Sou ou não sou? Eis a questão!

   
Por Yone Ramos Marques de Oliveira


Em 2008, Katy Perry fez grande sucesso nas paradas com um clipe super divertido sobre um caso de amor bipolar. A música "Hot n Cold" conta a história de um homem que muda de humor constantemente e nunca sabe o que quer: não sabe se vai, se fica, se casa, se termina, enfim, um transtorno para a vida da garota. Pois é, não é só a famosa que sofre com esses problemas: aposto que você, leitor, está dando risada e pensando " é, conheço alguém assim!". E confesso, eu conheço muitas pessoas assim!!! Daí, surgiu a idéia: por que não levar aos leitores um pouquinho de loucura para agitar os neurônios desse sábado?!

Ousadamente vou afirmar que, se no período Romântico, o mal do século era a depressão, o mal da nossa sociedade é a bipolaridade: até o tempo se tornou bipolar. Brincadeiras a parte, estou falando não apenas de uma realidade social como de uma estimativa para as próximas décadas. Em dados divulgados na Primeira Cúpula de Saúde Mental realizada na Grécia em 2009, a OMS (Organização Mundial da Saúde) estimou que a depressão será a doença mais comum a nível mundial até 2030, pois, enquanto as doenças fisiológicas são superadas através de tratamentos medicamentais e tecnologia, as doenças mentais resultantes da conjectura social urbanizada tendem a aumentar, principalmente para as pessoas de baixa renda. Enquanto muitas cidades rurais nem mesmo possuem clínicas psiquiátricas, o aumento considerável de clínicas nos centros urbanos indica que estamos falando de um colapso psíquico social ligado ao capital.

Isso significa dizer que, a sociedade globalizada ao dinamizar as atividades cotidianas em prol das relações comerciais e mercadológicas, prejudica as funções fisiológicas do ser humano e as relações sociais, e acaba por oferecer, no âmbito de saúde mental, uma vida estressante e propícia ao desenvolvimento de transtornos mentais relacionados à ansiedade, depressão, bipolaridade e outros.

Segundo uma Pesquisa Clínica no Brasil por Marco Antônio Zago, atualmente 30% da população adulta no Brasil têm prevalência aproximada de transtornos mentais. A mesma pesquisa aponta através do índice YLD (Year Lost for Disabilities) que 5 entre as 10 condições de maior incapacidade do mundo, são devidas a transtornos mentais. Ainda, conforme dados da OMS, aproximadamente 450 milhões de pessoas sofrem de transtornos mentais variados em todo o mundo hoje. Haja medicamento e clínica psiquiátrica!

Mas, há muito que se pensar a respeito dessas pesquisas e dos dados citados: conviver com uma pessoa bipolar é uma tarefa difícil e que requer muita habilidade. Na vida real, além da dificuldade de convivência, é muito difícil distinguir até que ponto uma pessoa com mudanças constantes de humor é mentalmente doente e necessita de acompanhamento médico, e até que ponto estamos falando de personalidade e da reação comum do ser humano às adversidades encontradas na vida. Existem vários tipos de depressão, dentre elas a monopolar (termo usual) e a bipolar (termo técnico). A bipolar é a depressão que intercala momentos de mania e hipomania com momentos de depressão. Mania e hipomania são quadros de euforia, alegria demasiada, mania de grandeza etc. Daí, minha escolha pela bipolaridade e não pela depressão. Por que, quem já leu o brilhantíssimo texto de Machado de Assis, "O Alienista", e que provavelmente morreu de rir, há de convir que o escritor fazia uma crítica à sociedade emergente (propriamente burguesa) que cria suas próprias regras e suas próprias loucuras. Daí, podemos seguir para uma conclusão textual.

De fato, quando a OMS se pronunciou sobre o assunto, ela demonstrou uma preocupação acima de tudo, econômica: pois os problemas mentais não só acarretarão redução na produção como também dimanarão dos governos altos investimentos em medicamentos e tratamentos para a população. Uma preocupação mercadológica, claro! Hoje, qualquer pessoa que passe em clínica psiquiátrica, mesmo que por esporte, sairá de lá com um medicamento, seja um calmante a base de ervas, seja um tarja preta controlado pelo governo. Isso por quê o mundo globalizado não pode parar: e você não pode sofrer a perda de um filho, você não pode odiar seu ex marido, você não pode ficar estressado por problemas financeiros. Se você sente essas coisas, você sofre de algum transtorno mental, então você é um louco! Sem contar que, sua doença mental é super lucrativa, uma consulta com psiquiatra está em torno de R$200,00 e muitos medicamentos estão pela mesma faixa de preço.
Já reivindicava a Pitty na música "Admirável Chip Novo": quem não sente nada é robô (novas tecnologias: sem comentários). Para a sociedade globalizada, os sentimentos humanos naturais são prejudiciais ao mercado e daí essa esquizofrenia social de classificar todo mundo como doentes mentais. Todo mundo passa por “bipolaridades” na vida, que são reações ao mundo externo, porém o que antigamente era considerado naturalmente pós traumático, hoje é considerado como uma doença, ainda que pós traumática.

Alto lá: não somos robôs e as emoções fazem parte do ser humano, até o desespero. O que diferencia um doente de uma pessoa com problemas naturais é a compulsividade e obsessão, e isso é algo que a sociedade precisa se conscientizar antes que todos parem no hospício. Deve ser considerado doente mental aquele que se apresenta como uma ameaça real à sociedade, e real que eu digo não é deixar de produzir, mas é quando uma pessoa pode ferir inconseqüentemente outras pessoas ou se torna incapaz da convivência em grupo, porque convenhamos: de gênio e louco, todo mundo tem um pouco!










Yone Ramos Marques de Oliveira, teóloga e historiadora, escreve aos sábados, quinzenalmente no ContemporARTES.

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Veja hoje Teatro Virtual: Eróticas de Back!

SYLVIO BACK ESTREIA NO TEATRO PARA ALGUÉM COM POEMAS ERÓTICOS

O cineasta e poeta Sylvio Back estreia hoje no Teatro Para Alguém encerrando com chave de ouro a primeira edição do “Teatro 1 ½ - um e-mail”, o primeiro site de teatro virtual do país com peças inéditas e ao vivo. Em parceria com o site Cronópios receberemos esta semana Sylvio Back com os poemas eróticos “As mulheres gozam pelo ouvido”, com participação especial do próprio autor. No elenco Gilda Nomacce, Fernando Alves Pinto e Regina França.

“Desde a primeira hora, reconheci a pertinência do canal de difusão proposto ao site Cronópios, albergando a original plataforma do Teatro para Alguém, dirigido pela diretora e atriz, Renata Jesion, de dramatizar excertos literários e poemas pela Internet. O incomensurável alcance dessa revolucionária mídia é a mais bela homenagem que se poderia prestar à poesia, em especial, ao poema erótico-fescenino, via de regra censurado e censurável, quando não literalmente proscrito pela mídia, críticos, editores e livrarias.”, comenta Back.

Elogiado por críticos como Felipe Fortuna, Xico Sá, Marcelino Freire, Luci Colin, Décio Pignatari, Affonso Romano de Sant'anna, Douglas Diegues, Regis Bonvicino, Moacyr Scliar e João Ubaldo Ribeiro como um dos melhores poetas eróticos da atualidade, Sylvio Back é autor de livros que fazem parte deste raro segmento. Entre as obras do autor estão "O caderno erótico de Sylvio Back" (Tipografia do Fundo de Ouro Preto, MG, 1986), "A vinha do desejo" (Geração Editorial, SP, 1994), "boudoir" (7 Letras, RJ, 1999) e "As mulheres gozam pelo ouvido", Demônio Negro, SP, 2007), além da de uma coletânea inédita que será publicada ainda este ano, com o título "Hóstias de Eros".

A direção do espetáculo é de Renata Jesion. A estreia de “As mulheres gozam pelo ouvido” será hoje, 04.06, 21h, 21h15 e 21h30. Após apresentação os internautas podem participar de um chat com o autor e todo elenco.


Sobre Sylvio Back
Cineasta, poeta, escritor e roteirista. Diretor de 37 filmes (onze longas-metragens), acaba de concluir "O Contestado - Restos Mortais", em preparo cine-biografia de Graciliano Ramos. Sylvio Back também é o autor de onze roteiros de cinema e sete livros de poemas, tem no prelo, "Guerra do Brasil", livro de contos sobre a Guerra do Paraguai (Editora Topbooks, Rio de Janeiro).




Sinopse: AS MULHERES GOZAM PELO OUVIDO

"As mulheres gozam pelo ouvido" é o que o autor, o cineasta-poeta, Sylvio Back, define como uma ousada incursão do poema aos precipícios do corpo e às estripulias do ato sexual, tudo regado a imagens picantes e lúbricas cheias de amor e humor. A poesia empurece qualquer palavra.


Ficha técnica:
Autor: Sylvio Back
Elenco: Gilda Nomacce, Regina França e Fernando Alves Pinto
Direção: Renata Jesion
Fotografia: Nelson Kao
Estreia: 04.06. 2010
Duração: 1min30seg
Apresentação ao vivo: 21h, 21h15 e 21h30
Local: Sala de E-Star do www.teatroparaalguem.com.br


Sobre o Teatro Para Alguém
O Teatro Para Alguém (www.teatroparaalguem.com.br), é o primeiro canal de entretenimento via internet do país totalmente inovador e gratuito, que permite ao internauta visualizar espetáculos de qualquer lugar e a qualquer hora. O site foi criado há dois anos em formato de uma casa e os espetáculos estão divididos pelos cômodos – que traz cada um sua estética e periodicidade própria. Com apenas um ano, o projeto recebe em média 50.000 visitas mês e conta com grandes produções como “Corpo Estranho”, primeira e segunda temporada, de Lourenço Mutarelli (autor do filme “O Cheiro do Ralo”), “Por conta da Casa”, de Sérgio Roveri (jornalista e autor de peças como Vozes Urbanas, O Encontro das Águas e a comédia O Eclipse e foi o ganhador do prêmio Shell de dramaturgia em 2008), "121.023J", de Renata Jesion (atriz, autora e diretora); Maçã Argentina, de Índigo (escritora, autora dos livros infanto-juvenil Saga Animal, entre outros) e Anúncio, de Richard Haber. Além dos idealizadores Renata Jesion (diretora e atriz) e Nelson Kao (fotógrafo), estão à frente do projeto os atores da Cia Auto-Mecânica de Teatro: Zemanuel Piñero e Lucas Pretti e o diretor de teatro Danilo Marques.



Sobre o Portal Cronópios
No ar desde março de 2005. O site teve o seu nome inspirado no famoso livro do escritor argentino Julio Cortázar, Histórias de Cronópios e de Famas. Os “cronópios” são seres imaginários criados pelo grande mestre da chamada Literatura Fantástica. Hoje o site recebe aproximadamente 110 mil internautas por mês que apreciam artes e a literatura em particular.

http://www.imagemcom.com/.
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MARTÍN CHAMBI - O POETA DA LUZ


O Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba, inaugurou no final de abril, a exposição Martín Chambi – O Poeta da Luz. Com curadoria da argentina Leila Makarius, a mostra permanece em cartaz até o dia 26 de junho e reúne 88 fotografias em preto e branco, produzidas pelo fotógrafo entre 1920 e 1940.

Martín Chambi (1891-1973) nasceu numa pequena aldeia dos Andes, de uma família camponesa de Quéchuas. Depois de trabalhar durante alguns anos em uma mina de ouro, Chambi tem a oportunidade de se estabelecer na cidade de Arequipa, onde se torna assistente em um estúdio de fotografia.
Em 1920, dirige-se a Cuzco e monta seu próprio estúdio de fotografia.
Assim, durante mais de 20 anos, enquanto fazia seus trabalhos em estúdio, fez inúmeras viagens na região andina, produzindo milhares de fotografias, das quais algumas entraram para a história da fotografia. Foi, provavelmente, o primeiro a fotografar a região dos Andes peruanos com técnicas modernas, aspirando à artisticidade.


Durante esses anos, Chambi formou uma coleção única composta por cenas da vida quotidiana dos povos locais, várias imagens de Cuzco e das paisagens andinas, além de sítios arqueológicos. A coleção assim criada se constitui em uma fonte incomparável sobre a visão de um peruano sobre sua própria cultura: foi, talvez, o primeiro a fotografar seu povo pelos olhos de um “nativo”.
Como ele mesmo disse, em 1936, “...sinto-me um intérprete da minha raça; meu povo fala através das minhas fotografias”.

Chambi se especializou em retratos, usando a luz zenital natural em estilo dramático e adotando algumas convenções do Pictorialismo: sua fotos, sempre em preto e branco são “posadas”, indicam um olhar muito distante de alguém que quisesse revelar a vida “como ela era”.
Para além da naturalidade das coisas, das pessoas e da vida em si, estava um olhar que procurava registrar o que, talvez, pudesse existir na imaginação de um desejo subjetivo.


Embora Martín Chambi tenha sido um dos nomes fundadores da fotografia latino-americana, e tenha, realmente proposto um “estilo” muito pessoal, sem dúvida, ele respondia à uma demanda social e cultural da sua época e do seu país. Assim, é possível destacar algumas características da sua prática fotográfica:

1. Desejou, sobretudo, mostrar as pessoas, em ambientes e situações tão diversificados como, de fato, era a vida no seu tempo e espaço de uma nação periférica, especialmente como o Peru, com regiões tão marcadas pelas diferenças étnicas, geográficas, climáticas...

2. Seu trabalho, neste sentido, explora as nuances da luz, numa composição de claro/escuro, excepcionalmente adequada para acentuar as expressões faciais, corporais, e, também, relevos e reentrâncias tanto do espaço físico quanto aquele, podemos supor, da “alma coletiva peruana”.

3. Não era raro que Chambi pedisse, em seus retratos de grupo, às pessoas para posarem enquanto ele se movimentava no espaço, buscando fotografá-las sob diferentes ângulos. Chambi contextualiza sempre com uma composição ampla, incluindo a paisagem no segundo plano.

4. Dramaticidade, que, aliás, faz parte da cultura peruana como um todo: estamos diante de situações-limite (exclusão/inclusão), personagens-limite (ocidental e indígena), narradores-limite, ou seja, entre o mito e a utopia da diversidade.

5. Chambi se mostra um narrador, reiventando sua cultura através da sua câmera, a partir de vários ângulos, que se revelam quase como uma mitologia : são, como diz Lévi-Strauss, versões de um tema recorrente: a diversidade como tema e recurso identitário.

6. Assim como tantos escritores, poetas, pintores, dramaturgos e intelectuais em geral buscaram compreender o País, poderíamos dizer que Chambi deixa transparecer nas suas fotografias aqueles temas sobre os quais se debruçaram tantos ensaístas peruanos e, porque não dizer, latino-americanos, a saber: a questão democrática, o problema nacional e a questão indígena.

7. A questão democrática coloca em confronto a tradicional oligarquia hegemônica e as forças burguesas, que, ao não realizarem a revolução democrática, acabaram resvalando para um populismo que, no caso de Chambi, nos é mostrado através de um protagonismo explícito, composições figurativas de um “povo” que não se havia ainda constituído enquanto coletivo na sua época. O que os une nestas imagens é a paisagem, único elemento indiscutivelmente compartilhado, patrimônio nacional.

8. O problema nacional, especialmente durante as primeiras décadas do século passado, auge do ensaísmo político, reitera a discussão de como a elite indígena foi destruída ao longo dos séculos e, como, após a Independência, as elites dominantes perderam sua identidade como indígena. Neste sentido, o que a fotografia de Chambi nos mostra é seu desejo de construção de uma nacionalidade, apoiada na integração política, social e cultural.

9. A questão indígena perpassa todo este material fotográfico, de variadas maneiras: o povo, a paisagem, e os valores culturais.


Fontes:
MON- Museu Oscar Niemeyer (Curitiba-Pr)
Profa. Selma Baptista (Antropóloga)


Legendas:
Foto1- Retrato de Martí Chambi
Foto2- Camponeses e Padre
Foto3- Mulheres Indígenas
Foto4- Casamento

Izabel Liviski,  é professora e fotógrafa, doutora  em Sociologia pela UFPR. Escreve a Coluna INcontros desde 2009 e é também co-editora da Revista ContemporArtes. 
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O grande irmão (Thais Lassali)


A Comunidade Sonora, através das ondas eletromagnéticas do pensamento, materializada nessas linhas, continua sua programação normal. Sintonize aí direito o Mhz da nossa estação no seu dial. Hoje vocês vão ficar (atenção, aumentem o volume!) com o texto da Thais Lassali sobre o Big Brother da T.V. Globo. Bom como não assisti a nenhum dos episódios não posso dar muito palpite, mas me parece que a discussão extrapola os limites da telinha e cai no colo da sociedade. Gostei do texto Thais!!!

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Todos sabem que o programa Big Brother Brasil sempre foi um programa polêmico. Na fila do banco, na espera da manicure, nas rodas de barzinho, as discussões sobre o participante mais inteligente, mais carismático ou mais merecedor da vitória sempre foram acaloradas. Porém, tenho observado que esse tipo de discussão tem adentrado o mundo acadêmico. No início era taxado prontamente de programa vazio com o fim claro de tapar os olhos da massa. Não que ele não possa ser isso também, mas, com o tempo, percebeu-se que as opiniões populares, as ações do Mr. Edição e muito do que acontece “na casa mais vigiada do Brasil” refletem problemas brasileiros.




Dentre os dez vencedores existem apenas duas mulheres, e olha que não faltou participação feminina nas finais. Alguns deles são mulatos, mas um negro-negro nunca ganhou o programa. Apenas um dos vencedores é declaradamente homossexual, mas o tema, na época, foi ignorado pela Rede Globo. Como se não bastassem as constatações acima: parte da torcida do vencendor da edição desse ano era taxativamente preconceituosa, tendo, inclusive, espalhado pela internet dizeres ameaçadores e homofóbicos.



Percebam, por mais qualquer coisa que fosse Marcelo Dourado, o grande problema não é ele e só ele apenas. Há espaço pra esse tipo de pensamento na nossa sociedade, assim como não há espaço pra vencedores negros ou mulheres. O participante em questão é só a ponta de um iceberg que, de repente, veio à tona e saltou aos nossos olhos. Um iceberg dentre tantos outros que estão por aí, escondidos, esperando para serem observados e combatidos.




E ainda dizem que o Big Brother só fecha nossos olhos...


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DE PEÕES E REIS


Uma das tarefas mais árduas em literatura é escrever um bom conto. Além de muita imaginação, personagens bem elaborados, há que ter um final inesperado e linguagem que amarre o começo,meio e fim. Assim faz o nosso colaborador dessa semana, Fabrício Tavares de Moraes que  nasceu na cidade mineira de Juiz de Fora, onde vive até hoje. Graduando em Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora, atua como pesquisador-bolsista desta instituição, tendo publicado ao longo de três anos vários trabalhos crítico-teóricos sobre a poesia brasileira e africana contemporâneas, recebendo por estes premiações nacionais. Atualmente, empenha-se na publicação de uma coletânea de contos escritos nos últimos dois anos, cujo nome (provavelmente) será "Fragmentos de caos".
Blog (recente): http://fragmentosdecaos.blogspot.com/




DE PEÕES E REIS



O asilo onde o Sr. Osmar residia precariamente era um antigo casarão que havia passado por incontáveis reformas até chegar àquele estado também precário de então: o exterior do prédio refletia o interior de seus moradores.

Os dias – que pareciam ser um só dia – passavam todos da mesma forma e com a mesma lentidão: com dominós, damas e partidas de xadrez para aqueles que ainda possuíam alguma racionalidade, não tendo se entregado de todo ao domínio do ilógico.

O cheiro de doença e remédios, o farfalhar de pantufas encerando o repisado chão, a má vontade e apatia das enfermeiras e dos outros ajudantes: tudo aquilo pareceria o nono círculo do Inferno para quem tivesse o mínimo de sensibilidade ainda. Sr. Osmar era um desses miseráveis que ainda é capaz de pensar e conseqüentemente de sofrer. No presente momento, está entretido em uma acirrada partida de xadrez com o seu rival – apenas quando se trata de disputas de jogos de tabuleiros -, mas também fiel amigo Benjamim. A mão no queixo, o óculos na extrema ponta do nariz e aquele constante e repugnante ruminar comum aos que já não possuem arcada dentária. A cabeça de Sr. Osmar não estava idônea para elaborar estratégias e procurar antever os movimentos do oponente, pois estava perdida em outros pensamentos e abstrações. Benjamim aproveitou esse ponto fraco do oponente para atacar.

Xeque-mate.

Sr. Osmar deixou o rei cair dolentemente de sua mão, movimento que fez um grande barulho no tabuleiro.



- Por que você está pensativo, meu caro amigo?

- Eu queria te contar algo muito pessoal, Benjamim.

- Pode falar.

- Deixa para depois, tudo bem? Eu quero uma revanche no xadrez...

- Certo, amigo. Temos todo o tempo do mundo... hehehe, que nada, a última coisa que temos é tempo.



Aquele que devora os próprios filhos permitiu a Sr. Osmar e Benjamim mais alguns efêmeros momentos nesta vida. Os dois estavam no quarto (cubículo!) onde Osmar dormia. Benjamim sentado na beira da cama mostrava, tanto quanto possível para um homem de sua idade, muita ansiedade em querer saber o que o seu velho amigo tinha para contar. Sr. Osmar recostava-se na cômoda usada que a sua filha – cuja imagem já se estava desvanecendo na mente do seu velho pai, devido ao tempo pelo qual ela não era atualizada pelos olhos do pai – havia lhe enviado anos atrás, assim que Sr. Osmar fora morar naquele asilo.



- Fale, Osmar. Esse meu coração velho não agüenta mais tanta coisa assim... Estou morrendo de ansiedade

- É que, é que... meu caro amigo. Estás vendo essa minha janela?

- O que tem demais nela?

- Não é o demais: é o de menos. Toda vez que eu quero esquecer de mim mesmo, eu me dirijo para ela para olhar a vida lá fora: só que não há vida lá fora. A única coisa que há é essa parede branca caiada desse prédio imenso aí da frente que atrapalha até mesmo a gente a ver o céu, que nessa época do ano é lindo...

- E o que tem isso de ruim?

- Ora essa, eu queria ver a vida, ver vida: pessoas, crianças e animais se movimentando: o viver com todo o seu dinamismo.

- Ora, homem. Você já está velho, aproveita o resto da sua vida com outras coisas. Viva sem preocupação: já sofremos a nossa medida nessa terra.

- Mas eu quero ver a vida antes que a morte chegue para mim: eu quero me opor a ela, resistir, mesmo sabendo que é inútil. Mas eu quero resistir: não quero morrer resignadamente como um covarde ou um mártir, que no fundo são a mesma coisa.

- Era isso o que você tinha para me falar, Osmar? Eu achava que era algo muito mais importante e interessante. E o que eu tenho a ver com isso? Com essa história de encarar a morte com a vida?

- É que eu preciso da sua ajuda, Benjamim... Eu quero ver a vida, e é só na varanda da diretoria que isso me será possível. Se a gente passar pelas enfermeiras da portaria, e pelo secretário do diretor do asilo, e, por último, pelo próprio diretor – que, na maioria das vezes, nunca está na sua sala – a gente chega na varanda que dá de frente pra rua.

- Pra que isso, Osmar? Que ideia maluca! Por que vamos arriscar a nossa comodidade pra fazer isso?

- Benjamim, você fala como um morto. Parece que quer ficar só no descanso eterno desse seu túmulo: ainda estamos vivos, podemos fazer isso antes de morrer.

- Osmar, você vai nos colocar em enrascada, meu caro. Esquece essa sua ideia sem nexo.

- De maneira alguma, e você vai comigo, se não, não vou ser mais o seu parceiro nas partidas de xadrez.

- Ora, bolas! Você me irrita, Osmar. Tudo bem, tudo bem... Mas se pegaram a gente, a culpa vai ser toda sua: vou dizer que você me obrigou a te acompanhar.

- Tudo bem, existe algum castigo que eles possam me imputar que seja pior do que ser um velho esperando a morte e que a única coisa que lhe é permitida ver é uma grande parede branca caiada que está cheia de marcas de lodo feitas pela chuva que constantemente escorre ali?

- ...



Os dois amigos começaram a gastar toda a sua potência cerebral para tramar um plano para que chegassem à varanda utópica tão desejada. A ação seria deveras simples: após o almoço – que, geralmente, consistia-se de uma papa ocre muito densa em que boiavam negros pedaços de carne acompanhada de um pedaço duro de pão – , quando todos os velhos se dirigiam para os seus quartos para realizar a dura tarefa da sesta, os amigos Benjamim e Osmar se desvencilharam, escondendo-se em um pequeno nicho que havia no corredor, onde outrora estava posto um busto gigantesco do fundador daquele asilo. As enfermeiras e os demais ajudantes, após guiarem e colocarem os velhos para dormir, se entregavam também ao ócio, jogando baralho e assistindo a uma pequena televisão que havia sido colocada clandestinamente no quarto onde ficavam os trabalhadores daquele local. Sendo assim, não seria uma tarefa tão árdua para aqueles dois cacos humanos cumprirem tal plano.

A rala adrenalina pulsava nas já cansadas veias azuis dos velhos: o coração relembrou os velhos tempos em que podia desperdiçar batidas. Os velhos entraram em seus respectivos quartos e após esperarem alguns minutos abriram cuidadosamente as portas. Olharam cautelosamente os dois lados do corredor que se estendia à sua frente, e se dirigiram para o nicho que haviam previamente combinado como local de encontro. Até ali, o plano havia sido realizado fria e perfeitamente, porém, havia ainda um grande empecilho: o recepcionista estava em sua sala revestida de vidro transparente jogando batalha naval com um enfermeiro. Sr. Osmar sabia que embora estivessem demasiado concentrados naquele jogo, aqueles funcionários o veriam, por isso – após usar da sua enrugada massa cerebral – propôs a Benjamim que engatinhassem a fim de se ocultarem do campo de visão daquelas distraídas sentinelas.

O espetáculo era deveras ridículo: duas degenerescentes formas humanas se rastejando sobre o pó imundo da terra de forma tão indolente que dir-se-ia que se moviam na sua imobilidade. Aquelas ruínas humanas executavam um esforço hercúleo para passarem sub-repticiamente pela recepção do asilo: o suor escorria pela pele macilenta e engelhada: o cinza-amarelado do rosto ganhava um laivo de vida devido ao sangue que aquele exercício fazia o coração bombear para o resto do corpo.

Suprimo aqui, pelo menos dez minutos de narrativa, pois posso afirmar que ao invés de enriquecê-la e de dar-lhe uma maior atmosfera de veracidade, eu apenas estaria esmerilando a já gasta paciência do leitor.

Após o triunfo de sobreviverem àquela travessia, os velhos continuaram a sua marcha rumo à varanda paradisíaca. Benjamim imediatamente pensou, passamos pelos peões desse intricado jogo de xadrez. No entanto, ainda havia várias muralhas, à primeira vista intransponíveis, que os impediam de alcançar o objetivo: o assistente do diretor ficava em uma sala contígua à do seu superior. Por sorte, Sr. Osmar – talvez por causa das inúmeras partidas de xadrez que havia disputado com seu rival Benjamim – já havia antecipado este empecilho e planejado um plano de ataque, que era na realidade, bastante simples: Osmar se encaminharia até a lata de lixo que se encontrava em frente à sala do secretário do diretor e a envolveria com um pedaço grande de barbante obtido sorrateiramente em uma aula de recreação ministrada por voluntários do asilo. O velho puxaria o fio com todas as suas (parcas!) forças, pondo por terra aquele objeto férreo, causando assim um estrondo metálico que obrigatoriamente retiraria o homem de sua sala a fim de verificar o que havia acontecido: o barbante seria calmamente puxado- antes da chegada do secretário - de um nicho que ficava sob a escada onde Osmar e Benjamim se esconderiam. O plano foi posto em ação exatamente com a já afligida e cansada mente do velho Osmar planejara. A simples - quase alcançando o status de ridícula - armadilha funcionou, causando um estardalhaço que fez o secretário do diretor largar o seu charuto cubano, que estava sendo assediado pelas fungadas fortes do seu nariz, e se dirigir ao corredor: bingas de cigarro, cinzas e pequenos pedaços de papel que estavam abrigados e ocultados na lixeira fizeram um imundo tapete no chão. Também o barbante já havia feito o seu serpentino e sinuoso caminho pelo corredor. Do nicho sob a escada - que embora mal seria capaz de alojar uma pessoal comum, estava, naquele momento, abrigando dois velhos caquéticos - os dois amigos suavam suave e lascivamente com um esboço enrugado de sorriso malicioso na boca desdentada: o secretário subiu as escadas, furioso, em direção à sala do zelador. Os velhos deram passinhos medíocres em direção à sala recentemente desocupada, passando pelos cantos do corredor, a fim de não deixar nenhum tipo de rastros ou pegadas: adentraram na sala do assistente.

Alguns livros estavam amadurecendo nas antigas prateleiras. A mesa do assistente estava repleta de papéis e canetas esferográficas sem as suas respectivas tampas. Uma foto do assistente com a sua noiva ou namorada ou esposa – o enquadramento da imagem não permitia ver se os dedos anelares de ambos estavam envolvidos por alianças – encimava a mesa, dando a esta um aspecto mais humano e menos burocrático. Os velhos olhavam como se fossem crianças curiosas para todo aquele aparato: um cheiro de tabaco e whisky infestava o ar, prevalecendo o primeiro. O sol – já fatigado de iluminar seres das trevas – começava a declinar indo repousar ou se esconder da ignomínia com a qual sua visão se depara todos os dias, e, deixando nos móveis a sua rubra luz, dando assim um aspecto de sobrecarregada melancolia. Faltava ainda um obstáculo: a sala do diretor.

Não mais a inteligência lógica seria um instrumento infalível: assim como os maiores enxadristas percebem que por vezes uma partida de xadrez – assim como qualquer jogo – é decidida meramente pela sorte e não mais pelo raciocínio, os dois velhos reconheceram que a próxima jogada seria decidida unicamente pela sorte, pelos fados, pela fortuna.

Aproximaram-se sutilmente da porta: podia-se ouvir a respiração nauseabunda e débil daqueles dois homens(?). Osmar estendeu a mão para a maçaneta e empurrou a porta:

A sala estava vazia.

Eles respiraram aliviados, e imediatamente olharam com ares de triunfo para a gloriosa e utópica varanda. Os homens passaram indiferentemente por aquela sala, tão rica de ornamentos e objetos que encantariam o olhar de qualquer pessoa que está nos seus dias finais e que nada mais espera da vida a não ser o sentir da textura de um objeto qualquer. Não fixaram o olhar no porta-retrato em que estava a foto do diretor com sua esposa – nesta foto podia-se ver as alianças nos dedos de ambos – que era no mínimo vinte anos mais moça do que ele; também não se dignaram a olhar o pequeno pêndulo de enfeite que fazia o seu eterno e monótono movimento de vai-e-vem que brilhava por causa do cromo das bolinhas.

As narinas de Osmar se dilataram ao entrarem em contato com o ar que vinha da varanda cujas portas, aliás, estavam escancaradas, o que obviamente facilitava e muito a vida dos nossos dois protagonistas. O velho rastejou suas pantufas em direção ao parapeito da varanda, imaginando-se um ser privilegiado que adentrava no Santo dos Santos ou em um local onde homem algum esteve. Decerto o seu amigo Benjamim acreditava que também pisava em terra santa, pois se manteve reverenciosamente de braços cruzados fora do limiar da varanda, apenas contemplando o outro. Osmar apoiou as mãos na madeira do parapeito e olhou para baixo, observando tudo: buscando desesperadamente a vida em todas as suas facetas. Repentinamente, como uma espécie de epifania, se revelou aquele homem:



uma calçada suja de vômito sacolas de lixos espalhadas pelo chão atrapalhando a passagem das pessoas que escarravam cuspiam por onde passavam depois pisavam reviravam suas próprias imundícies fezes de cachorro pisadas espalhando um cheiro desagradável pútrido carniça de uma pomba atropelada por caminhão sangue pingando de sacola de chouriço carregada por criança suja limpando o próprio nariz com o dedo indicador a camisa suja de ameixa caminhão de lixo passando cheiro de lixo azedando o nariz chorume escorrendo pelas ruas ratazana passando entrando no bueiro preservativo usado jogado pela calçada homem de idade urinando no muro de uma casa jovem fumando jogando cinzas no chão outro pichando muro com palavras e figuras obscenas baratas subindo pelos muros de uma casa o açougueiro jogando um osso com restolhos de carne extremamente vermelha para cachorro sarnento que rosna para gato do outro lado da rua um casal de namorados discutindo mulher dando tapas no seu companheiro um homem com a mão direita apoiada na parede despejando no chão grossos jorros de vômitos enquanto alguns respingos vão molhar mendigo fedendo a urina, sangue, sêmen e saliva.
Onde a vida e a sua pureza?
O espetáculo fora demasiado denso: tão denso que o velho pensou ter se tornado parte dele. O fino corpo planou por alguns instantes devido à resistência do ar, fazendo que dentro de poucos segundos ele também representasse seu papel no sórdido espetáculo por ele anteriormente assistido. Mulher dando tapas no seu companheiro um homem com a mão direita apoiada na parede despejando no chão grossos jorros de vômitos enquanto alguns respingos vão molhar mendigo fedendo a urina, sangue, sêmen e saliva corpo de velho raquítico e caquético esborrachado no chão braços deslocados fraturas expostas e sangue brotando da cabeça e alastrando pela rua.

Os gritos desesperados de Benjamim eram imperceptíveis lá em baixo, na rua. Dir-se-ia ser um mudo realizando uma grotesca pantomima.
Aquela partida de xadrez terminara:
Xeque-mate.



Simone Pedersen é escritora para crianças e adultos.
Autora de quatro infantis e duas coletâneas de poemas e crônicas,
todos no prelo e sendo lançados nos meses de junho e na Bienal do
Livro de São Paulo em agosto.
http://www.simonealvespedersen.blogspot.com/
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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Por um trix, a colunista entrevista



Poetrix: um terceto brasileiro
por Marilda Confortin & Mariana Braga


Há duas semanas, fui procurada pela repórter do Jornal Comunicação da Universidade Federal do Paraná, Mariana Braga. Queria saber que história é essa de terceto brasileiro e quais as diferenças entre o milenar haicai e o Poetrix.
Marcamos em frente à sala de empréstimos da Biblioteca Pública do Paraná. Cheguei uns quinze minutos antes e me plantei lá a espera da jornalista. Fazia um frio inesperado como só Curitiba sabe fazer.
Estudantes alegres, cobertos por casacos largos e cachecóis coloridos, amarrados com nós criativos, entravam e saíam da Biblioteca aos pares, trios, montes, tropeçando uns nos outros, sem me ver.
Senti saudades de quando eu freqüentava a Biblioteca Pública e também achava que o mundo era só meu e de quem estivesse comigo naquele instante.
Quinze minutos depois do horário marcado, o saguão esvaziou-se e ficaram só três pessoas. Uma garota que já estava lá conversando com um rapaz desde o princípio, o guarda e eu. Não deve ser ela, pensei. Parei de observá-la. Depois de um tempo, ocorreu-me que eu poderia estar na sala errada. Dancei, pensei. Já estava saindo quando vi um enorme ponto de interrogação na testa daquela mocinha.
- Mariana?
- Marilda?
Sim, éramos nós. Escolhemos uma mesa e conversamos muito, sem pressa. Seus olhos brilhantes e curiosos lembravam o olhar de meus filhos, pequenos, quando eu lhes contava uma história nova. Ela ainda não estava contaminada pela pressa dos jornalistas, pela limitação das laudas, pelos cronogramas e pelas matérias encomendadas. Ela escolheu escrever uma matéria sobre Poetrix. Uma poesia nova. Uma nova história. Que maravilha! E ainda melhor: Disse-me que faria um “tubo de ensaio”. Imaginei uma sementinha de poesia germinando dentro de um tubinho de vidro, crescendo, espreguiçando-se como um pé de feijão, sob o olhar deslumbrado de uma criança. É isso que ela faria. Depois de reunir a informação necessária, ela mesma se submeteria à experiência de produzir poetrix e contar aos outros quais foram suas dificuldades, facilidades, sensações e emoções. Confesso que essa imagem me emocionou profundamente. Eu plantei essa sementinha... e fiquei muito ansiosa para ver seu desenvolvimento.


Por isso, quero compartilhar com os leitores da Revista Contempoartes o resultado dessa experiência e desejar que outros profissionais e estudantes universitários façam o mesmo: Plantem sementinhas de poesias, (pode ser uma sementinha pequena, como a do Poetrix ou do Haicai), em tubos de ensaio e observem seu crescimento. Com certeza muitas germinarão e se transformarão em poesias, crônicas, contos e talvez até em romances.
A partir daqui, o texto é da repórter Mariana Braga, que vai apresentar o Poetrix e o resultado de sua experiência como cobaia dessa inseminação poética. Obrigada, Mariana por permitir a replicação da matéria. – Marilda Confortin.

Poetrix, um terceto que nasceu no Brasil

Gênero poético tem apenas uma década e é muitas vezes chamado de "filho bastardo" do Haicai.





Reportagem Mariana Braga
Edição Carolina Goetten


sol cores e flores
na Festa da Primavera
saia da menina


(Débora Novaes de Castro)




Al dente 
Não há futuro ao ponto
Quando o presente
É mal passado 
(Marilda Confortin)

À primeira vista, um leitor disperso incluiria os dois tercetos acima no mesmo tipo de classificação, pela forma aparentemente semelhante como foram construídos graficamente. Mas basta uma reflexão um pouco mais atenta para notar distinções essenciais nos poemas, que são enquadrados em gêneros diferentes de poesia: Haicai e Poetrix, respectivamente. 
“O Haicai é um terceto estruturado há milhares de anos e tem formatação de 5-7-5, com no máximo 17 sílabas poéticas”, descreve a poeta Marilda Confortin, membro do Movimento Internacional Poetrix. A métrica 5-7-5 correlaciona versos e sílabas: o primeiro verso, no haicai, deve ter cinco sílabas poéticas, seguido de um segundo com sete e o terceiro, conclusivo, com cinco. Dentro da categoria minimalista, o Poetrix não pode ultrapassar 30 sílabas poéticas, mas não determina normas para a distribuição destas sílabas dentro do poema. “O objetivo é dizer muito com o mínimo de palavras”, explica Marilda.

A partir desse entendimento, os tercetos de Paulo Leminski, por exemplo, são erroneamente chamados de haicais, porque a essência do gênero poético milenar, oriental e de métrica rigorosa não era seguida à risca. No artigo Poetrix: um jeito brasileiro de fazer tercetos, a escritora Lilian Maial explica que o haicai se consagrou como poema descritivo: enquanto tal, costuma identificar a estação do ano – no Japão, chamada de kigo – em que acontece o momento retratado nos versos.
Outras diferenças: A poeta Kathleen Lessa explica algumas diferenças fundamentais entre as duas vertentes poéticas. 
Quanto ao tema 
 
O haicai versa sobre a natureza: estações do ano, flores, frutos, animais, tempo, clima, mudanças, etc. Ele “acontece” no momento em que é escrito. É como um flash fotográfico, apresentando a inspiração que o autor captou ao observar uma cena, obrigatoriamente no tempo presente.


O poetrix tem temática livre e pode acontecer no passado, presente ou futuro.


Quanto ao narrador 
 
No haikai, o autor não interfere na ação. Só observa e narra o momento.
No poetrix o autor pode aparecer, interferir, falar de si, expor sentimentos. 
Quanto às rimas 
 
No haicai tradicional, a rima não é admitida (a menos que seja interna, no verso);
No poetrix, a rima é opcional.
Ao contrário do Poetrix, que instiga, o haicai não deve deixar dúvidas para o leitor. Segundo Marilda, é um terceto contemplativo. “Se ele diz que as folhas estão no chão, elas realmente estão no chão”, assinala a escritora. “O poetrix é mais nosso. É mais livre”. 
Os tercetos tropicais foram organizados pelo poeta baiano Goulart Gomes no gênero Poetrix. Marilda explica que o novo gênero de terceto, criado em 1999, admite ironia, metáforas, neologismo e estrangeirismo, não aceitos em haicais, além de ser urbano e atemporal. A etimologia deriva de Poe (poesia) e Trix (três). 
Ter definido um novo gênero de terceto não significa que existe uma guerra entre haicaístas e poetrixitas. “Nós não somos uma frente de combate ao haicai. Temos muito respeito. O poetrix é um terceto que resolveu assumir sua diferença e não ficar brigando”, assinala a poeta. 
Existem outros detalhes que distinguem os dois tipos poemas. O haicai não admite título, enquanto este é muitas vezes um complemento do Poetrix. “Ele [o poetrix] conversa muito com todas as mídias”, ressalta Marilda. 
O mínimo é o máximo 
 
Pelas figuras de linguagem e pluralidade de sentidos, não basta que alguém leia um poetrix em voz alta para outra pessoa. Muitas vezes o terceto lança mão de jogos de palavras que só podem ser compreendidos através da leitura, como no caso do poema (con)tato, de Marilda Confortin: 
(con)tato 
dedilho improvisos
teu corpo jaz(z)ido
acorda blues
A nova vertente poética conquista cada vez mais adeptos. O Poetrix já fez surgir mais de cem mil poemas na internet, realiza prêmios às melhores poesias e começa a se tornar referência literária no Brasil e no mundo. Nos versos, trabalha-se a intensidade literária, os termos non-sense, a crítica, o erotismo, a intertextualidade - o máximo de conteúdo em até 30 sílabas poéticas. 
Movimento Poetrix 
 
“O hai-kai é uma pérola; o poetrix é uma pílula”. É assim que o coordenador do Movimento Internacional Poetrix (MIP), Goulart Gomes, distingue o recente gênero de poesia. Ele explica na Bula Poetrix que esse tipo de poema é "um projétil em direção ao alvo”. 
A Bula (uma espécie de beabá Poetrix) surgiu depois de a novidade confundir alguns leitores e poetas que pediram por uma organização das regras estruturais do gênero de poema. Além da regulamentação das características que devem estar presentes no Poetrix, Goulart Gomes lançou O MIP, que surgiu em 2000 e tem o objetivo de divulgar os poemas e seus autores. 
Goulart é professor, mestre e doutor em Literatura e autor premiado. Mas embora o fundador do movimento seja envolvido com ambiente acadêmico, isso não é regra entre os poetrixistas: o Poetrix é arte de qualquer profissão. “Existem professores, mas também médicos. Eu sou analista de sistemas”, conta Marilda Confortin. Para ela, poesia é para todos os bons leitores. Alguns desses poetrixistas possuem poemas publicados nas antologias Poetrix, que ano passado chegou à 3ª edição. 
O Poetrix já é rebelde por sua própria essência, e dentre os próprios poetrixistas houve quem se manifestou para ampliar as características do poema, que são aceitas pelo MIP. Carlos Fiore criou o Tautotrix, baseado no tautograma. Ou seja, é um Poetrix que se utiliza de palavras que começam pela mesma letra: 
Pulsação 
Podem pintar poemas,
Prosas, poesias, palavras.
Pessoas pensam. Pulsam.
Existem outras formas múltiplas desse gênero de poema, como o Duplix criado por Pedro Cardoso e Tê Soares, que apresenta dois Poetrix se entrelaçando através da intertextualidade.

A experiência da repórter Mariana Braga como poeta
no Universo Poetrix

Poetrixando na prática
A sensação de construir versos no formato Poetrix é tão instigante quanto a de lê-los
Poetrixar 
(ar)risco versos
algumas palavras f o g e m
perdem-se nas inspirações 
Mariana Braga



Sentei-me à escrivaninha para escrever meus próprios Poetrix, após conversar com a poeta Marilda Confortin na Biblioteca Pública do Paraná e ler Lua Caolha, sua coletânea de poemas do estilo. O amor com que ela se referia ao Poetrix me cativou. Ao folhear diversos livros e arrastar a barra de rolagem de incontáveis sites sobre a vertente poética, fiquei fascinada com os efeitos que esses pequeninos tercetos atingem. Foi quase viciante. Lia um e corria para outro, enquanto algumas ideias me surgiam à mente. 
Achei que minha missão seria dizer muito com poucas palavras, mas colocar sentimentos em apenas três versos não é o mais difícil. Poetrix exige muito além da palavra em si. E, pequeno, lança mão de uma linguagem na sua maior intensidade e clama por ousadia ao utilizar todas as ferramentas linguísticas possíveis. 
Por ser recente, alimenta-se de todas as mídias, como explica Marilda. Procurei aplicar aos meus poemas imagens que representassem na maior dimensão possível os meus sentimentos ou interpretações. Às vezes, podem aparecer imagens ou sons. Mas boa parte dos poetrix apresentam letras entre parênteses ou mudanças sutis no texto para explorar o sentido da palavra. Utilizei em um poetrix a mudança de tamanho da fonte: 
Cidade sou riso? 
esconde o sol na manga
o curitibano
frio
Nesse poema, registrei uma impressão que tive ao passear pela Rua XV em uma cinzenta manhã de sábado. Apesar de descrever aquele momento em meu próprio Poetrix, o sentimento narrado é atemporal, aplicável a diversas ocasiões. Caso eu quisesse produzir um haicai, eu talvez não pudesse dar à palavra “frio” mais de um sentido, trazer-lhe ambiguidades e confusões e misturas de significados. "Frio" significaria apenas o registro de tempo e estação do ano e não poderia indicar, ao mesmo tempo, a característica de um personagem. Meu poema ficaria incompleto. 
“Quanto mais se extrair de uma palavra tudo aquilo que ela foi feita para dizer, melhor. Sempre tem duplo, triplo, quádruplo sentido". É o que Marilda chama de "privilegiar a inteligência do leitor", que não pode ganhar tudo de bandeja, já pronto. "Queremos que ele mastigue, engula, faça a digestão”. 
A estrutura do poema permite a inovação, as aventuras, apostas, riscos, jogos. O título, que não entra na contagem de limite de sílabas métricas, pode interagir com o Poetrix. Em vez de usar a palavra mar em um deles, escrevi As três primeiras letras do meu nome, o que significa que, além de referir-me ao próprio mar, discorro sobre algo que faz parte de mim de uma forma especial. 
As três primeiras letras do meu nome 
Poesia embalada pela brisa
Água e sal que tem graça
Ah-mar!




Esse Poetrix foi inspirado em um texto que escrevi há alguns meses, constituído por três parágrafos por onde se distribuíam 1.283 caracteres. Sua essência não se perdeu por ter de se apertar em apenas três versos: o que eu queria transmitir de mais importante naquele texto ganhou evidência no formato Poetrix. 
Fiz isso porque Marilda me recomendou sintetizar textos ou matérias jornalísticas através do Poetrix. Ela costumava criar poemas para resumirrelatórios prolixos. “Estamos em um mundo sem tempo para grandes leituras”, constata a poetrixista. Além de o Poetrix contribuir para facilitar a criação de textos resumidos, é uma saída para quem tem o fator "pouco tempo" como pretexto para a falta de leitura.
Mas, para quem escreve, o melhor parece ser encontrar termos polissêmicos, ironias e jogos de palavras do cotidiano que caibam bem ao papel. Depois de ensaiar alguns Poetrix, meus sentidos estão mais atentos. Poetrixar é a atividade de deliciar-se com tudo o que se vê,
ouve e sente. Por isso, eu parafraseio Goulart Gomes: Haicai é uma bela fotografia, mas Poetrix… Poetrix é um delicioso chocolate. 
Ilustrações: 1- o olhar de Mariana Braga; 2- a poeta Marilda Confortin; 3- imagen de Araquém Alcântara; 4- foto de um poetrix da poeta Marilda.


Altair de Oliveira (poesia.comentada@gmail.com), poeta, escreve às segundas-feiras no ContemporARTES. Contará com a colaboração de Marilda Confortin (Sul), Rodolpho Saraiva (RJ / Leste) e Patrícia Amaral (SP/Centro Sul).
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Do teatro ao cinema




Muitos separam as artes em estilos. Pintura, literatura, teatro, cinema. Enfim, formas diferentes de se manifestar e produzia arte. Pensando assim, o Drops Cultural de hoje traz três sugestões:


Estão abertas as inscrições para o edital RUMOS LITERATURA 2010-2011 do Itaú Cultural. As inscrições são GRATUITAS e vão de 3 de março a 31 de julho de 2010. Público alvo: todas as pessoas interessadas nos temas propostos, independente do nível escolar e atividade profissional.
Em sua quarta edição, o programa é dirigido aos interessados em desenvolver textos reflexivos sobre literatura e crítica literária brasileira contemporânea. A novidade desta edição é a possibilidade de estrangeiros se inscreverem.
O programa está dividido em duas categorias:

1. Produção Literária, para projetos de ensaio que tratem de um tema relativo à produção literária brasileira a partir do início dos anos 1980.

2. Crítica Literária, para projetos de ensaio sobre a produção crítica na literatura brasileira realizada a partir do início dos anos 1980.

. Leia o edital completo, regulamento, prêmios e saiba com se inscrever no site http://www.itaucultural.org.br/index.cfm?cd_pagina=2708.

. Dentre os prêmios, os selecionados receberão apoio financeiro mensal e remuneração referente ao licenciamento dos direitos autorais do trabalho concluído e aprovado.


Quem mora no Sul ou então está de viagem, a dica, agora de poesia, é o SARAU COM RITMO ESPECIAL, com poesias de Álvares de Azevedo.
Local: Teatro Glênio Peres
Horário: 18h
Promoção: Academia de Letras e Artes de Porto Alegre & Clube Literário Jardim Ipiranga
Apoio: Memorial – Câmara Municipal de Porto Alegre.
Produção: (51)93366540
A entrada é franca.


A exposição A SIMETRIA DO NÃO LUGAR também faz parte da lista. Do dia 10 ao dia 30 de junho, as obras ficam expostas na Livraria Alpharrabio.
Data de início: quinta, 10 de junho às 19h
Término: quarta, 30 de junho às 19h
Local: Livraria Alpharrabio (Rua Eduardo Monteiro 151- Santo André, SP)
Telefone: (11) 44 38 43 58


E por fim, vamos falar de cinema. A Escola Livre de Cinema e Vídeo convida a todos os interessados para participarem da seleção de títulos que poderão ser exibidos no Cineclube - O Cinema e Outras Linguagens. Todos os meses exibiremos dois títulos que serão escolhidos em reuniões prévias entre o Coordenador da Escola Livre de Cinema e artistas que queiram lançar “provocações” para um bate-papo sobre as obras que serão apresentadas em cada sessão.

PROGRAMAÇÃO:
13 de junho / domingo / 15h
Local: Auditório Heleni Guariba (anexo ao Teatro Municipal de Santo André)
Praça IV Centenário, s/nº
Centro – Santo André (Paço Municipal)

OS IDIOTAS
Direção: Lars Von Trier
Gênero: Comédia
Duração: 117 min.
Ano de lançamento: 1998
(Recomendável para maiores de 18 anos)
Um grupo de jovens intelectualizados forma uma sociedade a parte dedicada a explorar todos os aspectos da idiotice como valor de vida.

27 de junho / domingo / 15h

BABEL
Direção: Alejandro González – Iñárritu
Gênero: Drama
Duração: 142 min.
Ano de lançamento: 2006
(Recomendável para maiores de 14 anos)
Um ônibus repleto de turistas atravessa uma região montanhosa do Marrocos. Entre os viajantes estão Richard (Brad Pitt) e Susan (Cate Blanchett), um casal de americanos. Ali perto os meninos Ahmed (Said Tarchani) e Youssef (Boubker At El Caid) manejam um rifle que seu pai lhes deu para proteger a pequena criação de cabras da família. Um tiro atinge o ônibus, ferindo Susan. A partir daí o filme mostra como este fato, aparentemente isolado, afeta a vida de pessoas em vários pontos diferentes do mundo.


Ana Paula Nunes é jornalista, pós-graduanda em Mídia, Informação e Cultura pela Univesidade de São Paulo/USP. Escreve aos domingos na ContemporARTES.
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