A poética do cotidiano em Cesário Verde





Quando iniciei a pensar sobre o que eu escreveria nesta matéria, percebi que ainda não havia, de alguma forma, homenageado os poemas de Cesário Verde, que é um cânone na literatura. Vale ressaltar que o poeta em questão é considerado como um precursor da poesia produzida em Portugal no século XX. Fernando Pessoa foi um grande Leitor da poesia cesariana, uma vez que Cesário é considerado o predecessor do heterônimo pessoano Álvaro de Campos, além de ser citado várias vezes por outro heterônimo de Pessoa, Alberto Caeiro.



Todas as vezes que eu havia ouvido algo sobre a poesia de Cesário Verde, me diziam que ela é extremamente realista, principalmente, pelas observações que o poeta fez acerca do quotidiano. Como a poesia em geral me é muito cara e gosto muito de conhecer bons poetas, adquiri a obra deste artista da palavra e, como eu esperava, encontrei retratado o mundo rotineiro que o poeta analisa e torna elemento essencial para suas composições líricas.

Tendo em vista a importância da poesia cesariana, hoje, apresentarei a vocês um excerto de um poema do qual gosto muito “O sentimento dum Ocidental”.

O Sentimento dum Ocidental


I

Avé-Maria

Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.

O céu parece baixo e de neblina,
O gás extravasado enjoa-me, perturba;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba
Toldam-se duma cor monótona e londrina.

Batem carros de aluguer, ao fundo,
Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista, exposições, países:
Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!

Semelham-se a gaiolas, com viveiros,
As edificações somente emadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros.

Voltam os calafates, aos magotes,
De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos;
Embrenho-me, a cismar, por boqueirões, por becos,
Ou erro pelos cais a que se atracam botes.

E evoco, então, as crónicas navais:
Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado!
Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu não verei jamais!

E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!
De um couraçado inglês vogam os escaleres;
E em terra num tinir de louças e talheres
Flamejam, ao jantar alguns hotéis da moda.

Num trem de praça arengam dois dentistas;
Um trôpego arlequim braceja numas andas;
Os querubins do lar flutuam nas varandas;
Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!

Vazam-se os arsenais e as oficinas;
Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;
E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,
Correndo com firmeza, assomam as varinas.

Vêm sacudindo as ancas opulentas!
Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E algumas, à cabeça, embalam nas canastras
Os filhos que depois naufragam nas tormentas.

Descalças! Nas descargas de carvão,
Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;
E apinham-se num bairro aonde miam gatas,
E o peixe podre gera os focos de infecção!

Neste poema, podemos observar as percepções do poeta sobre o cotidiano. Ele que “Embrenho-me, a cismar, por boqueirões, por becos,/ Ou erro pelos cais a que se atracam botes.”, consegue observar e, a partir de suas percepções, descrever a realidade que lhe afigura, com ruas melancólicas, carros de aluguel a levar passageiros para a via férrea, os edifícios que se assemelham a gaiolas com viveiros. Enquanto isso, o eu lírico percebe também o interior dos hotéis, nos quais “num tinir de louças e talheres/ Flamejam, ao jantar alguns hotéis da moda”.


As mulheres que voltam à casa ao anoitecer, “Vêm sacudindo as ancas opulentas!”, algumas carregam na cabeça os filhos que estão fadados a naufragar nas tormentas. Elas, “descalças”, o dia todo a bordo das fragatas, retornam ao bairro onde “[...] miam gatas,/ E o peixe podre gera os focos de infecção”.

Nesta breve e, um tanto quanto, superficial visão a respeito do poema, pudemos notar que a visão do poeta, sobre o mundo que desenrola a sua frente, não detém-se somente em impressões ingênuas e destituídas de crítica. Ao contrário, muito do reconhecimento que Cesário Verde possui provém do fato de ele observar e analisar o mundo de acordo com suas impressões e imaginação. O quadro que emerge do poema acima é tão realista que podemos, em nossa mente, recriá-lo e observarmos o tom irônico que ele imprime à descrição.

O poema acima e outras composições líricas cesarianas podem ser encontrados neste sítio ou neste outro. Através deles, o leitor poderá conhecer melhor a lírica de Cesário Verde.




Rodrigo C. M. Machado é Mestrando em Letras pela Universidade Federal de Viçosa.

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Violência e Paixão de Luchino Visconti: o confronto dos opostos



A dor da perda associada a dor do amor escondido para preservar preceitos morais, políticos e sociais. 

Na coluna passada escrevi sobre Luchino  e seu filme Vagas estrelas da ursa. Hoje resolvi falar um pouco sobre outro filme de Luchino que vale muito a pena assitir: Violência e paixão, 1974. Este filme faz parte da última etapa de filmes do diretor, talvez esse tenha sido seu penúltimo. Nele, Luchino demonstra que a solidão, a velhice e a morte são acontecimentos naturais porém difícíes de serem concebidos como tal pela humanidade. Para completar sua inquietação ele ainda discute oposições políticas, filosóficas e sociais no decorrer das cenas, deixando o filme mais tenso e enigmático. Já nas cenas iniciais percebemos as características do diretor pela sua forma de apresentar o protagonista e inseri-lo na história, vejamos como isto acontece:
Professor em seu apartamento, rodeado por quadros e livros antigos

 O filme inicia com uma música melancólica toada por instrumentos de cordas, assim abrem os créditos. Uma fita de eletrocardiograma cai lentamente sobre o chão. O violino parece responder aos apelos do violoncelo, a câmera lentamente acompanha a fita do exame e um rápido corte revela uma mão com uma lupa que procura em um quadro antigo sinais de autenticidade. O professor é apresentado a nós espectadores fortalecendo um dos traços característicos de Luchino Visconti, o suspense no momento de revelar o personagem. Primeiro o exame, as mãos na lupa, seu amor as artes e a fidelidade a originalidade, o protagonista de Violência e Paixão nos chega assim, aos poucos.
Partindo da seqüência da mão com a lupa o filme transcorre num imenso flashback, na verdade o flashback é o tempo do filme. Somente nas seqüências finais que o ciclo da memória termina e somos conduzidos para o tempo presente.
A trama do filme se desenvolve essencialmente entre quatro personagens fortalecendo a introspecção que é reafirmada também por três elementos: O elenco restrito, espaço pequeno e apertado onde são realizadas as ações e a circularidade temporal. A essência claustrofóbica é sustentada e fortalecida pelo elenco restrito, pelos espaços pequenos por onde se desenrola as ações e pelo tempo que está fadado a circularidade, ou seja, preso pelas três pontas: presente, passado, presente.
A questão espacial:
As cenas acontecem sempre dentro de dois apartamentos: do Professor; com paredes impregnadas de quadros e livros denotando grande erudição do personagem e o de cima; habitado por Lietta, Bianca, Stefanno e Konrad, reformado e idealizado num estilo moderno, representando a juventude  e despojamento do grupo.
A questão temporal circular: 
A trama temporal está sob responsabilidade do protagonista que entra e sai dos apartamentos sem deixar pistas aos espectadores em que dia e hora as cenas acorrem, a dimensão temporal fica um pouco perdida no filme. Para sabermos é necessário que o protagonista nos coloque a par de dados vindos das falas e diálogos que são proferidos por ele mesmo. O dia e a hora dos fatos, são revelados pelo protagonista e e isto torna a narrativa circular voltando-se sempre para o tempo do protagonista. Esse modo de tratar o tempo e o espaço fílmico faz de Violência e paixão um filme intimista e misterioso, uma viagem ao centro de Luchino.
Algumas questões são colocadas em oposicão na trama formando uma teia com deslocamentos politicos, sociais, filosóficos:







Dialética fílmica
Apartamento antigo X Apartamento reformado
Velhice X Juventude
Burguesia X proletariado
Posicionamento fascista (extrema direita) X Posicionamento esquerda “marxismo”

Como viver sem discutir estas questões? O professor viveu em um mundo único fechado em suas próprias certezas e foi surpreendido pela incapacidade de viver sentimentos possíveis  como o amor e a incerteza.
Assitam Violência e Paixão,  e um ótimo filme de Luchino


Para terminar queria deixar um adeus forte ao meu querido cachorro Nacho que hoje completou sua missão na terra, e saiba Nacho, fui muito, muito feliz ao seu lado.
Dia muito triste pra mim!!!
Nacho, Leo e Ítalo. Obrigada Nacho, por tudo!!!!



Kátia Peixoto é doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Mestre em Cinema pela ECA - USP onde realizou pesquisas em cinema italiano principalmente em Federico Fellini nas manifestações teatrais, clowns e mambembe de alguns de seus filmes. Fotógrafa por 6 anos do Jornal Argumento. Formada em piano e dança pelo Conservatório musical Villa Lobos. Atualmente leciona no Curso Superior de de Música da FAC-FITO e na UNIP nos Cursos de Comunicação e é integrante do grupo Adriana Rodrigues de Dança Flamenca sob a direção de Antônio Benega.
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MEU ENCONTRO COM OS IRMÃOS LUMIÈRE



 Hoje nossa coluna traz o depoimento poético da fotógrafa e escritora catarinense Lair Leoni Bernardoni sobre a visita que fez à cidade dos irmãos Lumière, Lyon e às suas obras, entre elas as primeiras fotos coloridas de que se tem notícia, datadas de 1904.
De maneira intimista e sensível, como é seu estilo, descreve a emoção de reencontrar a casa e os ambientes preservados onde os criativos irmãos fizeram várias experiências no campo visual.

"Sou, desde há muito, chamada por escolha interior a visitar casas que resguardem no interior de suas paredes a solene criação artística que seguirá como história.

Há nesse encontro do olhar pela praça uma alegria inaugural incontida.
Estou no caminho de Villa Art Nouveau onde, as gravações de luz em movimento irão ganhar o nome de Sétima Arte e nem havia ainda iniciado o século XX.

Não tenho mesmo freio algum quando o coração descompassa meu cardiolairiano que conheço bem.
Não tenho também adiamento para diminuir o passo. É preciso deixar o imaginário ser real e pronto !
Ali na Rue de Premier Film a Villa tem ainda a porta central fechada.
Preciso estar num click junto a ela por inteiro.
Poso acanhada.
Minutos de espera, a porta é aberta e posso passar à sala de atendimento e à Biblioteca.
Dalí avanço lentamente à Grande sala familiar, iluminada por janelas e onde a luz natural flui no refinamento da época.
Reconheço o lugar onde portraits de luz velada gravaram a lírica intimista e poética.

De quebra e nem tão longe no parque que avisto à volta, a paisagem cenariza outras imagens familiares.
Retratos da vida.
Hoje, o Institut Lumière tal como foi construído para ser residência tem as janelas abertas para a luz natural. Sou íntima dessa luminosidade.
A grande casa pode ser vista com detalhes no espírito de “belle époque”. São mínimas as portas fechadas.
As cores exuberantes e também suaves, bem casadas, não foram poupadas para os contrastes na decoração. Flores alçam vôo pelas laterais da grande escada.
Emociona subir as mesmas escadas, ver a mesma luz das quatro estações reacender pela fotografia o arrepio da Arte com um click. Privilégio ao alcance de estar ou propositar visitar Lyon.
Só quem é cúmplice da luz e sua revelação conhece e não esquece a Villa na Rue de Premier Film dos Irmãos Lumière."
(Lair Leoni Bernardoni)



Os irmãos Louis e Antoine Lumière





Abaixo, algumas fotos dessa preciosa coleção de auto-cromos dos irmãos Lumière que usavam como método de coloração, minúsculos grãos de amido de batata tingidos de verde, laranja e violeta para criar imagens coloridas em placas de vidro semelhantes a slides.












Agradecimentos especiais: Cadu Silvério.



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Izabel Liviski é Professora e Fotógrafa, doutora em Sociologia pela UFPR. Pesquisadora de História da Arte, Sociologia da Imagem e Antropologia Visual.  Escreve quinzenalmente desde 2009 a coluna INcontros, na Revista ContemporArtes.
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Do Cinza ao Dark: O desafio em preservar a Vila de Paranapiacaba







Histórico:

A Vila de Paranapiacaba foi construída primeiramente com o objetivo de assentar os trabalhadores para a construção da São Paulo Railway. As primeiras construções foram, na realidade, um acampamento que posteriormente ficou conhecido como Vila Velha, consistia em alojamentos provisórios que tinham o objetivo de abrigar os operários que realizavam os trabalhos na atual Santos-Jundiaí. Com a implantação da segunda linha férrea e sua maior exigência devido ao complexidade de seus equipamentos se tornou primordial que um número cada vez maior de operários se mantivesse assentado na serra e a partir desta necessidade que de fato se construiu casas para alojamento permanente.

Desta forma aos poucos o "acampamento" foi sendo substituído por novas edificações em madeira e alvenaria e em 1894 foi terminada de fato a Vila Martin Smith, ou Vila Nova. Nela se encontravam os funcionários que tinham a responsabilidade de manutenção e operação da ferrovia. Juntamente com o progesso da Vila Martin Smith outra aglomeração de comércio e pessoas despontava ao lado da Vila projetada: por meio de doações do lote do dono das terras chamado Bento José Rodrigues da Silva foi possível construções para os que tivessem interesse em construir no local. Foi a partir deste fato que foi constituída a parte que conhecemos hoje como parte alta, e seus moradores não estavam diretamente ligados aos trabalhos referentes à linha férrea. Para que fosse possível construir em um terreno tão íngreme foi necessário o escalonamento do morro. As casas na parte alta são em sua maioria geminadas construídas de forma alinhada e estreira com o intuito de possuir uma fachada contínua. Além das casas a Parte Alta também possuía uma igreja e um cemitério.


Parte alta - foto: Marina Rosmaninho

A localização da Vila Nova era próxima a estação denominada Alto da Serra, a estação que é conhecida hoje como Paranapiacaba. Sua influência inglesa é nítida pois os administradores ingleses da então São Paulo Railway não forneceram apenas o projeto da vila e das casas, projeto que tem como base as vilas operárias construídas na própria Inglaterra para minimizar mortes dos operários por doenças relacionadas a moradias precárias e falta de saneamento básico, mas vieram até aqui, trouxeram todos os equipamentos e materiais necessários para a construção das casas. Por isso podemos dizer que a Vila chegou pela ferrovia pré-fabricada e os artesãos brasileiros apenas montaram como um lego cada edificação da Vila Nova. As casas foram pensadas anteriormente, por isso foram construídas em madeira com sua base em alvenaria para transpor os efeitos da umidade do local, pois é uma vila no coração da Mata Atlântica, em meio a Serra do mar.
placa da SPR - aspecto sinaliza o tempo.

Típico da organização inglesa as casas seguem uma rígida hierarquia que possui vínculo com cada cargo efetuado na empresa, os operários assentados nas instalações mais simples enquanto o técnicos com instalações de nível médio até chegar ao conhecido Castelinho, que nesta época era a morada do engenheiro-chefe. Situado em um local estratégico o Castelinho é a única edificação que permitia o engenheiro controlar o movimento no pátio de manobras, as oficinas, habitações e o tráfego de trens. Além disso todas as casas da Vila Martin Smith possuem recuos de fundos, frente e laterais, além de varandas cobertas. A vila em si dispunha também de um inovador sistema de saneamento feito por vielas sanitárias, que conservava e facilitava a qualidade de vida dos operários.

foto da Vila Martin Smith hoje. foto: Marina Rosmaninho

O Desafio:

A partir de 1946 a Vila de Paranapiacaba começa seu processo de decadência. Com o fim da concessão de 90 anos fornecida para os ingleses a estrada de ferro passa a ser supervisionada pela União. A partir disso em 1947 os equipamentos de toda a malha ferroviária passou a ser patrimônio da então recém criada RFFSA - Rede ferroviária Federal S/A. o primeiro feito foi edificar novas casas de alvenaria para novos funcionários, o que nos mostra como o governo brasileiro não sabe preservar sua própria história. Em 1974 o sistema funicular começou a ser substituído pelo o que conhecemos hoje, o cremalheira. O antigo sistema( segundo funicular), rodou até meados de 1981, quando foi desativado por completo. Esta mudança de sistema também contribuiu para a decadência da vila e neste mesmo ano um incêndio destruiu totalmente a antiga estação de Paranapiacaba, o que sobrou foi apenas a torre do relógio.

torno no museu ferroviário: preservação ainda é um problema.

Mesmo com algumas ações da RFFSA é a partir da década de 80 que os problemas de conservação do patrimônio imobiliário e o sucateamento dos equipamentos ferroviários se agravam de forma cabal. Com o movimento que emergiu dos próprios moradores da vila é que em 1987 a vila é tombada pelo patrimônio histórico com incorporação de algumas áreas de reservas naturais da Mata Atlântica. Por isso Paranapiacaba possui valor histórico, cultural e ambiental. Mas com a privatização da RFFSA em 1996 muitos funcionários que ainda residiam na vila tiveram que se mudar. E as casas que nesta fase estão desocupadas passam a ser invadidas o que nos remete a um novo perfil de moradores da vila, sem vínculo com sua história, sem entender que a vila de Paranapiacaba antes de ser turística, é e sempre será Ferroviária, pois faz parte de sua história.

Em 1995 o processo de privatização de quase 22 mil Km da malha ferroviária brasileira teve início. Neste caso foi priorizado a transporte de cargas em relação ao de passageiros, não possuía nenhum plano de conservação do patrimônio, viés extremanente voltado ao interesses do capital. Com 90% das malhas privatizadas alguns trechos de ferrovias foram extintos e muitos prédios ferroviários que se encontram na Vila perderam sua função inicial. Por continuarem a pertencer ao Estado surge uma grande contradição: ao mesmo tempo que se quer preservar a via permanente que no caso é privada não autoriza por questão de segurança operacional novas funções aos antigos prédios quando se localizam na área entre trilhos. É por isso que aos poucos os trilhos vão sendo arrancados e os prédios ocupados pela Prefeitura. A cada depredação ficamos cada vez mais distantes do que de fato a Vila foi, seu maior valor histórico aos poucos vai se perdendo.

trem de carga: logística retira trem de passageiros. foto: Marina Rosmaninho.

Estamos lidando com um problema complexo que exige maior reflexão de historiadores, geógrafos,sociólogos e biólogos. Enquanto não tivermos claro a importância do que se denomina patrimônio industrial e o quanto isto auxiliaria na preservação de diversas estações e prédios ferroviários o que teremos é a situação de hoje: uma história da ferrovia fragmentada, agonizante em suas ruínas, que aparecem na atual paisagem urbana como fragmentos, vestígios isolados, uma anomalia no tecido urbano.


Marina Rosmaninho é formada em Ciências Sociais no Centro Universitário Fundação Santo André(2008). É socióloga, amante da linguagem audiovisual, documentários, ferrovias, indústrias e escombros e procura juntar todas suas paixões para analisar a sociedade. Convida a embarcar neste trem sem descarilhar!












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Filhos da Rua

Filhos da Rua

Por: Aline Serzedello Vilaça

Olá Menino de Rua

Peço por meio desta que entenda que...


Sua liberdade me intimida

Passo a odiar-me por ter mais medo dos seus olhos

Do que compaixão ou dó por seus lábios queimados de craque

Invejo seu andar destemido e

No vazio do por detrás de seus olhos

Enxergo seu cego medo da morte

E me pego morrendo de medo

De morrer sem um dia fazer com que

em seus olhos brilhem vida

Faço inocentemente

Com que seu afrontamento,

raiva de sobrevivente que és,

Seja o combustível para minha utópica necessidade de revolução artístico- pacífica

Que tem o único objetivo de achar um meio de fazê-lo sorrir

Se não tivesse tanto medo do seu cheiro de rua,

da podridão dos panos que lhe cobrem

da crosta de cimento, lixo e noite que por ti pisados

aderiram seus pés,


Se não tivesse tanto medo dos seus belos lábios negros,

pretos queimados de entorpecentes

Se não tivesse tanto medo que em um violento devaneio de droga

Violasse a estúpida bolha que me protege e atingisse meu físico

Em dor semelhante a que já sinto lacrimejar n´alma,

Apenas pelo fato de poucas vezes vê-lo

mesmo em sua invisibilidade herdade

Se não fosse como a todos

Apegada na proteção das minhas coisas e não tivesse medo que você as roubasse

Se tivesse coragem de encarar seus olhos sem alma

Se tivesse a bravura de abraçá-lo e prometer mudanças

Se fosse realmente a imagem e semelhança e tivesse real noção da força da fé

Ah, menina de rua sou violentada por sua vulgaridade,

por sua infância roubada,

Por seu sexo invasivamente bulido,

Ahh, menina,

És boneca de cuja brincadeira é sordidamente a ludicidade de homens sujos,

Me perdoe por deixar seu corpinho nas mãos grossas destes vândalos bem vestidos

Me perdoe por só lhe dar dor, onde na juventude terias fonte de prazer

Nos perdoe por lhe dar no lugar de pai, um cafe...

Ahh, menino

Desculpe-me por não ter coragem de abraçá-lo,

De amá-lo

Menino,

Quando foi que apagaram sua ingenuidade, seu brilho,

Seu coração, sua ALMA???

Ahh, menino

me perdoe por não ter comida,

por não ter banho quente,

por não ter ido a escola, por não ter lençóis macios,

quarto, cama e cobertor

Ahh, menina das ruas

Sou violentada feito você ,

Pela vulgaridade que a noite lhe ensinou

Meninos e Meninas

Esta que vos fala, que escreve é mais uma não- cidadã covarde que confessa se sentir agredida

Confesso me sentir

Envergonhada por ter medo, por me sentir vítima de seus olhos sem alma

Sou

Mais uma não- cidadã que prefere sentir medo de teu aproximar

Do que me abrir para a capacidade de enxergar a crueldade apavoradora

Que lhes cercam

Realidade que vocês sobrevivem,

Sobrevivem

Aos olhos do Estado

feito pequenos problemas

onde na verdade são vítimas

VÍTIMAS

sem nome, sem família, sem casa, sem nada...


Na próxima publicação contarei o que estes meninos remetem a cidade Maravilhosa, ao CONEB, ao assalto que sofremos semana passada em Viçosa, e a Arte(educação)- Política que tanto defendi nas colunas passadas...

Atenciosamente,

Aline SerzeVilaça


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As Poetas Anayde Beiriz e Gilka Machado


As Belas Anayde Beiriz & Gilka Machado
por Altair de Oliveira


Num estilo quase cafajeste, o de marido arrependido que acaba de confessar ter esquecido da data do aniversário de casamento à esposa, a nossa coluna de poesia como a vida lubrifica seus bicos de papagaios para tentar labiar aqui uma singela e atrasada homenagem ao dia internacional das mulheres, transcorrido no último dia 08, através de uma pequena menção honrosa a 2 poetas que, apesar de pouco festejadas, tornaram-se pontos luminosos na história da poesia brasileira, devido principalmente à força de seus textos e às posturas arrojadas que assumiram frente às dificuldades e preconceitos impostos às mulheres pela sociedade da época.


Trata-se da paraibana Anayde Beiriz e da carioca Gilka Machado, ambas franco-atiradoras de palavras à frente de seu tempo. Numa futura oportunidade pretendemos falar aqui também das poetas Patrícia Galvão (a Pagu) e de Ana Cristina Cesar, autoras pelas quais temos grande admiração. Obrigado meninas! Graças ao comportamento revolucionário de pessoas como vocês a poesia pode, cada vez mais, ser dita e ouvida em todos os cômodos da casa!


A Paraibana Anayde Beiriz


Trabalhada no filme "Parahyba Mulher Macho", da cineasta Tizuka Yamasaki, de 1983, a poeta e professora paraibana Anayde Beiriz nasceu na atual cidade de João Pessoa-PB em 1905 e faleceu aos 25 anos em Recife-PE, supostamente por suicídio, depois de envolver-se num escândalo político com o advogado e jornalista João Dantas, que foi adversário político de João Pessoa, o então presidente (governador) do estado Paraiba e vice na chapa do candidato à presidência Getúlio Vargas. Acontecimentos que vieram a culminar no assassinato do governador João Pessoa, por João Dantas, o que veio a configurar-se em um dos motivos que deflagrou a revolução de 1930.

Anayde formou-se na Escola Normal em maio de 1922, passou então a lecionar e divulgar seus poemas e , em 1925, venceu um concurso de beleza promovido pelo jornal Correio da Manhã. Bela, jovem e simpatizante das idéias modernistas e feministas, a poeta passou a frequentar saraus e círculos literários, escrever colaborações em periódicos locais e a vestir-se conforme os novos padrões da moda da época (vestidos mais curtos e com decotes, e corte de cabelo "à la garçonne") e também a defender a participação das mulheres na vida política e econômica. Além disso, Anayde não acatava às convenções sociais que ditavam o papel de esposa submissa e recatado, reservado às mulheres nos relacionamentos amorosos da época. Estes comportamentos não tardaram a despertar a antipatia da conservadora sociedade paraibana da década de 20 que acabaram por cunhá-la na expressão "Paraíba masculina, mulher macho sim senhor!". Por outro lado, devido à beleza e a argúcia, a poeta fora apelidada carinhosamente pelos amigos de "a pantera de olhos dormentes".


Segundo o livro de Marcus Aranha "Anayde Beiriz. Panthera dos Olhos Dormentes", publicado só recentemente (Editora Manufatura, 2005 - João Pessoa), a poeta manteve um namoro com o estudante Heriberto Paiva, que estudava no Rio de Janeiro, entre agosto de 1924 e agosto de 1926. Namoro este manifestado em sua maioria pela grande quantidade de cartas que o casal trocava entre si. Nas cartas, que são a maior parte dos textos conservados da autora, o par doce e apaixonado vai sonhando com um futuro feliz e promissor e, aos poucos, vai também se conhecendo melhor. Enquanto que, pouco a pouco, aos olhos do rapaz, a poeta vai se mostrando uma moça avançada demais para ser uma boa esposa naquela época; aos olhos dela Heriberto vai se revelando ser um legítimo representante da aristocracia machista que ela combatia: e o namoro deles acaba.

A partir de 1928, Anayde começou um relacionamento amoroso com João Dantas, advogado, jornalista e político local, ligado ao Partido Republicano Paulista, que fazia oposição ao então presidente do Estado da Paraíba, João Pessoa . Depois de violentos embates políticos, João Dantas buscou refúgio no Recife, e manteve o contato com a poeta através de cartas que trocavam entre si. O governador iniciou então uma retaliação contra seus inimigos políticos, autorizando prisões de revoltosos e suspeitos e invasões de locais em busca de armas. Um dos locais invadidos pela polícia foi o escritório de João Dantas, onde arrombaram o cofre e lá encontraram documentos e a correspondência de Dantas. Dentre esta, foi encontrado as cartas e poemas de amor enviadas por Anayde, verdadeiras provas do relacionamento imoral mantido por seu adversário político que, sem hesitar, ele mandou que fossem publicadas na imprensa local no dia seguinte a fim de atingir a honra de seu opositor.

Por conta deste autoritarismo do governador, João Dantas acaba por assassiná-lo em uma confeitaria no Recife, acreditando assim lavar a sua honra ofendida com sangue e é preso em seguida. Criticada e acuada na Paraíba pela imprensa e pelo povo que indiretamente responsabilizava-a pela morte do governador, a poeta abandonou a sua residência e refugiou-se em um abrigo em Recife, de onde podia visitar o seu amado João Dantas, que estava retido na Casa de Detenção na capital pernambucana.

Mas João Dantas foi encontrado degolado na prisão em 03 de outubro de 1930, no início da revolução que traria Getúlio Vargas ao poder. Supostamente o amado de Anayde Beiriz cometera suicídio, mas a causa da morte nunca foi devidamente comprovada.

A poeta faleceu no abrigo das freiras em Recife alguns dias depois, por envenenamento que ela provavelmente teria aplicado em si mesma, e o seu corpo foi sepultado como indigente no Cemitério de Santo Amaro. A maioria de seus escritos foi extraviada ou destruida, mas o pouco que restou, e também os depoimentos daqueles que a conheceram, vão paulatinamente revelando a sensibilidade e a grandeza desta moça poeta que parecia querer a palavra para pregar o amor e nos ver pessoas melhores, só isso. Mas, ainda que mortalmente ferida, ela era uma fera, esta panterazinha!


***

Uma Carta de Amor de Anayde Beiriz

“(…) O amor que não se sente capaz de um sacrifício não é amor; será, quando muito, desejo grosseiro, expressão bestial dos instintos, incontinência desvairada dos sentido, que morre com o objetivar-te, sem lograr atingir aquela atura onde a vida se torna um enlevo, um doce arrebatamento, a transfiguração estética da realidade… E eu não quero amar, não quero ser amada assim… Porque quando tudo estivesse findo, quando o desejo morresse, em nós só ficaria o tédio; nem a saudade faria reviver em nossos corações a lembrança dos dias findos, dos dias de volúpia de gozo efêmero, que na nossa febre de amor sensual tínhamos sonhado eternos.
Mas não me julgues por isto diferente das outras mulheres; há, em todas nós, o mesmo instinto, a mesma animalidade primitiva, desenfreada, numas, pela grosseria e desregramento dos apetites; contida, nobremente, em outras, pelas forças vitoriosas da inteligência, da vontade, superiormente dirigida pela delicadeza inata dos sentimento ou pelo poder selético e dignificador da cultura.

Não amamos num homem apenas a plástica ou o espírito: amamos o todo. Sim, meu Hery, nós, as mulheres, não temos meio termo no amor; não amamos as linhas, as formas, o espírito ou essa alguma coisa de indefinível que arrasta vocês, homens, para um ente cuja posse é para vocês um sonho ou raia às lides do impossível. Não, meu Hery, não é assim que as mulheres amam. Amam na plenitude do ser e nesse sentimento concentram, por vezes, todas as forças da sua individualidade física ou moral.

É pois assim que eu te amo, querido; e porque te amo, sinto-me capaz de esperar e de pedir-te que sejas paciente. O tempo passa lento, mas passa…

…E porque ele passa, e porque a noite já vai alta, é-me preciso terminar.

Adeus. Beija-te longamente, Anayde”


Uma carta de Anayde Beiriz a Heriberto Paiva, de 4 de julho de 1926.


***

Para saber mais sobre o livro de Marcus Aranha sobre a poeta, veja a matéria de Sônia Van Dick: http://triplov.com/letras/sonia_van_dijck/beiryz.htm



Pecados Gloriosos de Gilka Machado!



Foi mesmo um pecado que a poesia da carioca Gilka (da Costa de Melo) Machado (1893-1980) tenha passado tanto tempo, aos olhos da crítica e dos literatos, quase sempre associada à libertinagem ou ao estigma de uma poesia menor, ou a uma poesia de amor escandaloso ou mesmo de uma poesia erótica ou estritamente feminina.


Já em 1922, enquanto o mundo “cult” do país respirava e transpirava a dita “Semana de Arte Moderna”, Gilka, que já havia publicado antes, editava o seu “Mulher Nua”, um livro arrojado demais para uma dama da época, mas que aos poucos foi angariando admiradores. E em 1928 ela retornava com “Meu Glorioso Pecado”, quatro anos depois uma antologia de seus poemas era publicada na Bolívia e, em 1933, através de concurso na revista carioca “O Malho” a poeta alcançou a glória, sendo eleita pelos leitores como “A maior poetisa do Brasil”.


A partir daí, a esposa (e depois viúva) do poeta Rodolfo Machado, de quem herdou o sobrenome, começou a ser um pouco mais notada pelo mundo dito cultural e, aos poucos foi tomando espaço dentro do enquadramento que lhe deram como “a poetisa mais representativa do simbolismo”. Apesar disto, esta distinção de “simbolista” não lhe dava (ainda hoje muito raramente lhe dá) o direito de constar na pequena lista de autores simbolistas estudados na literatura escolar.

Seus poemas, entretanto, continuaram a ser produzidos e publicados e, apesar das dificuldades financeiras da autora e das poucas edições, saía em 1978 a publicação de “A Poesia Completas de Gilka Machado”, um livro difícil de ser encontrado. Seus leitores, contrariando a impedância a que está submetida sua poesia, continuam crescendo dia a dia, à margem do mercado editorial e dos conselhos editoriais que os cercam. Viva a Gilka!!!


Curiosidade Sobre a Menina Gilka Machado

Aos 13 anos, Gilka Machado participou, sob pseudônimo, de um concurso de poesia promovido pelo jornal "A Imprensa" que premiava os 3 primeiros lugares. A menina poeta arrebatou todos os três com os poemas "Falando à Lua", "Rosa" e "Sândalo" e, quando foi receber os prêmios acompanhada da tia, teve que responder aos redatores um questionário para comprovar que ela era mesmo a autora dos poemas vencedores.



Dois Poemas de Gilka Machado




SER MULHER...


Ser mulher, vir à luz trazendo a alma talhada

para os gozos da vida; a liberdade e o amor;
tentar da glória a etérea e altívola escalada,
na eterna aspiração de um sonho superior...


Ser mulher, desejar outra alma pura e alada
para poder, com ela, o infinito transpor;
sentir a vida triste, insípida, isolada,
buscar um companheiro e encontrar um senhor...



Ser mulher, calcular todo o infinito curto
para a larga expansão do desejado surto,
no ascenso espiritual aos perfeitos ideais...


Ser mulher, e, oh! atroz, tantálica tristeza!
ficar na vida qual uma águia inerte, presa
nos pesados grilhões dos preceitos sociais!



Gilka Machado, In: "Poesias Completas de Gilka Machado."


***

SAUDADE

De quem é esta saudade
que meus silêncios invade,
que de tão longe me vem?


De quem é esta saudade,
De quem?


Aquelas mãos só carícias,
Aqueles olhos de apelo,
aqueles lábios-desejo...


E estes dedos engelhados,
e este olhar de vã procura,
e esta boca sem um beijo...


De quem é esta saudade
que sinto quando me vejo?




Gilka Machado, In: "Poesias Completas de Gilka Machado."



Ilustrações: 1- foto de homem com rosas; 2- foto da poeta Anayde Beiriz; 3- capa do livro de Marcus Aranha sobre a poeta Anayde Beiriz; 4- foto da poeta Gilka Machado.


Altair de Oliveira (poesia.comentada@gmail.com), poeta, escreve quinzenalmente às segundas-feiras no ContemporARTES a coluna "Poesia Comovida" e conta com participação eventual de colaboradores especiais.
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TROTE E RITO DE PASSAGEM: A polêmica sobre a recepção dentro e fora dos campi


por Lucas Piter Alves Costa

É início de período e presenciamos aquela constante renovação que ocorre em Viçosa. Em muitas repúblicas e alojamentos os veteranos se formaram, cedendo lugar aos calouros que estão chegando.

Uma coisa comum em algumas dessas moradias estudantis é a de recepção aos calouros com uma série de práticas sociais. Infelizmente, nem todas elas são amigáveis, algumas são até abusivas. De qualquer modo, todas essas práticas sociais em que o calouro se integra ou a que se submete são uma forma de rito de passagem – até mesmo uma mera citação das regras da casa.

E em relação ao trote, não há como negar que, assim como uma série de outros acontecimentos, marca uma passagem na vida dos estudantes, como em um rito de passagem mesmo. É preciso dizer que uma espécie ou outra de rito de passagem sempre existiu, ainda existe, e sempre existirá em qualquer organização humana. Alguns desses ritos são institucionalizados, como o casamento ou as cerimônias fúnebres. Outros estão tão naturalizados que poucos pensam neles como algo socialmente aceito como indicador de mudança de status, mesmo que seja um rito particular, como o primeiro emprego, o primeiro beijo ou a primeira vez que um casal diz “eu te amo”. A sociedade está cheia de ritos, eles integram práticas do cotidiano, eventos esporádicos ou únicos. Podem ser complexos, simples, pragmáticos, simbólicos, institucionais, culturais, religiosos. Seja como for, significam mudança de alguma coisa e alteração do status de um indivíduo em relação a algum núcleo social.

Ilustração 1: Calouros se alegram e exibem sua "sujeira" como troféu: só para quem pode.

O problema está quando o trote perde seu caráter de rito de passagem (que é baseado no sentimento de orgulho coletivo) e se transforma em um mecanismo de opressão, mecanismo que se reforça a cada ano. Isso tem sido constante em muitas universidades e tem transformado um momento de muita vitória por parte dos calouros em algo traumático para o calouro e/ou a sua família. À guisa de exemplo, citemos os casos dos estudantes Carlos Alberto de Sousa (Jornalismo/Universidade de Mogi das Cruzes-SP - 1980), em decorrência de traumatismo crânio-encefálico resultante de agressões de veteranos e George Mattos (Direito/ Fundação de Ensino Superior de Rio Verde-GO - 1990), em decorrência de parada cardíaca ao tentar fugir de veteranos.

Ilustração 2: Caloura pedindo dinheiro na avenida

Casos como esses têm mobilizado setores acadêmicos com o objetivo de acabar com o trote violento ou abusivo e de incentivar os chamados trotes solidários, lúdicos, conscientes, etc. Essa é uma iniciativa válida, mas muito pouco tem alcançado o ambiente privado das moradias estudantis. Ocorre que as políticas em torno do trote têm atacado a sua forma, sem questionar a ideia e os motivos que têm solidificado essa prática por tantos anos.

A ideia por trás do trote não está sendo trabalhada como devia, e a culpa não é só dos setores administrativos das universidades, mas também dos veteranos, que não refletem sobre o que querem construir com o trote. O trote é um evento social, e os universitários deviam aproveitar essa ocasião para refletirem sobre os seus próprios papéis na sociedade, sobre que tipo de profissionais estão se formando e o que se espera deles.

Diante dessas observações, compartilho a fala do Dr. Luis Carlos Giarola, médico, professor do Departamento de Saúde Pública da Faculdade de Medicina de Botucatu – Unesp, e Presidente da Comissão de Assuntos Estudantis/FMB, que afirmou na revista Interface (1999) que o trote como uma brincadeira ou como uma integração é importante para o início da vida universitária, desde que não ultrapasse os limites da integridade do calouro.

É este o ponto que precisa ser restaurado: a preservação da integridade do calouro. É preciso tornar o trote uma prática baseada no orgulho coletivo. O trote precisa mostrar ao calouro que ele agora faz parte de um grupo que tem um papel específico na sociedade, não que ele é calouro burro. Sem consciência, qualquer atividade social pode se tornar um evento traumático: algumas partidas de futebol estão aí para exemplificar.

O problema do trote não está apenas na sua forma – como no caso de trotes violentos ou humilhantes –, mas antes de tudo, nos valores que estão sendo reforçados em sua prática. Geralmente, os veteranos tentam subjugar os calouros, afirmando alguma superioridade. Ora, é inegável que alguma hierarquia e diferenciação existe entre veteranos e calouros, como existe no sistema acadêmico como um todo, mas isso não significa que o abuso de poder tenha que ser permitido ou incentivado. Os limites do respeito à integridade do calouro são ultrapassados quando a experiência de veterano é supervalorizada (e toda super ou subvalorização é um engano).

Mas como transformar a alteridade em algo positivo? Como evitar o antagonismo entre veteranos e calouros sem desvalorizar a experiência? Como tornar a experiência em motivo de orgulho e não em mecanismo para o medo? De fato, o veterano deve servir de exemplo ao calouro. Deve ser alguém politizado, preocupado com a sua formação discente e com a da coletividade, e consciente de seu papel social – isso é solidificar os ideais humanísticos pregados pela universidade desde a sua origem. O trote aplicado por veteranos imbuídos desses valores com certeza terá um caráter verdadeiramente pedagógico, e não opressor, pois a relação hierárquica será baseada na experiência, no respeito e na solidificação de valores nobres. Será um rito de passagem que trará benefícios coletivos, por mais utópico que isso possa parecer.

Já que estamos falando de rito de passagem, gostaria de falar do rito de passagem dos jovens da tribo Sioux, quando eles atingem a adolescência e precisam se preparar para assumirem um papel na tribo. Os Sioux foram uma tribo muito ligada à natureza. Suas crianças eram educadas desde cedo a amar a natureza como representante do que há de mais sagrado para o seu povo. Tudo na natureza tinha para os Sioux uma razão de ser, e os mais velhos pregavam a unidade dos povos, a honra e a comunhão com toda a criação. Como um dos muitos ritos de passagem da tribo, ao jovem sioux era legada a responsabilidade de cuidar do seu próprio cavalo, até que ambos atingissem certa maturidade. A intenção era imbuir o jovem de responsabilidade e mostrar a ele que cada um na tribo tinha o seu papel. Se esse cavalo morresse, significava que o jovem ainda não estava pronto para prosseguir com os outros ritos, ligados à caça, à guerra e à proteção da família, o que seria muito vergonhoso para si e para o seu clã.

Não sou contra o trote como rito de passagem, mas sou contra qualquer forma de trote que seja abusivo (leia-se, forçado). Não considero abusivo pedir dinheiro na avenida para pagar a cerveja no bar logo à noite, onde calouros e veteranos se sentarão juntos à mesa. Nem acho humilhante, nas moradias estudantis, o calouro ficar responsável por repor o papel higiênico do banheiro durante um ano, para lhe lembrar que agora ele não está na casa da mamãe e vai ter que aprender a ser responsável (tem muito estudante que não sabe sequer lavar a louça). Desde que não seja nada forçado, que fique claro.

Ilustração 3: Nudez parcial: é necessário isso?

A maneira como veterano e calouro lidam com o trote revela muito sobre a visão que têm de si e dos outros. Desconfio muito da maturidade de um estudante que diz ser contra ser pintado de várias cores dos pés à cabeça por achar isso humilhante, mas que, no entanto, tem coragem de pagar caro por um ingresso de uma festa típica de Viçosa, que ocorre no lamaçal, e voltar bêbado, vomitando, e sujo de lama, dos pés à cabeça. Ao meu ver, isso é mais humilhante para a elite universitária do que a tinta e o elefantinho.

Voltando ao ponto sobre as moradias estudantis, muitos veteranos têm feito os calouros cuidarem de seus “cavalos”. Ficar responsável pelo papel higiênico ou ter que acordar cedo para fazer café para os veteranos são duas coisas bem diferentes. Alguns veteranos tentam aplicar ao calouro deveres que eles mesmos não cumpriam, e ainda tentam ensinar valores que sequer trouxeram de casa. É aqui que vemos algumas diferenças entre os trotes aplicados nos campi e aqueles aplicados nas moradias estudantis, onde as políticas da administração universitária não alcançam.

Agora uma pergunta polêmica: será mesmo que acabar com o trote é a fórmula para acabar com a repressão ao calouro? Com as políticas da administração universitária proibindo o trote dentro dos limites do campus, ocorre que o problema tem sido transferido para fora da universidade, e tomado proporções ainda maiores. A universidade em geral (administração, professores, veteranos, calouros...) tem perdido a oportunidade de debater o assunto, pois tem subestimado o significado que o trote como rito de passagem tem. É claro que alguma atividade simbólica é necessária para iniciar o calouro, e a simples proibição do trote sem um debate não tem gerado resultados satisfatórios. Ataca-se a forma, mas o conteúdo não é questionado. É como jogar a poeira para baixo do tapete.

Para finalizar, uma curiosidade: o hábito de raspar a cabeça do calouro vem de longa data. Na Europa, nas primeiras universidades, com o intuito de evitar epidemias (piolhos, sarnas, etc), os calouros tinham suas cabeças raspadas e suas roupas queimadas. Depois disso, recebiam novas roupas e passavam a estudar em vestíbulos diferentes daqueles dos veteranos. Daí também vem o nome “vestibulando” para designar o novato. De lá para cá, essas medidas profiláticas não foram mais necessárias, mas alguns hábitos permaneceram e foram até se diversificando. Será que podemos extrair algum simbolismo daí e renovar a prática do trote?

Fontes das imagens:

Ilustração 1: http://www-usr.inf.ufsm.br/%7Eroben/fotos/Trote/trote_15.jpg
Ilustração 2: http://www.tcexp.com.br/blog/wp-content/uploads/2008/02/trote_marketing_educacional.jpg
Ilustração 3: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgyHKmTBY3Yqx7ghE57H_7fujSbjjCvdWDVScL6J9PlOMmdUKe-K_iTS6Im9G5yY1sHej9MKUQHFEPgNgvAqDirDJLA43yWrC_aAek06biA9Rpd00HVqoaqPPrdvxgVyNaPUjFJiHUvYHo/s400/trote2004_2.jpg




Contribuição do leitor Lucas Piter Alves Costa, graduado em Letras pela Universidade Federal de Viçosa. Foi membro do Centro Acadêmico de Letras Ipsis Litteris e da Comissão Organizadora do XII EMEL. Foi representante discente da Coordenação do Curso de Letras da UFV (2009). Áreas de interesse: Literaturas de Língua Portuguesa; Literatura Comparada; Cinema; HQs; Artes Plásticas, Estudos de Tradução Intersemiótica, Narratologia, AD Semiolinguística. Tem experiência como professor de desenho artístico.
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