares: Wanda e o Sheik em Lo Sceicco Bianco, Cecília e o protagonista, em a Rosa Púrpura do Cairo e Melodie e Boris, em Tudo Pode dar Certo, mostram-nos personagens perdidas à procura de fantasias de amor e de algum sentido para a suas vidas. O ídolo cumpre esse papel quase social numa relação.
Outro traço de semelhança entre os dois cineastas evidencia-se na narração de Boris em Tudo Pode dar certo e Orlando em E La Nave Va, 1983, de Fellini. O narrador-personagem Orlando, conversa numa subjetiva com os espectadores do filme, que somos nós. O olhar para fora da tela faz-nos lembrar da narração de Boris pelo domínio de espaços e tempos distintos demonstrados na narrativa. No filme, Boris e Orlando contam a história cara a cara com o espectador, como uma personagem onipresente e brechtiana. Acontece aqui a derrubada da quarta parede que provoca um estranhamento no espectador, um (Verfremdungseffekt), como dizia Brecht.
O mais interessante é que Tudo pode Dar certo é um filme leve, uma comédia ácida e ultrajante que toca em assuntos polêmicos como a descoberta de Marietta, a mãe da garota Melodie, igualmente sulista, desacostumada com a cidade grande e bastante religiosa, que vem passar uns tempos com a filha na casa de Boris e, no decorrer do filme, muda totalmente sua concepção de mundo. Essa personagem parece também sair da escuridão da caverna de Platão e adentrar num mundo mais amplo e diverso.
Em Tudo pode dar certo, Allen mexe com as estruturas convencionais do drama, tocando em assuntos de ordem social, religiosa e cultural; abala a mesmice e mostra-nos que é possível a convivência de seres com diferentes concepções de mundo, em um mesmo lugar e espaço. A imprevisibilidade dos algoritmos vão além do nosso pensamento limitado, tudo pode ser relativo, qualquer coisa pode acontecer. Boris, afinal, não muda suas certezas, o seu realismo pessimista do mundo continua inabalável, no entanto, passa a questionar o provável e coloca em cheque o acaso. O convívio é possível, a imprevisibilidade é uma realidade, afinal Tudo Pode dar Certo, porque, como constata-se na entropia, o estado natural de tudo é o caos. Porém, não termina assim, pois mesmo o caos tende, com o passar do tempo, a alcançar uma outra organização de existência. Bom Filme!
Kátia Peixoto é doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Mestre em Cinema pela ECA - USP onde realizou pesquisas em cinema italiano principalmente em Federico Fellini nas manifestações teatrais, clowns e mambembe de alguns de seus filmes. Fotógrafa por 6 anos do Jornal Argumento. Formada em piano e dança pelo Conservatório musical Villa Lobos. Atualmente leciona no Curso Superior de de Música da FAC-FITO e na UNIP nos Cursos de Comunicação e é integrante do grupo Adriana Rodrigues de Dança Flamenca sobre a direção de Antônio Benega.