Lembranças de Itabira


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Carlos Drummond de Andrade é mineiro do interior, nascido na cidade de Itabira a 31 de outubro de 1902. Esta cidade permeou parte da obra deste grande poeta, uma vez que ela, as lembranças que suscita se fazem presentes em inúmeros poemas. Alguns poemas que retratam a saudade ou mesmo a exaltação da terra, lugar de origem, que o indivíduo deixa para estudar, conseguem fazer com que vislumbremos o que Drummond sentiu. Apresentaremos a seguir dois poemas que retratam o que foi exposto até então:


Infância
1960 - ANTOLOGIA POÉTICA


Infância
A Abgar Renault

Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.
Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras
Lia a história de Robinson Crusoé.
Comprida história que não acabava mais.

No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu
a ninar nos longes da senzala – e nunca se esqueceu
chamava para o café
Café preto que nem a preta velha
café gostoso
café bom.

Minha mãe ficava sentada cosendo
olhando para mim:
- Psiu... Não acorde o menino.
Para o berço onde pousou um mosquito.
E dava um suspiro... que fundo!

Lá longe meu pai campeava
no mato sem fim da fazenda.

E eu não sabia que minha história
era mais bonita que a de Robson Crusoé.

O poema “Infância” retrata momentos, imagens que marcaram Drummond, como o pai a cavalgar pelos campos, a mãe cosendo, o irmão a dormir, o café bom, gostoso, como a preta velha, as mangueiras e o livro comprido de Robson Crusoé. Um dos momentos marcantes deste poema é o final, no qual é revelado que a história do poeta era mais bonita que a do livro, com o qual se deliciava. Tal passagem traz à tona a imagem do escritor que revisita seu passado e consegue reconhecer nele toda a beleza do viver, da inocência e do amor que circundava aquele simples momento descrito. O poeta reconhece que ,no momento em que vivia a cena em questão, não sabia ou sequer conseguia reconhecer que sua história sobrepujava à de Robson Crusoé.

Interessante notar que o sujeito amadurecido volta os olhos ao passado e através do poema retorna aos momentos decorridos para ver e reconhecer neles passagens que marcaram sua vida, que influenciaram no seu desenvolvimento e que, mesmo que descritos, vivem dentro de si enquanto poesia intransponível, indescritível.

O outro poema que escolhi para ilustrar as lembranças de Carlos Drummond de Andrade é “Cidadezinha qualquer”:

CIDADEZINHA QUALQUER
1967 - JOSÉ & OUTROS

Casas entre bananeiras
mulheres entre laranjeiras
pomar amor cantar.

Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.
Devagar ... as janelas olham.

Eta vida besta, meu Deus.

Iniciemos as observações acerca desta composição poética pelo título “Cidadezinha qualquer”. Cidadezinha é uma palavra que remete carinhosamente a uma pequena cidade que deixou fortes, marcantes e inesquecíveis lembranças, por outro lado o que a qualifica é o vocábulo “Qualquer”, que pode ser pejorativo, remetendo-a a ideia de falta de importância ou, por outro lado, evocando-a como mais uma das cidadezinhas que marcam a vida dos homens, com suas pessoas, com seu ritmo “devagar”. A cidadezinha descrita, assim como outras cidadezinhas, possui casas entre bananeiras, mulheres que amam e cantam entre as laranjeiras. Há também homens, cachorros, burros, todos com o ritmo preponderante que é o ser devagar, este ritmo que se espalha e chega até as janelas, nas quais devagar as pessoas podem se debruçar e olhar a rua. A conclusão do poema é espetacular, “Eta vida besta, meu Deus”, que me remete a um certo desabafo do poeta em relação à monotonia da cidade, bem como à tranqüilidade que por ela corre.

Em relação à estética utilizada na confecção dos poemas, devemos ressaltar que Drummond assimilou à sua poesia muitos dos elementos estabelecidos pelo Modernismo, com destaque para o verso livre, a liberdade lingüística, o metro livre e o retrato do cotidiano.



Há um site que pode ajudar àqueles que desejam aprender um pouco mais sobre Carlos Drummond de Andrade, apresentando informações biográficas do autor, informações acerca dos livros que ele lançou, além de fotos, vídeos, poemas entre outros. Os leitores que se interessaram devem acessar tal site aqui.






Rodrigo C. M. Machado é Mestrando em Letras pela Universidade Federal de Viçosa.

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Vagas estrelas da Ursa, o improvável.


Luchino Visconti, o conde marxista

Sinto-me plena quando assisto um filme de Luchino Visconti. É como ver uma ópera que nos enche os olhos, os ouvidos e a alma de esplendor. Este conde vermelho, como Luchino era chamado por conta de sua ligação ao marxismo,  jamais esqueceu do extremo requinte na construção  do universo metódico, literário e cinematográfico de seus filmes e seus personagens. Da sua gênese cinematográfica, nascida no neorealismo com filmes maravilhosos como Obsessão, 1943 e A terra Treme, 1948, seguiu dirigindo filmes, óperas e peças teatrais sempre como primorosas obras de arte. 
A Terra Treme, pescadores sicilianos
Amante da beleza, seus personagens eram como deuses gregos do Olimpo e seus cenários e figurinos meticulosamente carregados de lirismos. Sua mise en scène era calculada como num jogo de xadrez, cada lugar, cada personagem e cenários pensados e ensaiados para acertar e dar o xeque mate. A direção de Luchino penetrava no universo do ator, do personagem, para fazê-los corpo maleável das emoções, consagradas pelos gestos e olhares. Cada olhar, cada gesto estudado. É sempre bom assistir aos filmes de Luchino.
Claudia Cardinale em Vagas estrelas da ursa
Esta semana vivenciei esse prazer ao assistir Vagas estrelas da Ursa, um filme de 1965 que venceu O Leão de Ouro no Festival de Cinema de Veneza. Ótima atuação de Claudia Cardinale, na personagem Sandra, sensual, misteriosa e enigmática. Entoada pela música de Cesar Frank, Luchino toca novamente em assuntos como a decadência, a degradação e a memória. A tragédia atrai Luchino. 
Burt Lancaster, o professor em Violência e paixão
Em Violência e Paixão, 1974, seu penúltimo filme, Luchino conta a história de um professor aposentado, interpretado por Burt Lancaster, que vive em Roma e passa seu tempo avaliando quadros antigos. Seus livros e quadros são de uma extrema morbidez, mas para ele são como membros da família. No entanto, esses objetos não falam, não ouvem e não questionam. Convivência um tanto unilateral. O ponto de virada acontece quando o professor aluga o apartamento de cima para uma estranha família e, por conta disso, sua vida é invadida por um mundo tumultuado que o faz refletir a respeito da amizade, do amor e da solidão.
A personagem Sandra e seu irmão Gianni em Vagas estrelas da Ursa

Já em Vagas estrelas da ursa, baseado nos versos iniciais de um poema de Giacomo Leopardi, Luchino enfrenta a temática familiar para nos promover uma viagem às paixões e às  dores de dois irmãos, Sandra e Gianni. A descoberta do amor na adolescência, sua pureza é rodeada por questões morais, decisivas e nefastas que corrompem a alma dos personagens.  
Quanto do passado pode nos assombrar e interferir no presente? Como conviver com sentimentos que surgem da inocência do ato de amar, do carinho e da amizade, mas que são condenados pelo convivio moral? Os ventos fortes de Volterra, cidade natal de Sandra e Gianni, podem carregar as carícias e as pequenas malícias de dois seres? 
Mas Sandra volta a Volterra acompanhada de seu marido Andrew para participar de uma homenagem ao seu falecido pai; porém, ao retornar, dá espaço para o passado que os espreitam no lugar da memória. O lugar guarda a carga do passado e Sandra, Gianni e Andrew estão a mercê desse outro tempo. Ao assistir ao filme Leandro Daniel publicou em seu blog uma poesia que achei oportuno publicar.  Aqui vai a contribuição desse assíduo leitor da Contemporartes: 


O improvável

Vagas estrelas da ursa
extensas memórias elefantes

ultrapassar os segredos incubados
grafados em sangue e odor
pode ser incompreensível
um fim de linha
dos antigos que viam no horizonte infinito dos mares
o abismo
uma garganta de trevas a engolir os loucos navegantes

temor
do amor diferente
da brincadeira infantil
solidificada em horror
em moral
reme nas águas frias das lembranças
doces, com tão alto teor de sacarose
que pode cariar a razão
despedaçar a idéia de si

incompreensão
incompleto ser
por natureza

“Ficar dentro da coisa é a loucura”
Frase de A Paixão segundo G.H., Clarice Lispector

Leandro Daniel Santos Carvalho

Assistam aos filmes de Luchino Visconti e vivam a plenitude do cinema!
Bons Filmes!!!

Kátia Peixoto é doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Mestre em Cinema pela ECA - USP onde realizou pesquisas em cinema italiano principalmente em Federico Fellini nas manifestações teatrais, clowns e mambembe de alguns de seus filmes. Fotógrafa por 6 anos do Jornal Argumento. Formada em piano e dança pelo Conservatório musical Villa Lobos. Atualmente leciona no Curso Superior de de Música da FAC-FITO e na UNIP nos Cursos de Comunicação e é integrante do grupo Adriana Rodrigues de Dança Flamenca sob a direção de Antônio Benega.
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Café, tropas de muares e ferrovia




De imediato não é fácil se explicar sobre o desenvolvimento de São Paulo... em relação aos fatores naturais, o solo desta cidade é considerado como um dos piores do estado. Caio Prado Jr cita, em relação a São Vicente e Santos, que os terrenos são baixos, mangues e pântanos inférteis para o cultivo agrícola, somente depois das construções das drenagens que melhorou a incidência de endemias. Já o planalto apresenta condições mais favoráveis para o povoamento, terras altas e clima temperado diferente do litoral que o clima é tropical.


Antes da expedição de Martim Afonso, o primeiro donatário da província de São Paulo, no começo da colonização oficial do território paulista já existiam europeus instalados na região escolhida pelos primeiros colonos, a vila de Santo André, a povoação era conhecida como Borda-do-Campo devido o lugar ser a trajeto a caminho do mar que constitui um campo. Em 1553 Tomé de Souza, primeiro governador-geral do Brasil, erigiu a vila com a denominação Santo André da Borda do Campo, mas, estava mais exposta a invasões por ser formada na orla da mata diferente de São Paulo que é compreendido no planalto.

Caio Prado Jr. aponta que São Paulo é privilegiado principalmente os cursos de água pelo Tietê, também pelo acesso ao rio Tamanduateí. Apesar da maioria dos rios não fossem fáceis de navegar, se tratava de melhor via de São Paulo. O povoamento se deu a partir do Tietê, para cima e para baixo, explica que São Paulo tem um importante sistema hidrográfico e relevo que contribuiu para sua contribuição para sua colonização e supremacia.

O principal fator econômico que atraiu a ocupação dos colonos no planalto foi a existência de varias tribos indígenas, uma abundante mão-de-obra, fato anterior ao tráfico negreiro, em meio aos interesses ocorreu um evidente deslocamento da população do centro litorâneo para o planalto, uma ocupação intensa diferente de outras regiões do Brasil. Os Campos de Piratininga foi considerado o primeiro lugar ocupado por portugueses, lugares que foram preparados para a instalação humana, lugar que serviu para o abrigo de várias tribos, sendo uma das zonas mais provisórias do litoral entre todo o planalto meridional brasileiro e os colonos vicentinos encontraram esta região descampada do planalto para se instalarem.

Partindo do pressuposto que “O homem busca no ambiente suas necessidades básicas, transforma a natureza para sobreviver, um processo de transformação do ambiente primitivo conduzida pelo próprio homem para cultivar campos, traçar e construir caminhos, desenvolver ferramentas para facilitar o processo de produção e lugares para a moradia. Este projeto de pesquisa possui como objetivo documentar através de texto e imagens a capacidade do gênero humano em função de sua atividade prática transformar a sociedade em que vive. O dinamismo das relações sociais devido à ação humana em conjunto determina as mutações ocorridas em todo contexto histórico, mas se torna necessário mostrar também que infelizmente na sociedade atual esta capacidade estrita do ser humano se encontra submissa ao julgo do capital. Por isso através do cotidiano nos deparamos com uma sociedade em que os valores e tradições são inseridos como perene o que remete a concluir que definitivamente os indivíduos se relacionam num mundo estático, em que as mudanças se encontram na jurisdição de algo maior e, principalmente, externo ao conjunto dos homens.” (ROSMANINHO e COSTA) buscamos investigar os impactos posterior ao funcionamento da primeira ferrovia em solo paulista, com base nas transformações no modo de organização do trabalho e no desenvolvimento desigual da distribuição territorial.

Realizamos um levantamento de dados históricos para explicar que as mudanças na natureza são realizadas pela atividade do próprio homem, com o objetivo de ir além das aparências imediatas e de acordo com os dados pesquisados evidenciar sensivelmente a constituição dos fatos, na busca do que o dinamismo das relações sociais proporcionou na aparente paisagem, uma análise com base em um meio crucial para as mudanças ocorridas no Brasil: à ferrovia, um meio eficaz para circulação de mercadorias, o que determinou a vinda de muitos estrangeiros e impulsionou o processo de produção industrial.

Escoamento de mercadoria pela ferrovia...

Através desta análise demonstrar que a concessão da malha ferroviária em 1854 com o intuito de interligar o oeste de São Paulo ao Porto de Santos foi determinada primeiramente para o escoamento de mercadorias de forma mais eficaz, alem cenário propício à efetivação do país como um mercado consumidor em potencial. A expansão da monocultura cafeeira no Brasil foi crucial para a introdução da ferrovia como um meio da circulação de mercadorias decorrente ao interesse ascendente de procura do mercado consumidor.

O cultivo do café e da borracha foi significativo na América Latina no panorama da economia mundial, sendo o Brasil o principal produtor do café. Devido a falta de uma ampla rede bancária os europeus organizaram o sistema bancário e o financiamento das exportações e as construções de vias voltadas para a articulação nos portos na América Latina. No século XIX a Inglaterra foi o país que investiu no mundo inteiro, em 1890 os capitais externos eram por volta de 50% voltados para títulos e empréstimos a governos, 45% eram aplicados na construção de ferrovias, portos, minas e serviços urbanos.

Anterior a chegada da estrada férrea no Estado de São Paulo as condições de transporte eram obsoletas para o escoamento do café o que remete a pesquisar sobre as tropas de muares e o desenvolvimento do comércio nas proximidades do trajeto, como por exemplo, a Parada Pouso da Tropa de Lágrimas, compreendida na atual cidade de São Caetano, e Parada dos Meninos, na atual cidade de São Bernardo do Campo, os tropeiros seguiam a caminho do mar do interior até o Porto de Santos com esse transporte rudimentar, o tempo de viagem era longo e desgastante o que determinou a construção de locais de repouso, de cultivo de produtos para o consumo imediato e do comércio. Nos fins do século XIX o volume da demanda do café chegou a um patamar que mesmo com diversas dificuldades a utilização do percurso chegou a colocar em risco a Mata Atlântica ao atender as necessidades mercantis vigentes neste período.

Pouso dos tropeiros

Os interesses econômicos estavam voltados para ampliar a produção do café para ser exportado, alguns dos principais produtos com procura de consumo a nível mundial foram facilmente exportados pela ferrovia, deste modo, o principal foco da ferrovia era operar em função do mercado mundial, a via férrea São Paulo Railway ligava o interior paulista com o Porto de Santos, o primeiro transporte ferroviário no Estado de São Paulo inseriu e distribuiu com eficácia também a produção inglesa.

A economia brasileira neste momento passa a concentrar e se basear estritamente na monocultura cafeeira, o trabalho no processo de produção era baseado na mão-de-obra escravista. Para os ingleses efetivar abolição do trabalho escravo proporcionaria de fato a resolução da problemática em relação ao mercado consumidor brasileiro, fator que permite ser constatado pelo grande interesse inglês em investir e aperfeiçoar o sistema ferroviário do país para potencializar o processo de circulação das mercadorias inglesas e a exportação não apenas o café, como também extrativismos vegetal e mineral, fontes de energia e matérias-primas principalmente voltadas para a construção civil, insumos provenientes da Mata Atlântica.

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Porre de Chopp


Conheciam-se já há algum tempo, amigos de labuta e de bebedeiras: drinques de tequila, triscos em vodka, goles de caipirinha, amargores de campari; mas nunca haviam tomado um porre de chopp.
Quando isso aconteceu... chopps e mais chopps a gosto de água, em noite de novembro desestrelada, olhos desvendados, restrições poucas, nenhumas...
Ah! dosagem despótica a convergirem rumos de amizade extrapolada.



Abilio Pacheco é professor universitário, escritor e organizador de antologias. Três livros publicados. É membro correspondente da Academia de Letras do Sul e Sudeste Paraense (com sede em Marabá), integra o conselho de redacção da Revista EisFluências, de Portugal, é Cônsul dos Poetas Del Mundo para o Estado do Pará e é Embaixador da Paz pelo Cercle Universal des Ambassadeurs de la Pax (Genebra-Suiça).
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Do Novo Livro de Alexandre Bonafim

Novos Poemas de ALEXANDRE BONAFIM
por Altair de Oliveira.

O poeta que disse que "o Brasil é um arquipélago de poetas", o mineiro Alexandre Bonafim, estará em breve lançando o seu novo livro de poemas "Celebração das Marés", do qual a coluna Poesia Comovida traz 3 poemas para o deleite dos nossos leitores que apreciam a chamada boa poesia.

Além de um rosto bonito e de um sorriso bom-mocista, Alexandre Bonafim é um poeta de primeira grandeza, intenso e sério em seu trato com a arte das palavras e é considerado um dos melhores expoentes da poesia que está sendo feita hoje no Brasil. Penso que esta merecida relevância do poeta é devido ao fato de seus escritos, ao contrário da maioria de textos que são produzidos nos laboratórios de letras e certificados nos conselhos universitários, conseguem extravasar os limites técnicos e cultos dos círculos universitários e ir atingir direto os corações das pessoas. A poesia de Bonafim é viva e comove, como bem deve ser toda a arte.

Em vez de começar a tecer comentários sobre um ou outro aspecto importante dos poemas do Alexandre, eu prefiro dizer que a impressão que me deram é que eles são auto-explicativos e tratam da vida do navegante solitário, pois solitário é uma condição do exercício literário, e dos assombros e dificuldades de continuar navegando a poesia hoje em dia. Todo homem é uma ilha, mas todo poeta é homem. Um poeta que se preza se atira às ondas e celebra todos os dias o seu não-naufragar. Então estes poemas de "Celebrações da Marés" alegremente me lembraram um barco bêbado que uma vez um poeta adolescente francês atirou arriscadamente às ondas em busca de "Flóridas floridas". Tenho certeza que também nossos leitores terão nestes poemas o que celebrar! Uma alegre semana para todos vocês e uma deliciosa leitura.





SOBRE O POETA ALEXANDRE BONAFIM:

Poeta, ficcionista, ensaísta e professor de literatura, Alexandre Bonafim nasceu em Belo Horizonte Em 1976, faz especialização em Literatura Portuguesa pela USP, atualmente mora em Franca-SP e é professor de literatura em Araraquara-SP. Entre outros, Bonafim escreveu os seguinte livros: "Biografia do Deserto" - 2006, "A outra Margem do Tempo" - 2008, Sob o Silêncio do Anjo - 2009, "Sagração das Despedidas" -2009, "Arqueologia dos Acasos - 2010 e "O Olhar de Perséfone" - 2010. Os poemas apresentados aqui pertencem ao seu novo livro "Consagração das Marés".



O QUE JÁ DISSERAM DELE:

"Nos poemas de Alexandre Bonafim encontro a evocação da alteridade teofânica do mundo, alteridade mediada por uma intensa interioridade, num movimento oceânico que parte do exterior até explodir suavemente como uma gota de orvalho depois do pensamento. O duplo olhar que contempla o vívido como uma mão que desenha o mapa para o mundo da alma, onde as palavras foram embebidas nesse ouro possível do silêncio e os poemas são seres e lugares sem fronteiras entre um e outro. Aqui um quadro de Franz Marc é tão vivo e mitológico quanto uma pedinte, um cão é tão sobrenatural quanto um unicórnio, O Võo das garças é ininteligível e sagrado como um eclipse e a presença da música de Chet Baker é similar à presença sonhada de um filme de Kieslowski. Longe de querer fazer uma apreciação técnica dos poemas e nem sei se teria capacidade para tanto...O que me interessa é afirmar o quanto a leitura dos poemas do Alexandre melhora os meus." Marcelo Ariel - poeta.


O QUE ELE DISSE DE SI MESMO:

"Tenho um rosto e um riso e por isso sou aquele que é feito de angústias, medos e alegrias súbitas. Sou aquele que quer da vida sempre a aventura máxima, o riso iluminado, a lágrima silenciosa. Sou aquele que respira no corpo dos amigos e carrego o coração em todos os poros, o que anda sempre perdido em todas as esquinas e todas as avenidas. Enfim, amo a vida, ou melhor, a poesia, pois ambas são a mesma verdade." - Alexandre Bonafim, em seu blog.


O QUE ELE DISSE SOBRE A POESIA:


"Eu precisei ler um importante livro do Rudolf Otto, intitulado O sagrado, para descobrir que a poesia nasce do “Tremendum”, ou seja, nasce de um sentimento visceral, feito corte de relâmpago a vergastar nossos sentidos, presença enfim do sagrado terrível. Eu sinto que a poesia insurge desse fascínio, dessa força motriz da vida, incompreensível, mas belíssima. O lirismo é um mergulho na noite do silêncio, essa noite de onde irrompemos e para onde seremos levados pela morte. Rilke, poeta imprescindível para mim, escreveu suas famosas Elegias de Duíno a partir de um chamado transcendente. Eu procuro essa voz escondia nos resquícios do cotidiano, nos pormenores da vida. Essa é a grande aventura da escrita: estar sempre a mercê de um arroubo, de um estertor pulsante." - Alexandre Bonafim, em entrevista concedida à escritora e jornalista Kátia Borges.




OS NOVOS POEMAS




CELEBRAÇÃO DAS MARÉS

- I -

Um risco de veleiros em fuga
sempre foi o teu nome.
Arquipélagos de incandescentes pássaros
os teus olhos. Os frutos do sal,
a íris do sol na filigrana das águas,
os cardumes do outono, clamam em teus pulsos
a presença de um fogo vivo,
cicatriz de um oceano em fúria.




Sempre foi o teu nome as marés.
Em cada palavra do teu ser,
navegam barcos de pólen,
peixes de constelações ardentes.
Em cada silêncio dos teus gestos,
nasce o azul dos cavalos marinhos,
movimento dos remos singrando o mistério.



O teu nome sempre foi os promontórios,
as ilhas desvairadas pelo verão.
Sobre tua nudez repousam
a brancura das velas infladas,
a plena luminosidade do meio-dia.



Em teu destino os corais tramaram
a encantação das estrelas marinhas,
a memória dos búzios.
Essa é a convocação das marés:
fazer do teu rosto o destino das ondas,
a areia desfeita nas orlas.



No teu nome o sono das crianças
apascentou a cólera dos naufrágios.


- II -


“Longe o marinheiro tem
Uma serena praia de mãos puras”

Sophia de Mello Breyner Andresen



Do cerne dos oceanos, do fecundo ventre da noite,
nasce seu peito tatuado pela força das âncoras,
pela fúria dos cavalos marinhos.
Sua pátria sempre foi os relâmpagos,
o sal, o trêmulo pergaminho dos vendavais.


Há milênios ele se perdeu de toda terra.
Há séculos seu andar tem a leveza das quilhas sobre as ondas,
das velas despidas pelo sal.
Por isso seu destino sempre se quebrou contra as marés,
contra a amplidão das águas sem nome.
Por isso seu barco sempre se partiu contra o infinito,
contra o nascimento do mundo.


O marinheiro mora em antigas tempestades.
De tanto queimar o rosto nas ondas,
seus olhos vestiram o êxtase dos cardumes cegos,
dos corais inundados de luz.


De longe, de muito longe ele vem...


Uma cicatriz corta-lhe o rosto:
relâmpago, ninho de enguias.
Uma cicatriz corta-lha a vida,
o coração, o seu destino inteiro:
faca de fina luz a singrar
os sonhos, a inocência.


Desertos sedentos, sequidão de ossos
ardem seu cerne, corroem seus desejos.
Por isso a errância é sua campa, seu jazigo.
Por isso lugar nenhum é seu túmulo.


A vida espoca em suas vísceras,
com a lucidez do ácidos agudos,
A vida é-lhe a urgência do salto,
do grito das águas, do urro das ondas.


De longe, de muito longe ele vem...


Ele tem o braço quebrado pelas chuvas,
a boca cinzelada pelas maresias.
Todo o oceano adormece em suas pálpebras.
Todas as procelas pousam em seus pulsos.
Ele tem o dom das luas cheias,
o estigma das constelações desnudas.


Do fecundo ventre dos oceanos, do cerne da noite,
nasce seu sêmen fustigado pela violência dos astros,
pela febre das estrelas marinhas.
Nos seus flancos veleiros ardem os pontos cardeais,
a embriaguez das gaivotas consumidas pelo azul.


De longe, de muito longe ele vem...


Dentro de seus olhos, no íntimo secreto do seu medo,
nadam medusas, tubarões cegos.
Dentro de seu assombro bóiam corsários afogados,
sereias decepadas, cordilheiras iluminadas.
Por isso sua pele sempre se desnuda nos nascimentos,
nas celebrações súbitas.
Por isso seu corpo sempre se nomeia no orgasmo das rebentações,
na ardências das águas vivas.


O marinheiro mora na ruína dos ventos.
De tanto rasgar as ilusões no sal,
todo o seu existir vestiu o esplendor do Atlântico,
a fúria mórbida do Pacífico.


De longe, de muito longe ele vem...


Seu barco sempre foi o silêncio dos búzios,
as algas, a solidão das ilhas esquecidas.
As fatalidades navegam em seus ombros.
Os desastres apunhalam seu nome.
Toda a sua luta sempre foi fitar a morte de frente,
como quem acalanta um criança jamais nascida.


De longe, de muito longe ele vem...


- III -


Do poema nada nos resta
a não ser essa viagem
rumo aos mares,
esse gosto de naufrágio
ao findar das paixões,
esse astrolábio partido.


A leitura do poema,
peixe cego, barco amputado,
nada nos ensina,
em nada modifica
a força das marés.


Rastro de espuma
na pele dos acasos,
o poema finca suas âncoras
no sal, na eternidade,
onde nossas ausências
ardem o grito dos corais.


O poema é nudez precária,
procela sem ventos, sem nuvens.
Quando nele adormecemos,
acordamos com os ossos fraturados,
vergastados pelas maresias.


O poema é tão inútil
quanto o mar ao fim da tarde.


Por isso seu esplendor é límpido
como a beleza da morte.




Alexandre Bonafim, de seu novo livro "Celebração das Marés."


***

PARA VER MAIS:

O Blog do poeta Alexandre Bonafim: http://arquipelagodosilencio.blogspot.com/

Poemas no site do poeta Antônio Miranda: http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/minas_gerais/alexandre_bonafim.html


***


Ilustrações:
1- foto do poeta Alexandre Bonafim 2- Capa do livro "O Olhar de Perséfone", desenho de Kátia Spagnol; 3- Foto de onda do mar; 4- Capa do livro "Biografia do Deserto".



Altair de Oliveira (poesia.comentada@gmail.com), poeta, escreve quinzenalmente às segundas-feiras no ContemporARTES a coluna "Poesia Comovida" e conta com participação eventual de colaboradores especiais.
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A imprensa brasileira de rock: Bizz – Ascensão e queda (parte 4/4)


por Marcelo Pimenta e Silva


A revista Bizz trazia em suas páginas uma abordagem alternativa das demais, tendo muitas vezes espaço para textos opinativos e com gírias que assemelhavam ao que a juventude brasileira falava naquele período. Dessa forma, a Bizz era contemporânea em linguagem ao que às rádios tidas como ‘malditas’ como a Fluminense FM, do Rio de Janeiro e a 89 FM de São Paulo apresentavam em sua grade de programação. O estilo gráfico era inspirado na revista inglesa Smash Hits e a chefia de redação de José Eduardo Mendonça.

A Bizz não se restringia apenas a estilos musicais, também era pauta o cinema, a moda, os quadrinhos, a tecnologia, a literatura, entre outros temas. Essa abertura para diversos assuntos teve bons resultados já na estréia, onde foram vendidos 100 mil exemplares. Logo se estabilizaria com uma média de 60 e 70 mil exemplares por mês. Em 1986 a revista consolida-se no mercado, graças também ao êxito do Plano Cruzado. Assim, a Abril lança outras publicações provenientes da Bizz como Letras Traduzidas, Ídolos do Rock e revistas-pôsters de artistas que faziam sucesso na época como The Cure, U2, Dire Straits e o grupo brasileiro RPM. O mercado publicitário também se aqueceu com o plano econômico e a Editora Abril explorou novas publicações direcionadas ao público jovem (FIGUEIREDO, 2005). A Bizz, em 1987, ficou segmentada apenas à música, já que havia sido lançada a revista SET, especializada em cinema. No mesmo ano, a revista passa a não ter concorrentes no mercado de música, pois a Roll e a Somtrês deixam de ser publicadas. Eram os sinais da retração da economia e do desgaste do Plano Cruzado. Nesse período, com a direção de redação nas mãos de José Augusto Lemos e o cargo de editor sendo chefiado por Alex Antunes, a revista assume um caráter “alternativo” em suas novas pautas (FIGUEIREDO, 2005).

Durante os anos 90 a revista seguiu alternando um discurso de apostas em bandas do cenário independente do rock nacional como Skank, Pato Fu, Raimundos, Planet Hemp, O Rappa, Okotô, Nação Zumbi, Carlinhos Brown, entre outros, assim como uma identificação da publicação com o movimento grunge e indie que se popularizava através da emissora MTV. Essa proposta mais “alternativa” seguiu até 1995 quando a revista passou a se chamar Showbizz. Com o tamanho idêntico da Rolling Stone (23x30cm), ela procurava ter uma linguagem idêntica à do canal de TV MTV, que se tornara um veículo abrangente e definia novos padrões de cultura e comportamento para os adolescentes e jovens nos anos 90. Com isso, a revista focava em um público “teen”, mas especificamente o masculino, com uma linguagem mais acessível e identificada aos adolescentes, além de explorar os espaços da revista com mais fotos do que com textos. Em 1998, a revista voltaria ao seu tamanho original, mantendo ainda o mesmo logotipo, contudo a Abril e a sua subeditora Azul, que produzia a Bizz, fizeram um acordo com a concorrente editora Símbolo, da forma que a Abril venderia assinaturas para a Símbolo, e esta teria suas edições trabalhadas pelos profissionais da Abril. Conseqüentemente, a Abril decidiu que a revista Bizz passaria a sair pela Símbolo, visto que, supostamente, esta editora trabalhava melhor com títulos segmentados. Da possibilidade de obter uma rentabilidade maior e de uma saída mais comercial para a Bizz, a revista em maio de 2000, passou a ser produzida e distribuída através da Símbolo, que destituiu diversos cargos que existiam na revista para cortar gastos e despesas internas. O resultado foi um prejuízo na qualidade da revista que aos poucos perdeu anunciante e reduziu o número de páginas. Em maio de 2001 a Bizz encerrou suas atividades.

Quatro anos depois a editora Abril retomou a revista com diversas mudanças na parte gráfica e com matérias novamente baseadas especificamente em rock e pop, além de matérias temáticas seja sobre drogas ou comportamento, mas todas tendo como foco principal a música. No contexto atual de blogs, e-zines, onde a internet é uma realidade já concreta e estabelece novas e dinâmicas formas de comunicação, a Bizz não resistiu novamente às mudanças da sociedade e fechou as portas pela segunda vez em julho de 2007.

Apesar de a Bizz ter nascido de uma demanda mercadológica, com objetivos explicitamente comercias, a revista notabilizou-se e ganhou credibilidade pela sua identidade editorial. Marcada pela irreverência ácida de seus jornalistas que criaram diversas polêmicas com bandas, músicos e gravadoras, a Bizz modernizou o jornalismo cultural do país. Essa característica anárquica da publicação fez com que ela fosse durante muito tempo a principal revista segmentada de música e cultura pop do Brasil. A Bizz continha um público fiel que enxergava na revista o principal veículo de comunicação de cultura jovem, isso antes da entrada da MTV no Brasil e do surgimento e popularização da internet no país. Mesmo que a revista tenha passado por três editoras diferentes (Abril, Azul e Símbolo e por fim voltando a Abril), além de diversas mudanças editoriais e gráficas, a Bizz traduziu toda uma geração (anos 80 e 90) que pode ser caracterizada pelo sociólogo Michel Maffesoli, como a das tribos urbanas. (1)

Dentro de uma perspectiva histórica sobre a imprensa musical no Brasil, em especial a voltada ao gênero rock, pode-se observar a “ascensão e a queda” dessas publicações como o resultado da expansão midiática nos últimos anos. Ou seja, se no começo as revistas serviam como principal canal de informação de um público consumidor do produto música, isso foi alterado com a introdução da televisão a cabo e, posteriormente, a popularização da internet. Dessa forma, as revistas de músicas passaram por uma reformulação em seu conteúdo, muitas perdendo espaço para os novos canais de informação gerada em blogs e redes sociais.


Nota:

(1) - Conceito desenvolvido por Michel Maffesoli que considera “tribos urbanas” micro grupos formados por indivíduos que têm em comum os mesmos gostos, idéias e objetivos em comum. Não tem uma ligação ideológica, contudo podem resistir ao poder com práticas alternativas de resistência. O interesse em consumir bens simbólicos próprios de cada sub-cultura os caracteriza em universos simbólicos característicos. Podem transitar de grupos para grupos, pois o sentido de pertencimento que os envolve é frágil. Exemplos: punks, headbangers, skinheads, neo hippies, entre outras tribos.

Referências bibliográficas:

BISSIGO, Luís. E assim se passaram 20 anos. Jornal Zero Hora. 19/01/2005. Porto Alegre. P. 6 e 7.

BRUNELLO, Aline Viviani; BORGES, Maria Fernanda Duarte Guimarães; TAKAHASHI, Vivian Cristina Bezerra. A Revista Bizz/Showbizz no jornalismo musical brasileiro da década de 90. Monografia de conclusão de curso de jornalismo da Universidade de Ribeirão Preto, São Paulo. Disponível em: http://www.unaerp.br/comunicacao/i. Acesso em 28 de agosto de 2009.

FIGUEIREDO, Alexandre. A volta por cima. Observatório da Imprensa. Disponível em: http://observatorio.ultimosegundo.ig.combr/artigos.asp?cod=358JDB003. Acesso em: 17de julho de 2008.

GUIMARAENS, Edgar. Algo sobre Fanzines. Disponível em: http://kplus.cosmo.com.br/materias.asp?co+4. Acesso em: 22 de setembro de 2009.

MAFFESOLI, Michel. O Tempo das Tribos. 2 ed. Rio de Janeiro. Editora Forense Universitária, 1998.



Contribuição do leitor Marcelo Pimenta e Silva, natural de Bagé/ Rio Grande do Sul, nascido em 11 de outubro de 1979. Jornalista pela Universidade da Região da Campanha – Urcamp, atua como assessor de imprensa e pesquisador. E escreve artigos sobre política e cultura em geral.
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